5 de junho de 2005

FOUCAULT NOS PÉS DE ROBINHO




A intenção é o segredo de Robinho. Ele pedala em cima da bola para ocultar seus verdadeiros propósitos, mascarar a vontade que direciona a jogada, impedir que o adversário decifre o que vai fazer. Isso evita que o outro leia e entenda a sua linguagem (se encararmos o futebol como um acordo de signos articulados). É o que dá ler Foucault na mesma tarde em que a Seleção brasileira faz quatro a um contra o Paraguai. Em As palavras e as coisas (que viajou da nossa biblioteca em São Paulo para o sítio do Capivari pelas mãos de daniduc), o texto de Foucault apresenta a palavra proposição (e não intenção) como o motor da criação da linguagem, que faz dela uma representação (ordenada pela gramática) da representação (os sinais que surgem pela ação da natureza e do corpo humano). Ou seja, o segredo não está no drible, o gesto reconhecido por todos, mas naquilo que faz do gesto um relacionamento de significados. As regras (o futebol) já estão postas, a identidade (o futebol brasileiro) já está consolidada, o estilo (a maneira de jogar) reconhecido, mas cada jogo é a possibilidade de gerar o discurso (o conjunto de ações criado em campo) por meio da intenção e levá-lo para o infinito. Robinho esconde de quem o enfrenta o tipo de lance que vai escolher ou inventar. Esconde o seu discurso. Ele sabe que a bola não está no centro da trama, nem o drible, mas o raciocínio, rápido como a luz.

BLOQUEIO- A solução está em conseguir ler o que o adversário escreve. Se for Roberto Carlos que vai bater na bola, a leitura é fácil: ele vai chutar na barreira ou para fora. Com Ronaldinho Gaúcho ou mesmo com o Rogério, do São Paulo, existe um segredo: a bola ocupa a região não visível para ser colocada. Lá, nesse espaço irreconhecível, é que acontece o gol. Não é porque a bola caia em folha seca ou o goleiro não a alcance. Simplesmente é porque o espaço criado pelo toque do artilheiro não existia um segundo antes de acontecer. Esse espaço se revela quando, em pleno vôo, a bola escolhe o lugar impossível de entrar e aí encontra o canal que a leva para as redes. Vocação, talento e conhecimento realizam a obra. Um dos muitos recursos foi reconhecido por Galvão Bueno: Robinho deu um passe típico de futebol de areia, levantando a bola por indução, com o pé, para o centro da área. Ronaldinho tem um acervo igualmente significativo. Ele consegue passar por três porque veio do futebol concentrado, o de salão, onde há menos espaço e, portanto, mais exigências para furar o bloqueio. Traz a bola com a sola para si, mas solta em seguida. Com o outro pé desvia-se da intenção do adversário em desarmá-lo. Joga todo o corpo para um lado enquanto o pé procura outros caminhos, procurando se desvencilhar de uma rede. Rola novamente a bola e bate em diagonal para trás, de calcanhar, nos pés do companheiro, como fez num jogo pelo Barcelona.

GARRINCHA - Garrincha pode nos ajudar a entender melhor esse embrulho. Há um texto clássico de Armando Nogueira que descreve o drible, sempre o mesmo, do grande craque, que sai invariavelmente para a direita. Todos sabem que ele vai sair por ali, escreve Nogueira, e é exatamente isso que acontece. Significa que o drible não importa, o que vale é a quantidade de intenções que Garrincha projeta na jogada. Ele tinha uma maneira única de fazer isso. Fica parado, por exemplo, fingindo que a iniciativa deveria ser do adversário, já que jogo é movimento, não imobilidade. Isso já desconcerta o outro. Este, que esperava o arranque do artilheiro, fica confuso quando vê Garrincha ficar imóvel. Como o gênio está um pouco longe do objeto de desejo, há também a intenção de fazer crer que existe disponibilidade, parece o velho pega-pega: quem chega primeiro? Mas o adversário sabe quem Garrincha é, e também pára. Então Garrincha imita os gestos de um arranque como quem vai sair jogando. Isso gera uma dúvida no oponente, pois se Garrincha se mexeu, e rápido como é, poderá fatalmente driblá-lo. Então o adversário coloca também todo o movimento para cima do craque. Mas Garrincha, depois de se retorcer todo fingindo movimento, pára novamente. Volta-se ao início da jogada. A idéia é confundir o outro. O craque então se aproxima novamente e toca levemente com o pé, quase não tirando a bola do lugar (isso desfoca o olhar do adversário, que presta atenção no que não importa, nos gestos de Garrincha). O que está explícito é a intenção (falsa) do jogador de sair dominando por algum lugar (mas essa decisão ainda não foi tomada, é preciso aguardar o adversário batido). O outro então não agüenta mais e cai em cima dele. Está derrotado. Garrincha já fez o serviço. Não deixou que decifrassem sua linguagem, entendessem sua intenção. Aí é só sair pela direita e reencontrar a glória.

RETORNO - Meu amigo de décadas, e jornalista de primeiro time, Clovis Heberle publica primoroso texto sobre José Lutezemberg. Vale a pena ler.

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