26 de maio de 2006

A ORIGEM DAS GRANDES QUADRILHAS





Que o Comando Vermelho surgiu no presídio de Ilha Grande nos anos 70 devido ao contato entre prisioneiros comuns e políticos é um fato conhecido, mas o filme Quase dois irmãos, de 2004, leva essa revelação às portas de uma epifania. Os presentes que os reis magos da diretora Lucia Murat nos trazem são o ouro (ou a grana que define papéis sociais insolúveis e incomensuráveis), o incenso (a fumaça do fogo generalizado que queima as gerações desde o golpe de 64) e a mirra, o antisséptico que pela lucidez lava a ferida aberta que jamais cicatriza. Porque esse filme tão premiado e incensado retirou-se para um lugar oculto, como se carregasse um estigma? Será porque revela, vertendo do contato com a esquerda, a origem das grandes quadrilhas, que hoje tem no PCC seu maior destaque? Será porque é mais uma obra que mostra a traição de alguns ex-combatentes, que enriqueceram depois de sobreviver ao cárcere e à tortura? Será porque Cidade de Deus fez sombra a esse documentário em forma de ficção, filmado de maneira crua e composto por um quebra-cabeças circular, que nos traz de volta o que queríamos esquecer e nos leva adiante como um acidente de trem?

GUERRILHA - O filme tem site razoável, com todas as informações mais importantes. O intertexto nos liberta da necessidade dos tradicionais serviços. Sempre impliquei com o enorme espaço ocupado pelos serviços. Houve uma época em que isso era um pesadelo. Havia uma febre de serviços, como se o jornalismo fosse o serviçal dos leitores e servisse de vitrina apenas para o que produz mercadoria. Não nos interessa a mercadoria, a não ser como reflexão. O que pega é o que pseudo-marxismo e os lobos do capital dizem que não existe, ou seja, o humano em toda sua escassez e divindade. Fiquei impressionado que jamais tinha ouvido falar nesse filme, que economiza décadas de perguntas por trazer de maneira explícita o resultado da militarização da sociedade imposta pelo golpe de 64. Lembro até hoje o dia em que insinuaram para eu entrar na guerrilha. Me mostraram um revólver, que estava escondido no sótão. Morava numa república, na época, e declinei do convite.

EXEMPLO - Disse que tinha sido criado entre armas, já que meu pai fora da Brigada Militar e era caçador. Também por um tempo comercializava armas de caça, até que foi denunciado por um concorrente, em pleno arbítrio nas mãos dos militares. Alguém que tinha assinado um manifesto pó-Prestes nos anos 40 não poderia vender armas na fronteira, sob pena de o regime cair como um castelo de cartas. Imagino seu Ortiz dando uma tosse mais abrupta e fazendo desmoronar todo o horror da repressão, aquela cortina de tristeza que baixou sobre nós e ainda não nos abandonou. Seria o máximo. Bastava um peido do Brizola no Uruguai para que a direita ficasse de prontidão. Uma tosse do seu Ortiz teria efeito parecido. Mas ao mesmo tempo em que ele me ensinou a atirar, me deu o exemplo de alguém que tem armas e não é irresponsável. Nunca houve acidente com tiro na minha casa de Uruguaiana. Tínhamos um arsenal para fazer uma revolução, mas dali só saiam debates, palavras, gargalhadas e choro, quando a conversa atingia a sensibilidade de alguém. Mas nunca guerra. A guerra se fez contra nós e não a confrontamos como os guerrilheiros ou os criminosos.

TIROTEIO - Decidimos ficar excluídos desse tiroteio e estamos aqui, às portas de uma nova eleição, vendo a direita fazer de tudo para continuar sua obra de destruição do Brasil. Quero que os heróis da nossa humanidade precária se levantem, dêem aquela olhada-fuzil que os mais velhos davam contra nossos desaforos quando crianças. Quero que se levantem todos ao mesmo tempo e tussam juntos, para varrer o trágico veludo que encheu nossa vida de sombras. Traga de volta o sol, meu pai, e contigo todo um contingente de camaradas, rindo do que fizeram um pouco antes, com os cartuchos vazios, os cães exaustos e as perdizes minguadas de um safári que não pegou quase nada, mas serviu para fazer de cada amigo uma peça sagrada desse convívio que perdemos. Somos hoje reféns do nosso medo. Não possuímos mais o dom dos guerreiros que se impuseram pela moral e que nos velavam o sono quando sonhávamos com a vitória.

RETORNO - Imagem de hoje com Caco Ciocler e Flavio Bauraqui em " Quase dois irmãos" : vítimas e algozes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário