26 de fevereiro de 2006

OMBROS DIURNOS DA LUA





Essa é a diferença entre a noite que nos revela e o dia que nos seqüestra. A civilização só existe quando há Lua. (Crônica publicada neste domingo, no caderno Donna DC, do Diário Catarinense).

Nei Duclós

A Lua flutua na manhã com sua túnica transparente caindo pelos ombros. É uma roupa formada pela neblina que o excesso de luz bordou ao redor, talvez para cobri-la diante do escândalo de aparecer assim, quando as estrelas já se despediram e o forro de veludo da noite sumiu de vista. Ela está acordada por algum motivo e pousa no algodão do ar com o rosto quase impassível. Noto que está transfigurada no céu sem nuvens.

Talvez, por ser de dia, nos ache estranhos, nós que a amamos tanto quando o denso forro da noite desce sobre os telhados. E nos enxergue andando penosamente numa civilização de metais, em meio a barulhos que jamais formam uma nota. Andamos de costas para essa presença estranha no limite do Verão inesquecível. Todos se voltam para algum objetivo, esquecidos da Lua, ainda embalada por algumas canções e seduzida pela capacidade que temos, sem o testemunho do Sol, de sermos de outra natureza, mais perto da criação.

Essa é a diferença entre a noite que nos revela e o dia que nos seqüestra. A civilização só existe quando há Lua. Ela se acostumou ao nosso lamento, ao olhar que lançamos, da varanda, para o brilho que emite. Acompanhamos seu vôo noturno, ocupados em tecer metáforas e compor memórias. Não somos nada disso quando acordamos. Ficamos dependurados em trens de carne exposta em fuligem, nos atropelamos pelas calçadas cada vez mais estreitas, avançamos sobre nossos semelhantes como se fôssemos uma tribo de bárbaros em fuga.

De costas para a Lua, nos amontoamos nos escritórios e tentamos tirar dos outros o que mais nos falta: o insumo da sobrevivência escassa, enquanto perdemos aos poucos o viço e somos acompanhados pelos moços, que olham penalizados o corpo exposto assim sem cerimônia.

Mas, trafegando pelo mundo insano, guardamos o que temos de luar. Por isso sentimos que ela vem nos visitar com imenso espanto. Ela não sabia que as criaturas poderiam um dia sair debaixo da sua saia. Que podíamos resgatar a princesa num pátio diurno e no dorso de um potro mau levá-la para o prazer que só existe nas nuvens.

Ela se diverte com isso, a Lua, mestra dos disfarces. Imaginava que tinha apenas a companhia consciente das bruxas, já que dos bêbados jamais levou a mínima fé. É fácil derrubar na calçada alguém cheio de álcool na cabeça, mas é preciso respeitar as donas dos caldeirões, as antigas senhoras com poderes sobrenaturais. No passeio no Sol a pino, a Lua disfarça a surpresa ao descobrir nas gentes o que imaginava ser apenas conversa jogada fora em serestas antigas. As pessoas são capazes de sair dos lençóis de linho para palmilhar o pó da ingratidão, nessa vida sem lua. De desviver, se é possível conjugar esse verbo, até o limite das preocupações.

Agora sabe que tudo pode acontecer na terra que ela enxerga a distância. Nesse espaço que roda diante de si, nessa terra misteriosa de olhos de água e tremores de fúria, há mais mistérios do que pode sonhar.

A aparição diurna é fruto dessa vontade de nos conhecer melhor, de decifrar nossos segredos. Mas ela é apenas a Lua, não uma divindade. É flagrada pelo impacto de um dia do Verão terminal e aparece assim, na sala de conferências, ainda tonta de sono, encantadora em magnífica vestimenta de festa que se estendeu até estrela Dalva. É a Imperatriz que irrompe nos negócios de Estado, colocando todos os homens de pé e as mulheres em breve reverência.

Ela flutua então de pés descalços, a Lua, esse soberbo encantamento que nenhuma palavra é capaz de descrever em sua totalidade. Nem mesmo a poesia, irmã gêmea, que diante dela se curva como se tivesse encontrado uma rainha, soberba em tirano esplendor. Sabemos apenas que ela, de dia, surge do nada e para o nada retorna, como se fosse mágica. Talvez, diante do susto que provoca, tenha recorrido a alguma maquiagem excessiva, que por ser feita de puro cristal, a limpou definitivamente do céu. Este, ermo de lua, volta a nos pertencer, como um presente devolvido no dia seguinte ao rompimento de um noivado.

RETORNO - 1. Marco Celso Viola me envia foto de 2004 em que aparecemos, junto com Paulo Markun, dando entrevista para a TVE do Rio Grande do Sul, na praça da Alfândega, em plena Feira do Livro. 2. Tabajara Ruas anuncia, na Zero Hora deste domingo, nossa parceria em dois livros: "Esperando John Wayne" e o primeiro volume da trilogia "Diogo e Diana na Ilha da Magia". Escrevemos essas obras em 2005, o Ano da Mudança.

Nenhum comentário:

Postar um comentário