1 de novembro de 2004

TODOS OS RECURSOS DA LINGUAGEM


Literatura não é um vício romântico que deva ser combatido no jornalismo. A visão que se tem de literatura ainda é a do século retrasado, a de que servia para saraus e beletristas e faria parte da cultura bacharelística enfrentada pelo positivismo, primeiro, o modernismo, depois e pelo pragmatismo das linguagens corporativas hegemônicas agora. No fundo é isso o que acontece: as falas do poder eliminaram os recursos narrativos do jornalismo. Qualquer reação contra isso é acusada de jornalismo romântico. Literatura é o uso intensificado de todos os recursos da linguagem. É, portanto, ferramenta fundamental do jornalismo, como descobriram os grandes do newjournalism americano, com Truman Capote à frente, e os repórteres da revista Realidade e da imprensa alternativa dos anos 60 e 70, como Hamilton Almeida Filho, Narciso Kalili e Caco Barcelos, entre tantos outros. Mas isso agora é considerado passado. Claro, estão ótimos assim, entronizados na mediocridade bem remunerada.

DIVINDADE - Há uma polêmica do Comunique-se sobre isso. Meu texto Eclipse na grande área foi considerado pelo Delmar Marques um exemplo de como pode se escrever diferente no jornalismo, como podemos usar os recursos da literatura para abordar um fato. A verdade é que ninguém ligou a morte do zagueiro com o eclispe (tradicionalmente um fator de maldição, no imaginário de povos e nações, fartamente usado pela literatura e o cinema). Por que fiz isso? Porque moro em Florianópolis e diariamente cruzo 35 km de ida e 35 km de volta para ir trabalhar. Vi então a lua surgindo por trás dos morros e depois, enquanto via o jogo, saía para o quintal para ver como se desenrolava o evento no céu. A ligação foi espontânea, natural. O noticiário colocou os dois acontecimentos em separado. Jogo é jogo, eclipse é eclipse. Por que? Porque moram em grandes cidades e só viram o eclipse pela tv ou jornal. Mesmo que a Globo mostrasse a lua de vez em quando na sua transmissão, fica difícil para quem não está perto do céu, como aqui, acompanhar o que realmente ocorria naquela noite. Fiz então uma justaposição dos dois eventos, porque isso gritava em mim. Não é, portanto, um romantismo ou uma invenção. É uma forma de abordar os fatos, é jornalismo mesmo, mas sem as amarras dos editores medíocres que consomem nossas energias com suas teorias fajutas sobre o que o talento produz (e é atirado no lixo). Fazer jornalismo assim é usar todos os recursos da linguagem. É trabalhar as representações, é mergulhar no mistério das coincidências e das percepções. Não é fazer uma página sobre o eclipse e em outra, muito distante, chorar a morte do zagueiro. É colocar a divindade em plena redação e lutar por isso.

INSURGÊNCIA - No debate do Comunique-se, Delmar Marques e Luiz Oscar Matzenbacher tocam na ferida: a de que estamos mais atrasados do que a sétima cidade da Bolívia, que, como todo o resto do mundo, menos o Brasil, usa de tudo nos jornais, cultura e informação o tempo todo, cadernos culturais magníficos, reportagens super bem escritas. Aqui jogamos isso fora. Por que? Porque o talento desmoraliza. Um imbecil com poder, muito bem sentado numa editoria, tem pretensão a ser mais coisa do que é. Para isso pisa em quem estiver na frente e destrói qualquer esforço de trabalhar direito. Sempre digo que a mediocridade fareja o talento como predador fareja a carne. Ele se alimenta da energia alheia, não para fazer dela trampolim para qualquer coisa, mas para deixá-la apodrecer, para matar pelo prazer de matar. Sugam o entusiasmo alheio como vampiros de sangue astral e ainda teorizam sobre seus feios hábitos. Costumo me perguntar como eles conseguem convencer as cúpulas, já que isso levou à ruína dos jornais e revistas. Estão todos endividados, na mão de expedientes asquerosos de malho por mais dinheiro. Os horríveis donos se identificam com os horríveis editores e fazem um círculo contra a transcendência, a narração bem feita, o que implica uma coisa que eles abominam, a ética (não a palavra ética, tão usada por eles, mas a ética mesmo, o viver sem sacanear, o estar com a consciência limpa).

SAÍDA - Qual a solução? Insistir, escrever direito, ou seja, usar todos os recursos, pressionar, publicar de qualquer forma, insistir, provar que é possível, batalhar, dar a cara para bater, pagar o mico de ser chamado de obsoleto, romântico, alienado. Não sucumbir às manobras radicais da direita entronizada no poder total na comunicação. Mostrar o melhor texto e dizer bem alto, como Antonio Maria: pior do que isso não consigo fazer. Os leitores serão então libertados desse presídio que se tornou a brutalidade na imprensa nacional.

Nenhum comentário:

Postar um comentário