5 de julho de 2006

O RESGATE DO SOLDADO INDALÉCIO





O soldado Indalécio, ferido, jamais descia do cavalo, pois precisava ficar sempre pronto para a guerra. Estava alerta. Avançava sobre as Gerais do sertão junto com um pequeno grupo de foragidos, homens, mulheres, crianças, idosos. Todos se retiravam de um grande combate contra a Coroa portuguesa e era preciso achar pouso para deitar raízes, sobreviver. Escolheram o vale do Javé, definido como território de posse por meio da divisa cantada. Funcionava dessa maneira: alguém subia num promontório, descrevia o cenário, determinava os limites e fincava o povoamento. Assim se deu o acontecido na terra apalavrada. Mas várias versões sobre a saga de Indalécio se entrecruzam e todas podem se perder para sempre. Urge resgatar a história, para enfrentar o pior dos pesadelos. As águas de uma barragem vão inundar tudo e só há um jeito de preservar o povoado: escrever, colocar no papel o que existia apenas na cabeça do povo.

A palavra de ordem é resgatar o soldado Indalécio. Era soldado, mas foragido; era valente, mas se borrava; era o fundador, mas não deixou como legado a paz ou o progresso. Mas era um dos nossos. Seja quem for Indalécio, tenha ou não saído correndo da luta, deixara ou não descendência, ele nos representa, a nós, povo de Javé. Precisamos resgatá-lo e é isso que a cineasta Eliane Caffé faz nesta preciosa obra-prima do cinema brasileiro da retomada, Narradores de Javé. É ver e assumir a cidadania perdida do Brasil soberano.

A crítica cinematográfica hoje precisa levar em consideração o making of. Essa lição gigantesca de cinema que é a divulgação dos bastidores muda para sempre a percepção que temos de qualquer filme. Por meio desse recurso, ficamos sabendo que a equipe passou três semanas dedicada a uma novidade na pequena aldeia de Gameleira da Lapa, no interiorzão de Minas: recolher o lixo. Isso deixou uma profunda marca no local. Basta ver o depoimento de uma moradora, que disse ter aberto os olhos para a necessidade de viver num ambiente limpo. Depois, é saber como os atores profissionais - José Dumont, na sua melhor e mais importante interpretação, Nelson Xavier, que desempenha o papel chave do narrador dentro da narrativa da diretora, entre outros - e amadores (o povo da Gameleira), construíram a história, que é uma composição pictórica em várias camadas. A primeira é o filme em seu esplendor de luz e ação, a obra que fica e garante a permanência do que ameaçava sumir debaixo das águas. A segunda é o encontro numa curva da estrada, em que desconhecidos escutam alguém que traz a vida encoberta pela paisagem e o tempo. E a terceira, barroca, é a percepção dos narradores, entrecortada de mitos e versões.

O que José Dumont faz nesse filme é digno de uma antologia universal do cinema. Ele se supera, o ator talentoso e persistente, que encontra na obra o ambiente para demonstrar todo o seu repertório. Ele encarna o intelectual da aldeia, o único que sabe escrever, com mais talento do que caráter, como nota o ator no seu depoimento. Ele cria uma saraivada de definições sobre tudo ao redor, misturando palavras da modernidade com a realidade arcaica do povoado. Sua representação corporal é uma enciclopédia brasileira de gestos, uma seqüência memorável do melhor de Câmara Cascudo. O manco, o bêbado, o ladino, o aproveitador, o desesperado, o covarde: tudo em José Dumont conflui para a brasilidade perdida, que ainda pulsa no último bastião do país, o povo isolado e fugitivo.

Eliane Caffé define seu cinema como de guerrilha, pois tudo foi feito em apenas três meses. Dá gosto vê-la dirigindo: ela é dura, entusiasmada, criativa, determinada. Desempenha o papel dos protagonistas e coadjuvantes, mostrando entonação, falas, rompantes. Há explosão de energia na estiva do cinema, a carga pesada que, como ela mesmo diz, precisa conviver com a suavidade no momento em que a câmera começa a funcionar. O povo que a acompanhou e fez parte do filme - e que se sentiu incluído pela primeira vez na sociedade brasileira - pegou rapidinho essa contradição entre dureza e leveza. Daqui para frente, só olhando para trás, diz um morador, já saudoso das filmagens, no momento em que o trabalho acaba.

Tudo vai por água abaixo, menos o filme, que fica. O povo sobrevivente segue seu rumo. O escritor da aldeia decide enfim trabalhar na memória. Indalécio foi resgatado, seja o país que for, desde que seja nosso. Um país para ser amado de verdade e de fato. E não sucumbir diante do circo de vaidades que, ao perder sua principal atração, insiste em se manter usando bandeiras adventícias. Somos brasileiros, do vale do Javé. Indalécio é o cara que precisamos resgatar todos os dias.

RETORNO - Imagem maior: José Dumont como Antônio Biá, o escritor alcoólatra que tenta fugir do seu ofício, vai em direção do povoado submerso, quando acaba assumindo o livro encomendado pelo povo.

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