21 de novembro de 2004

CELSO FURTADO, ESCRITOR, PRESENTE


Demorei um pouco para falar da passagem do Mestre, porque vislumbrei o destampe provocado pela sua morte, quando uma enxurrada de besteiras avassala o país com todo o tipo de frieza e indiferença e falta de compostura. Apropriar-se de uma biografia como esta faz parte da luta política pelo poder. O governo vangloria-se, com declarações falsas, da proximidade com a figura ilustre. Chovem textos sobre o grande economista que se foi, o intelectual sem par. Prefiro guardá-lo no coração e na cabeça como um escritor, que merecia ganhar o Nobel da Literatura, segundo Eduardo San Martin. Economista é o Delfim Netto, o Paulo Nogueira Batista Jr., a Maria da Conceição Tavares. Intelectual é o Antonio Candido, o Roberto Schwarz. Celso Furtado é mais. É o autor de textos fundamentais do Brasil soberano. E por ter sido um dia expulso do País, apesar do bem que sempre fez à nação, é um dos nossos heróis da Pátria.

CONTOS - Os magníficos Contos da Vida Expedicionária, que inaugura sua autobiografia, publicada em três volumes pela Paz e Terra, são representantes da mais alta literatura brasileira. São totalmente calcados na sua experiência como integrante da FEB na Segunda Guerra, mas tem o toque do gênio, do criador, que começa uma história assim: Pode-se fazer um exame de consciência no curto período de um cigarro. Ou capaz de traçar um personagem dessa maneira: Mário levantava aquelas mãos grandes, que me pareciam complicadas como bordados antigos, e de dentro do seu macacão enodoado de graxa e malcheiroso queria me explicar certos aspectos sutis da decomposição italiana. São instantes magistrais do talento, tanto o mecânico intelectual, o soldado negro que vingou a morte de uma inocente, a mulher que o narrador defende da ira fundamentalista, e o tenente Cláudio, descrito assim: Era evidente que o Cláudio sofria dessa doença, que tem certa gente refinada, de pôr a cabeça para trabalhar irresponsavelmente, como um catavento. Quando li esses contos, neste ano, fiquei impressionado como eu desconhecida um escritor tão importante da literatura brasileira, pois colocava Furtado nas gavetas que me impuseram e que era sugerida fortemente pela sua biografia. Mas já tinha lido seus textos sobre globalização, que , como tudo o que escreveu, tem o perfil de obra clássica (aquela que merece ser estudada em classe, como ensinam os historiadores).

SONHO - No capítulo seguinte a esses contos, A Fantasia Organizada, Furtado conta como migrou da literatura e do Direito para a economia, mas levou na bagagem esse ofício que nos assalta numa curva da vida, o de escrever sempre e de legar aos contemporâneos e pósteros a carga bruta e esclarecedora da nossa presença sobre a terra. Portanto, em vez de seguir os necrológios de Celso Furtado, é melhor ler seus textos, que nos enchem a alma de orgulho e luzes, porque é do Brasil que trata, no mundo que nos cerca, e é do Brasil do futuro que cuida em projetar, planejar, descrever, sonhar. Dizem que o Brasil ficou mais pobre depois de sua morte. Como pode uma coisa dessas? Depois da vinda de Celso Furtado entre nós, ficamos muito melhores. Ele se foi, vítima de um ataque cardíaco depois de se manifestar sobre a demissão de seu indicado, Carlos Lessa, ao BNDES. Morreu no front, o expedicionário da palavra que nos resgata do escuro. O talento e a grandeza de Furtado, como historiador da nossa formação econômica, apenas reforça essa idéia de que o magnífico escritor nos legou um trabalho que vale por uma semente de infinita capacidade de germinação. Basta tirar o pó que querem acumular sobre sua lucidez para descobrirmos o quanto sofreu, o quanto tentou influir nos governos e como foi sempre voto vencido, esse gigante que agora arranca lágrimas de crocodilo de autoridades mesquinhas.

RECADO - Transcrevo um trecho do conto Humor versus bom gosto, de Celso Furtado, em que o tenente Cláudio explica para um americano como a coisa funciona (éramos cidadãos de um país soberano naquela época): É difícil para nós, latinos, conformarmo-nos com a pouca atenção que vocês dão ao gosto. Porque é através do gosto que se exprimem as formas mais elevadas de vida: a arte, a sociabilidade, o amor, a admiração, o respeito. Os padrões de educação que vocês adotam, se preparam instrumentos eficientes, limitam demais os horizontes ao homem. Refiro-me ao homem comum e não à gente de pedigree. É preciso que vocês percebam que a capacidade do americano para improvisar e agir com independência fora da rotina nos prende tanto a atenção quanto a eficiência com que ele funciona dentro dessa rotina. Nós vemos o verso e o reverso da grandeza da América. Quando vejo hoje jovens super felizes e orgulhosos porque estão migrando para os países ricos, onde se sentem mais valorizados, lembro essa força que tínhamos e que Celso Furtado nos lega como seu mais importante tesouro. Honra e glória aos heróis da Pátria.

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