20 de agosto de 2007

O VENDEDOR DE CERCAS





Nei Duclós

Preciso contar a história de Lê, o vendedor de cercas. Quem me lembrou dele foi a mulher que reencontrei e que estava brigada comigo. Ela, ou eu, tinha aprontado algo que não consigo identificar, já que tudo isso me foi soprado num sonho (o que não significa que seja invenção minha). Brigamos depois de nos dizer algumas coisas. Era um assunto relacionado, talvez, ao comportamento profissional em determinada situação, que não me agradara.

Possivelmente uma reportagem mal costurada, um atraso na entrega da matéria. Desavenças comuns neste ofício complicado. Quantas vezes levei duras de chefes de qualquer gênero? Mas, insisto, era tudo um sonho, e nada tinha a ver com meus ruídos reais (pelo menos eu acreditava nisso). Parece que ela aceitou, relutante, as críticas, e foi-se embora, não sem antes virar para mim e me falar de Lê, o vendedor de cercas.

“Ele era muito seu amigo”, me disse, quase num tom de censura por eu não recordar de ninguém que tivesse um nome parecido ou estivesse envolvido com tão estranha ocupação. Ela se referira a Lê na primeira vez em que nos falamos nesse reencontro desastroso. Mas eu não prestei atenção. Só depois, quando pronunciou a palavra amigo, me veio subitamente a visão de alguém que estava confinado numa profissão que não lhe dizia respeito. Uma pessoa interessada em literatura e que lera alguns clássicos que eu ignorava.

Meu desconhecimento em relação a autores obrigatórios fez com que Lê gastasse seu latim por um bom tempo em bares perdidos de periferias ocupadas por essas gigantescas empresas de comunicação, que se recolhem longe dos bairros habitáveis para economizar e fazer sofrer seus jornalistas.

Talvez Lê fosse uma daquelas pessoas que puxaram conversa comigo quando eu tomava uns rebites em pleno fechamento. Uma cachacinha nordestina, uma cerveja gelada, tudo para esquecer a obrigação de fazer títulos, ler textos alheios, aturar chefes, cumprir prazos. Lê viu que eu não estava satisfeito e veio me falar de coisas que a princípio me pareceram interessantes, ou seja, estavam fora do meu circuito medíocre de jornalismo metido a besta.

Ele me falava de grandes alambrados, cercas gigantescas que precisavam ser levantadas para cercar latifúndios ou então pequenas propriedades prósperas assustadas com o avanço da miséria e da violência. Isso começou a acontecer, acredito, nos anos 80, há muito tempo, portanto. Era o início da avalanche que tomou conta do país e Lê era o cara certo no momento certo. Costumava ser convocado em todos os cantos. Paulista da Mooca, adquiriu vários sotaques para se adaptar às exigências dos compradores e poder assim repassar alguma credibilidade.

Quem compra precisa acreditar no vendedor. Se Lê falasse um bom gauchês avançado, tornava-se irresistível, principalmente nas novas fronteiras, onde proprietários de terra subsidiados passavam do acampamento para a roça bem fornida. O vendedor de cercas assim fazia a mala, mas algo faltava dentro de si. Faltava gente com quem conversar sobre sua secreta paixão, a literatura.

Eu estava aberto a confidências, já que sempre vivi isolado, apesar de morar numa profissão dedicada ao evento, ao bafafá, à vitrine. Eu me recolhia como no primeiro ano do Jardim da Infância, que chamaram depois de pré-primário. Quieto, longe dos colegas, voltado para a parede, eu vivia no mundo ao qual me acostumara dentro de casa. Fiquei assim a vida toda, apesar de me violentar escolhendo uma profissão exatamente contrária a mim.

Foi por isso talvez que fugi tanto de empregos e cidades. Queria ficar longe, no pátio, onde levantávamos um CTG de madeira velha, de caixote e lá fazíamos os churrascos dominicais. Mas essa solidão e recolhimento tinham um preço. Precisava compartilhar, falar sobre o que via e lia. Poderia ser Lê ou qualquer outra pessoa. Eu queria mesmo era conversar com gente de verdade, longe de redações atulhadas de inúteis iguais a mim.

Fiz assim uma amizade profunda em algumas biroscas que eu e Lê dividíamos. Ele confessava que jamais poderia largar seu bem remunerado emprego, que lhe proporcionava condições de comprar livros antigos, aqueles grandes, de letras redondas e margens infinitas. Lamentava não saber russo para ler Tolstoi e Tchecov no original. Prefiria as traduções antigas, de escritores brasileiros, do que estas mais recentes, a cargo de tecnocratas da linguagem. Preferia que os russos passassem antes pela suavidade do francês e só daí para a nossa língua, como acontecia antigamente. Havia também o encanto de edições dos anos 40, 50 ou 60 a exibirem aquele ranço lusitano que o Pasquim, a partir de 1969, demoliu.

Lê, o vendedor de cercas, era muito meu amigo. Mas como sou um ingrato e deixo pessoas como deixo cidades, tinha me esquecido completamente dele. Foi preciso que num sonho, alguém que eu desconhecia completamente e que me contrariara em alguma coisa, me avivasse a memória. Qual seria a ligação entre a mulher do sonho e Lê, o vendedor de cercas? Teriam filhos? Por que, em vez de brigar, não fiz perguntas, como qualquer criatura humana faria? Lê estaria no Exterior, em países remotos, da África ou Ásia, levantando alambrados? Ela o estaria esperando em algum porto? Lê aprendera, enfim, o russo? Estivera naquela parada onde Tolstoi sentou-se fugido da família, com mais de 80 anos de idade? Teria Lê escrito algum livro?

Cada personagem é um mistério. Esse me escapou, por eu ser tão distraído. Mesmo que eu volte àqueles bares da periferia, não poderia reencontrá-lo. Lê deve estar aposentado, conversando com escritores fugidos, na Jamaica ou em Bornéu. Ou estaria na vala comum de nosso amplo território, flagrado por um tiro de tocaia, por um inconformado proprietário que não gostou do serviço, ou de um vizinho que reclamava das medidas, das balizas, do material usado? Jamais saberemos. Só mesmo um sonho para trazê-lo de volta. Assim mesmo por um instante só, como quem lê um título.

RETORNO - Imagem de hoje: foto magnífica de Anderson Petroceli, fotógrafo maior da fronteira do Brasil Soberano.

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