23 de abril de 2007

UM CONTISTA NO LIMITE



Ricardo Peró Job apresenta seus personagens em várias situações limite: o velho que recebe uma indenização ao ser dispensado das suas funções na fazenda onde dedicou toda a vida; o produtor rural arruinado que encontra seu desfecho trágico num quarto sujo de hotel; o travesti apaixonado que se mata por desilusão amorosa; o guerreiro que poupa o inimigo porque este tinha a idade do seu filho, e acaba sendo vítima de sua própria decisão; entre outras situações, todas voltadas para o momento terminal de vidas endurecidas por uma lei oculta, que o autor não tenta decifrar, pois prefere reportá-la com a segurança dos escritores maduros.

A sereia do luminoso é um inventário dessa vida que reproduz, no espaço doméstico ou profissional, as grandes tragédias nacionais. É um livro trágico, que não abre mão da frieza do relato. A narrativa não lamenta a procissão funerária de elementos postos à margem do que é considerado normal. Prefere construir uma estante de fatos dolorosos, representados não só pelo perfil de existências jogadas no lixo, mas também pela disposição dos móveis, a descrição dos ambientes na cidade e no campo, as fachadas decadentes. As pessoas se defrontam com o Mal provocado em suas vidas e o impasse se reflete no abajur, no luminoso do cabaré, na festa corporativa. Tudo compõe uma não-sociedade, que não avança porque está travada em suas funções fundamentais, especialmente a de cumprir destinos.


Sem se iludir com o buraco onde estamos metidos, Ricardo prefere a lucidez pautada pela parcimônia. Nada explode em seus contos. Mesmo quando há suicídio ou despedida, as palavras que usa discorrem com solidez. É como se estivéssemos escutando um narrador veterano a contar causos que viu ou ouviu falar. Silenciamos, e deveríamos aguardar a água que sacia nosso vício, o final feliz. Mas parece que a roda prefere mesmo esse fluir de misérias, para justificar o próprio sofrimento. Saber que a dor impera na vida alheia é uma espécie de conforto mórbido, que nos mantém grudados na leitura.

Mas não parece ser esse o objetivo do autor. O que ele consegue é revelar uma porção do Brasil profundo, numa área determinada, a fronteira ( representação do limite), que nada tem a ver com a relação com estrangeiros, mas com esse cruzar permanente de umbrais cada vez mais assustadores. O cabaré, a guerra, a casa da infância, a relação complicada entre várias preferências sexuais são o mural humano que Ricardo Peró Job mostra com a segurança de quem escolheu um rumo para seu ofício e nele se aprofundou como quem planta para o futuro.

Pois, se os seus contos podem ser comparados a uma horta muito bem cuidada, a verdade é que Ricardo aspira ao latifúndio produtivo. Ele tem o manejo do produtor atento ao detalhe, mas aposta alto na sua vasta semeadura. É uma literatura ambiciosa, disfarçada por trás de um capão do mato. Lá se esconde um atirador primoroso, que mira o leitor desde a primeira frase. Não sabemos o que nos espera. Mas fatalmente será o estampido seco de uma tocaia, a do autor ainda submerso, que se manifesta pelo tiro quando tudo sugeria mansidão e quietude. A bala atinge o alvo: seu clarão de tempestade mostra o ermo de um país envolto na penumbra. Ela é capaz de resgatar a narrativa num galpão silencioso, criada na véspera de uma guerra.


RETORNO - Esta foi uma das minhas leituras citadas para o debate no próximo dia 3 de maio, no Circulo da Leitura, evento coordenado pelo poeta Alcides Buss, da editora da Universidade Federal de Santa Catarina.

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