14 de julho de 2004

A PALAVRA BATE UM BOLÃO


Nei Duclós

O futebol tem tudo para dar errado. Colocam 22 marmanjos num espaço limitado para trabalhar uma esfera que escapa dos pés. O objetivo é acertar o núcleo do reduto adversário, mais limitado ainda. Só se deve usar as mãos em casos excepcionais. É lógico que esse jogo tende a ser irregular pela própria concepção e natureza. Só existe algum equilíbrio se houver sintonia total entre os jogadores de cada time, alguns craques que sabem o que fazem em campo, o espírito de luta que não deve diminuir em nenhum segundo, a competência dos técnicos. Ainda deve-se levar em consideração o que rola fora desse esquema, como o gramado, o estádio, as torcidas, os dirigentes, os árbitros. O que resta para o jornalismo, diante desse monstro rebelde? Apenas a palavra usada com maestria e precisão. A paixão, no caso, deve ser pela linguagem, e não pelas camisetas.

SANTOSX FLAMENGO - Houve um milagre ontem neste clássico. Se durasse até cinco minutos antes de terminar, seria um brilhante zero a zero. Estava em disputa dois adversários que lutavam por motivos opostos. Um, o Santos, queria a liderança, conseguida depois da vitória por dois a zero. O outro, o Flamengo, não queria a lanterna, onde acabou ficando, depois da derrota. O jogo remou contra todas as expectativas. Tinha tudo para ser mais uma sonolenta e burocrática obediência à tabela, mas o que vimos foi o verdadeiro futebol do Brasil, ofensivo a maior parte do tempo, tão disputado que resultou inclusive na fratura da perna de um dos jogadores o Flamengo. Um empate sem gols seria o retrato de um jogo perfeito, onde a ausência no marcador refletiria a garra dos dois times. Havia grandes craques em campo, como Robinho e Basílio (que decidiu a partida, dando passe para o primeiro gol e fazendo o segundo). Mas o importante foi a superação demonstrada pelos dois times. Desconfio que a ausência da transmissão da Globo, que a tudo reduz a um dèja vu, já que ele dejaviram tudo e tudo sabem e prevêem, foi fundamental para o sucesso da partida. Vi o jogo pela Record e sintonizei um pouco sem a mínima esperança. Descobri então o futebol como texto. Sem querer cair na tentação de dividir em dois grandes parágrafos um jogo tão complexo, que equivaleriam aos dois tempos do jogo, propus que o drible seja a solução de linguagem mais ousada, a que consegue vencer o adversário (o branco da tela ou do papel) e deixa o gosto bom de coisa bem feita; o tranco no adversário seria o momento em que se deve reescrever aquela parte do texto; a falta é um falso ponto final, não planejado; o chapéu é a metáfora mais bem sucedida, o carrinho é o lugar comum. Um técnico como Luxemburgo, que acertou o Santos depois de um período ruim do treinador que o antecedeu, pode ser encarado como o editor de texto que precisamos ter dentro de nós. Ele azeita os jogadores-palavras, os seduz, convoca e grita na hora certa. Abel, que passa por péssima fase, também teve seus méritos, pois conseguiu peitar o time branco resgatando a tradição rubro-negra, a que não entrega-se diante de qualquer dificuldade. Saiu na lanterna, seu texto talvez tenha ido para o lixo, mas o resgato agora como exemplo de um trabalho invocado, duro como deve ser e brilhante, pois transformou o jogo numa verdadeira aula. Se não de futebol, pelo menos de jornalismo.

CRAQUES - A definição de craque feita por Pelé é perfeita. É aquele que bate um bolão em qualquer posição, inclusive na de goleiro, como aconteceu com ele, que não deixou o Grêmio ganhar num torneio, depois de ocupar o gol, tornado vago pela contusão do titular. Quando você, por contingência, é obrigado a encarar desafios que não estavam na sua agenda, aproveite a chance para demonstrar força onde você nem era considerado. Seja um craque na edição, no texto, na reportagem, na pauta. E saindo da imprensa, arrebente criando uma revista empresarial, inventando um evento, redirecionando um site. Não imite aqueles jornalistas que só possuem dos grandes profissionais a casca e jamais a competência. Fuja de quem olha para o infinito com a mão no queixo e deixa-se enlevar por um ar de sabedoria que no fundo não tem. Desconfie de quem anda apressadamente na redação, que isso é o marketing da pressa, são preguiçosos que gostam de aparecer mas nada sabem fazer. Também olhe de viés para os que afrouxam o nó da gravata, fecham os punhos e os colocam em cima da mesa, com as mangas arregaçadas, olhando para o pobre repórter como se ele fosse um criminoso. Tudo isso é cabeça-de-bagre. O verdadeiro craque é aquele que não faz marketing pessoal, que diz que nada sabe, que insiste em querer se aposentar, que te deixa trabalhar, que te elogia quando necessário e te dá uma dura quando houver motivo. Esse é o cara. Esse é o Pelé, e esse mestre é o que você vai levar no coração como o maior tesouro da sua vida profissional. Fique à altura do que você sugeriu com sua garra nos treinos. Entre em campo no dia da grande final. E voe como um deus grego em direção à bola para fazer aquele gol que estava dentro de você e ninguém sabia que existia. Seja craque, seja herói.

RETORNO - 1. Faltou dizer: hoje tem Seleção. Espero que a Globo malhe bastante o time para o professor Parreira dar aquele cala-te boca no segundo tempo. O lançamento de Alex para Adriano, que navega por cem quilômetros até atingir uma agulha, pode ser visto como a frase perfeita. 2. O sonho de um antigo revolucionário enfim se concretiza: graças a Urariano Mota, que por sua vez evoca a sua Recife no site espanhol/internacional La Insignia, estou no Pravda!Viva John Reed!

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