20 de maio de 2008

O QUE É MÚSICA?


Nei Duclós (*)

Música é a capacidade de ouvir. Você pode ser Mozart, mas se não houver quem escute sua obra, ela não existirá. Ninguém compõe para as altas esferas, mas para que o som se propague até um receptor. A música foi assassinada quando descobriram a mina de ouro que é a banalização da batida do tambor. A sofisticação foi reduzida ao pó das baterias, e o tunc tunc se consolidou na indústria imediatista. Mais tarde, “evoluiu” para o baticum eletrônico, que é a entronização surtada da redundância.

Tudo o que música produziu, como melodia, harmonia, ritmo, foi deixado de lado para que imperasse a obsessão pelo Mesmo. O eterno presente, que devora a memória, precisa de reiteração permanente. O entorno dessa barbárie é a parceria gritada de duplas infernais. É preciso atordoar os ouvintes até que não reste uma nesga de civilização auditiva. A vítima então está pronta para digerir o atordoamento interminável. O objetivo é destruir a capacidade de ouvir. É o assassinato implantado da música.

Ouvir significa sonhar, pensar, aprender, enlevar-se, transcender. Tudo isso não serve para nada, pois é preciso que a linha de montagem obedeça aos ditames do entretenimento doentio. A coletividade injeta nos tímpanos a mais intensa avalanche de porcarias auditivas. Dá para perceber de longe. Os ouvidos estão cobertos por grossa camada de fuligem. É para enlouquecer, mesmo, já que pessoas saudáveis seriam incapazes de se submeter ao matadouro cultural.

Nos supermercados ou lojas onde você cai na asneira de entrar, existe a distorção pop de vozes intermináveis, que se esganiçam até o osso. Você está louco para fugir dali, mas não sabe por quê. Aí descobre que é a monstruosidade despejada pela caixinha de som, construída pelo horror de DJs invisíveis, mas mortais. E não ouse reclamar. O sorrisinho maroto de que você está por fora irá se manifestar.

O que resta para as pessoas que conservam um mínimo de lembrança da cultura musical? Num restaurante de bom gosto, num concerto fino, numa sala de espera de luxo, eis que chega até nós os acordes da bossa nova, do jazz, do blues, ou mesmo da música sinfônica, erudita, romântica, barroca. São pílulas caras, pois cobram os tubos para você compartilhar um pouco do que restou, as ruínas desse acervo popular maravilhoso, que sumiu do mapa e hoje está enterrado no coração sem esperança.

Se você tem a coleção completa de Frank Sinatra, Tom Jobim ou Doris Day (sim, ela é o máximo de doçura na voz), de Pixinguinha, Baden Powell ou Maysa, se você gosta de Brahms ou Edu Lobo, então você está condenado a escutar bem baixinho, nos intervalos da guerra. No fundo, você continua preso. Jogado dentro de uma cela por inúmeros malfeitores, como o Ruído e o Gritalhão, é como se houvessem decretado a pena de morte. Mas ainda é possível ganhar dois minutos no pátio para tomar sol. Lá, você respira fundo e consegue lembrar aquela frase musical perdida. Do tempo em que você escutava. Quando havia música.

Por que perdemos a capacidade de ouvir? Porque entregamos o país para a bandidagem, e isso foi há mais de quatro décadas. Quando abrimos mão do Brasil soberano. Quando achamos que poderíamos viver sem a música a feita por nós, e pelo melhor dos estrangeiros. Que deveríamos nos entregar para sempre nas mãos de quem domina o espaço público e loteia nosso ouvido como se fosse um terreno abandonado.

RETORNO - (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 20 de maio de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. Este texto teve chamada de capa na edição impressa, que está nas bancas. 2. Imagem de hoje: Doris Day.

RETORNO EXTRA:

Cartas sobre a crônica "O que é música?"

O EXEMPLO DE VIENA

Um excelente artigo. Tudo e verdade o que o artigo fala. E impossível de entrar numa loja, num ônibus ou deixar os janelas abertas em qualquer lugar sem ouvir os batidos e palavras repetidos gritando ao nossos ouvidos.O grande musico Hungaro Kodaly falou: se você não aprende ouvir boa musica ate 4 anos de idade , vai ser difícil de aprender mais tarde, E a mesma coisa de aprender linguas, Ate uma certa idade nos adquirimos a capacidade de ouvir sons e descartamos outros que nao sao usados ao nosso redor, Mais tarde vai ser dificil de ouvir e pronunciar tal sons. Seria ótimo de acostumar nossos filhos de ouvir e apreciar boa musica mais cedo possível.
É muito interressante. Os músicos têm filhos músicos( Mozart, bach, Strauss etc) Porque os matemáticos ou pintores não tem filhos matemáticos ou pintores? A resposta é: não é hereditário, mas costume, Ouvir música boa em casa faz você gostar de música. Por que em Viena tudo mundo fala baixo e não grita, não buzina?

Helga Szmuk
Aposentada
Florianopolis Sc

IDIOTAS GRITANDO

Nei
Parabéns pelo artigo. Enfim mais alguém não suporta idiotas gritando.
Abraços

Gilberto Soares França
Caçador - S.C.

BATE-ESTACA

Nei, sou eu de novo.
Parece premonição. Ontem no salão que frequento a proprietária perguntou à manicure que me atendia se ela havia trocado a estação do rádio. A mocinha disse que sim. Estávamos escutando um tipo de música a que chamo de "bate estaca", essas a que te referes na coluna de hoje. Aproveitei para perguntar a ela se gostava deste tipo de música, o que foi confirmado prontamente; e mais, que ela só escuta isto. Perguntei se na escola ela teve aulas de música, ou
qualquer instrumento musical, e a resposta foi não. Acredito que nem o Hino de SC ela deve conhecer, o que é uma ironia em se tratando de ex-aluno de escola pública.A música é uma dos maiores atrativos do ser humano. Veja a atração que os nossos indígenas tinham pelos sons produzidos pelos invasores europeus. O que se pode esperar desta geração que configurou o seu mental nas batidas do "tunc-tunc"? Somente imediatismo que descamba em violência, pois agimos como pensamos e sentimos (isto é da Kabbalah).
Estou levando o DC com a tua coluna para mostrar no salão.

Da leitora e assinante, Maria Teresa/
Floranópolis - SC

SÃO JOBIM

Caro Nei,
Muito feliz fiquei ao ler sua coluna do DC desta data. É mais uma das ( poucas e raras) vozes que hoje manifestam-se para protestar contra a mediocridade e primitivismo grosseiro a que se reduziu a música ouvida no Brasil (que não difere muito do eu se ouve pelo mundo).
Lembrei-me até de um pequeno texto que publiquei em um jornal da região onde moro ( Tubarão), intitulado “Meu São Jobim, me acuda”.
Quanto a “entregarmos” o Brasil, isso é fato. E é antigo, não? Hoje a ameaça de aniquilamento já chega a nossa Língua Portuguesa, substituída de maneira irresponsável ( e hiper incentivada pela mídia ) pelo inglês vulgar. O mesmo inglês que impõe músicas de péssima qualidade aos nossos ouvidos.
Parabéns pelo texto, que além de crítico é belo. E se eu for útil, nessa “cruzada” , conte comigo.

Demetrio Nazari Verani
Tubarão - SC

TUNC TUNC

Nei:
Como faz todas as semanas, você mais uma vez traduziu o sentimento das pessoas de consciencia em palavras, contextualizando as coisas num esfera macro. Tambem sofro com o "tunc tunc" dos jovens e dos sertanejos gritões das empregadas e pedreiros ( só esqueceste de citar os odiosos pagodes). É triste tambem o fato de termos de ouvir musica imposta nos shoppings e supermenrcados. Acredito que o ser humano precise de um mínimo de silencio e vazio para criar algo relevante para o mundo. Será que um dia voltaremos a ouvir belas melodias no rádio dum vizinho? Obrigado Nei e não desista. Abraço do
Rodrigo Cunha, 31 anos.
Florianópolis - SC

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