7 de dezembro de 2006



O CONFLITO TRATADO COM GRANDEZA

O Natal não existia antes do Natal. Hoje se faz a festa muitos dias antes da data: presentes, jantares, abraços, votos. Quando eu era criança (uns 200 anos atrás) o Natal era na noite de 24 e o dia seguinte inteiro. Presente, só no dia 25, de manhã. A grande ceia, com o peru festivo, salada de fruta, champagne, cerveja, uísque e vinho, reunia família e parentada ao redor da enorme mesa, à meia noite, na virada da véspera para o dia. Hoje, as pessoas, parece, se desvencilham dos compromissos natalinos, antecipando tudo.

O bom é que sobra tempo para o melhor da festa: os filmes de Natal. São todos maravilhosos. Por mais babaca e infeliz que seja o filme, se tiver luzinhas, presente embrulhado, Papai Noel e essas baboseiras, é tiro certo. O motivo é simples: não há nada mais artificial do que o Natal. Votos de paz e harmonia num mundo em guerra. Então o filme de Natal rema contra a corrente, destaca o conflito que emerge nesse momento. Por ser conflito em confronto com a festa oficial, todo filme de Natal é um deslumbre. Desde a obra-prima de Capra, A felicidade não se compra (It´s a wonderlful life), até Anjo de Vidro, de Chazz Palmintieri.

NARRATIVA - Devido ao excesso de grana e poder, os americanos e europeus dispõem de recursos técnicos e humanos para fazer o que querem como bem entendem. Foi assim que eles transformaram os filmes de Natal num gênero, que aborda o conflito em tempos que deveriam ser de harmonia. Não lhes falta o principal: escritores, roteiristas, que decifrem o enigma que é colocar algo na tela e que funcione como cinema, seja do tipo que for. Se você pega uma obra como Germinal, de Emile Zola, e dali tira um filme soberbo com Gérard Depardieu, todo mundo é capaz de enxergar uma representação das grandes greves das minas no século 19. Mas existe a visão de Zola, sua arte, sua narrativa. Nós, o que temos? Escritores magníficos, mas nos falta essa visão grandiosa da nação e do seu povo. Tudo aqui tem que ser desconstruído. Brasileiro não presta, dizemos o tempo todo para todo mundo.

GARRINCHA - Ruy Castro, por exemplo, escreveu livros maravilhosos como Chega de saudade, sobre a bossa nova, e a biografia de Nelson Rodrigues. Mas cometeu um livro como a biografia de Garrincha, onde a maior parte das páginas estão voltadas para a tragédia do alcoolismo. Ou seja, Garrincha bebia e morreu por isso, ponto. O resto fica em segundo plano, principalmente a grandeza do personagem. O filme A Estrela Solitária é mais do que isso: é crime hediondo. Nele, Garrincha trepa, ponto.

SOMBRA - Garrincha, que na visão de Joaquim Pedro era a Alegria do povo, é no livro de Ruy o fígado podre e, no filme, que é baseado no livro, o pau grande. É de lascar. O negócio é chafurdar na sombra, esquecendo que Garrincha significa o esplendor de uma época, junto com Pelé. Assim como Pelé não é ET (por isso o filme sobre ele se chama Pelé ETerno), Garrincha não era uma estrela solitária (entendi, é a estrela do Botafogo, ok, mas fica sendo a metáfora da solidão do personagem). Fazia parte de um grande time, jogava ao lado de grandes craques. Era a expressão de um conjunto, de uma sociedade, de uma nação vitoriosa, não um bebum que se suicidou à toa no álcool. Os americanos tratam seus personagens que caíram em desgraça com extrema generosidade, pois isso faz parte da sobrevivência de uma nação. Não se pode enterrar o país todos os dias como fazemos. Até o Bobby Darin, que era um cantor de segunda, ganhou magnífica cinebiografia. Por que Mané tem que aparecer trôpego se esfregando em tristes carnes em todas as cenas e dando sorrisos marotos de grande comedor?

BAIXARIA - Para mim essas baixarias estão na cabeça de quem escreve ou filma. Não se trata de esconder o conflito, mas tratar o conflito como algo humano, e não um caso sem solução. A desgraça pode ser redimida, o conflito pode ser tratado com menos brutalidade. Isso não se faz. No fundo, é o velho ódio contra o Brasil Soberano: é imperioso destruir o Brasil e tudo o que ele significou.

RETORNO - Na foto maior, Susan Sarandon à beira do suicídio em "Anjo de vidro", de Chazz Palmintieri (2004). Na menor, a alegria de Garrincha, a imagem que fica.

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