6 de março de 2006

TALENTO A SANGUE FRIO





Reconheci Philip Seymour Hoffman numa madrugada dessas, quando o Programador do Traço, no auge da sua missão demolidora (a de colocar bons filmes quando todos vão dormir) pôs no ar, para seu próprio desfrute, o Perfume de Mulher, com Al Pacino. Apesar de ser uma refilmagem do Profumo di donna, com o magnífico Vittorio Gasmann, esse filme americano consegue ser tão bom quanto o original, graças a Pacino, o maior ator vivo. Quero comentar a ponta que Seymour fez, o papel do garoto mimado sacana que tenta destruir seu colega num tribunal escolar. Seymour já está pronto, ainda muito menino (ele nasceu em 1967 e o filme é de 1992), mas com sua marca: o espírito destruído de uma elite, com os dois pés no Mal e que ao mesmo tempo nos humilha e fascina. Ele fez isso como ator coadjuvante em O talentoso Ripley, em que engole o filme protagonizado pelo anódino Matt Damon. E agora, ator consagrado vencedor de Oscar por Capote, entendemos melhor sua biografia: ele é também um premiado ator e diretor de teatro. Ou seja, Seymour é um profissional raro, completamente oposto aos seus pares, esses galãs cevados a maizena.

CULT - Seymour tem uma inteligência poderosa, uma percepção aguda da sua arte. Pegou uma brecha: a personalidade complicada de pessoas que aparentam ser vilãs, mas que apenas revelam ser humanas. Em Ripley, ele é o filho de milionário, solto em Roma, disponível para tudo, que abraça e beija o personagem pobretão e fingido que entra no círculo dos bem nascidos. Seu personagem conhece os papéis sociais e persegue Ripley, que não passa de um espião da família rica. Ele é o Mal bem posto, a sociedade de classes vista da cobertura, que usa essa privilégio com o maior desplante. Com o desaparecimento do camarada de farras, todas as suspeitas caem sobre a diferença de classe encarnada no novo protagonista e é aí que Seymour revela seu talento dramático. Este ator explosivo mas de sangue frio já tinha dado um show em Quase famosos, em que interpreta um jornalista cult e underground, guru do foca que tenta vender uma matéria para a revista Rolling Stone. Nesse papel, uma pré-estréia de Capote (para usar um recurso do anacronismo, o de projetar o presente no passado), ele é Lester Bangs e nos deslumbra com sua competência. Nós realmente acreditamos que ali está o jornalista desiludido e terrível. Seymour assusta com o que desvela das mentes brilhantes e perigosas. Capote é a sua festa, sua consagração.

ELITE - Interpretar pessoas complicadas, a elite intelectual, política e financeira, é uma das especialidades da América. No Brasil, é uma tristeza só. Temos atores especializados em escravagismo, que é o máximo que nossa pobre cultura consegue suportar. Não temos interpretações seguras e marcantes de pessoas que fizeram História. O JK de Wilker é de dar dó. Normalmente, os gente fina da produção visual brasileira são um bando de ricos, no tom dado por Mario Lago quando lhe perguntaram sobre seu novo personagem numa novela. É mais um rico, disse ele, e disse tudo. Como na América todos são ricos, o buraco é mais em cima. É preciso descobrir e revelar o que há de humano nas pessoas com algum poder. Muitos tentam e dão com os burros n'água. Mel Gibson no papel do milionário que tem o filho seqüestrado, por exemplo, é ridículo. Seymour no papel do playboy americano em Roma, enfrentando Ripley, é assustador. Sua crueldade implode em cena. Não é para qualquer um. Precisa talento, fúria determinada, contenção obsessiva, certeza do que se está fazendo. Tudo isso Seymour tem. Há tempos não me alegrava com um Oscar de melhor ator. É o prêmio para uma carreira, de alguém que só terá 40 anos em 2007.

AMERICA- Volto ao tema Nuestra América. A diferença entre a América gringa e a dita latina, é que eles são uma nação, nós não, somos um amontoado de hispânicos cucarachos. Nós, vírgula. Não somos hispânicos e não vivemos em Nuestra América. Chavez, fora. Nasci e me criei na fronteira com argentinos e uruguaiaos. Respeito e muita distância. Allá y acá. Essa história de ser loco por ti, América deu para a bola. O Tropicalismo foi uma forma de desengessar a MPB, de resgatar vetores perdidos e de projetar uma identidade internacional mais condizente com a complexidade do país. Mas virou uma grande arapuca. Carlinhos Brown ser Carlito Marrón é de chocalhar os intestinos.

RETORNO - Na imagem, Seymour no papel de Lester Bangs em Quase famosos.

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