10 de dezembro de 2008

AKI KAURISMÄKI: O GESTO ENGESSADO



Nei Duclós

Cineasta finlandês faz filmes dramáticos hilários: o drama se expressa pela imobilidade do gesto, que provoca situações de humor terminal, aquela risada antes do fuzilamento. Os diálogos são escassos, como as ações dentro das narrativas (que, paradoxalmente, são dinâmicas). As conversas pontuam essa situação limite: “Se quiseres falar consigo mesmo, fale finlandês” diz um dos personagens de Segure seu cachecol, Tatiana, de 1994, um road movies que toca em algumas feridas básicas daquela estranha nacionalidade. Parte do antigo império russo, do qual se separou depois de algumas guerras, e por muito tempo dentro da área de influência sueca, o país exibe índices razoáveis de qualidade de vida, mas o isolamento e a falta de sabor da sociedade finlandesa tornam-se explícitas nos filmes de Kaurismäki.

Isso, claro, é apenas um truque. O cineasta aparentemente filma a imagem que o país faz de si mesmo, e em conseqüência, projeta para o resto do mundo. Mas ele é um arqueólogo e procura até achar, cavando na mansa mornidão que contamina tudo, a erupção de graça, humanidade, poesia, solidariedade, medo, esperança dos seus memoráveis personagens, encarnados por mestres da interpretação. Só a presença constante da professora de teatro de Helsinki, Kati Outinen, em todas as suas obras, faz dos filmes de Kaurismäki um modelo dessa difícil arte, pois vá criar algo convincente sem se mexer, sem mover linhas de rosto, sem “dar”, sem violência, sem nada.

Basta uma cena, em que Kati enfim convence o imbecil do adolescente tardio que estava muito a fim de um relacionamento. Sua personagem Tatiana conviveu com o cara dias e noites numa viagem. Ele consegue entender o assédio amoroso e senta ao lado dela numa parada da viagem. Kati/ Tatiana, então, vagarosamente, coloca a cabeça no ombro dele, ao som de música comovente. É de despedaçar o coração. Alta intensidade dramática em apenas alguns segundos. Pessoas sem a mínima chance enfim se encontram, e abrem a possibilidade de uma vida a dois.

Aliás, a presença da música é fundamental na obra deste cineasta. Bandinhas perdidas da Finlândia profunda, que se apresentam em palcos improvisados, pequenas orquestras que animam bailes em restaurantes, rocks estranhos do fundo do baú, músicos antiqüíssimos tocando acordeão, vozes obsoletas e encantadoras pousando nas cenas, além de performances magistrais como o solo de piano no início de Nuvens Passageiras.

Kati, prêmio de melhor atriz em Cannes de 2002, por Um homem sem passado (já comentado aqui no Diário da Fonte) é impressionante em todos os sentidos. A travadíssima gerente de restaurante no maravilhoso Nuvens Passageiras (1996), é um papel antológico. Sua seriedade, determinação, força, imobilidade, tristeza profunda fazem parte da paisagem extraordinariamente colorida, num ambiente pcitórico over, como se o contraste de cores básicas fosse a exacerbação que falta para fazer deslanchar o gesto preso dos personagens. Trata-se de pintura exercida por um mestre: cada filme do grande cineasta é uma exposição visual de primeira grandeza.

Markku Peltola é outro ator básico em Kaurismäki. Em O Homem sem passado (que analisei como uma denúncia do sucateamento econômico da nação provocado por esses flibusteiros que deveriam estar na cadeia, para usar a indignação de José Saramago), Markku nos conquista exatamente por não esperarmos nada dele. O cara é meio troncho, desajeitado, inexpressivo, duro em tudo. Como consegue reproduzir personagens tão diferentes quanto nesse filme, do sujeito que perde a memória, e o cozinheiro alcoólatra em Nuvens passageiras? É porque interpretação é trabalhar intenções e não dar ou comer em cena.

Um aspecto interessante do engessamento do gesto em Kaurismäki são os diálogos decorados, que denunciam a natureza das invenções do roteiro. Não são conversas naturais, a não ser que a falta de brilho das pessoas seja confundido com uma outra natureza. No curto episódio de Ten Minutes Older (The Trumpet), Dogs have no hell (2002), Kati e Markku fazem o jogo de cena de um casal que foge da Finlândia para a Rússia, mas antes, por exigência dela, ficam noivos. Eles conversam como se fosse num teatro de escola amador. Parece, mas não é. Kaurismäki compõe a artificialidade das situações para deslocar a cena para a autenticidade, por mais estranho que isso possa parecer. Funciona!

É o que eu já disse sobre o faroeste: coisas que jamais acontecem e que são absolutamente verdadeiras. Serve para Kaurismäki, o criador dos velhos roqueiros finlandeses bebedores de vodka e café que não conseguem se relacionar com as mulheres; o casal que perde emprego e móveis e acaba dando a volta por cima num negócio próprio; o cara que esquece tudo e recompõe a vida numa outra dimensão pessoal e coletiva; o casal que se compromete numa aliança antes de abandonar a pátria.

Eis Kaurismäki, um cineasta essencial que só aparece por aqui em mostras de cinema e em algum ou outro dvd. Mas que deveria estar em horário nobre, em televisão aberta, para que todos possam aprender com ele, se emocionar, estranhar e viver um pouco a arte de transgressão e talento que corre pelo mundo sem que a gente tome conhecimento.

RETORNO - Imagem desta edição: Kati e Markku imóveis, um diante do outro, em "O Homem sem passado".

BATE O BUMBO - Miguel Duclós divulga mais uma Atualizações Consciencia: "Publicamos no site um trabalho acadêmico sobre Immanuel Kant, de Francisco Nunes de Carvalho, estudante de filosofia. BLOG - Postei vários ensaios curtos sobre filosofia e literatura no meu blog. Para ler (e comentar, claro), visite. ARGOS - O sistema Argos de filosofia foi modificado. A indexação e pesquisa não é feita mais através do nosso sistema interno, que estava desatualizado, mas agora por uma busca personalizada google. Configuramos o Google para pesquisar somente nos sites, selecionados, que são os que estavam anteriormente contemplados. O endereço para acionar o serviço continua o mesmo".

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