10 de junho de 2004

O RENASCENTISTA RADICAL



O clássico romance de Mino Carta, O Castelo de Âmbar, é o mais arrasador mergulho no Brasil contemporâneo, escrito por alguém que faz parte do núcleo dos principais acontecimentos que vazam da política para a imprensa e vice-versa desde os anos 60. É muito mais do que um testemunho, é uma operação de resgate de um navio, a verdade, que se não fosse enunciada, naufragaria para sempre.

GUARDA - O silêncio aterrador que a grande imprensa cerca este livro é o retrato de tudo o que Mino descreve com a lucidez de quem se deparou com o dragão e não baixou a lança. Não que o personagem principal pinte-se como herói e dos fatos extraia apenas sua luminosidade mediterrânea. O que sobra em Mino é a instintiva fidelidade aos fatos, e nisso ele se inclui quando pinta-se como um crédulo que para entender melhor quem o cerca precisou sofrer o corte fundo da traição e do arrivismo. Ao redor de Mino na sua brilhante carreira profissional e pessoal, arranjaram-se inúmeros ourives de uma mina inesgotável, o poder dos néscios num país de impunes. Fui testemunha de como conseguiram usá-lo e as suas publicações, como trampolins para o poder. Privei longos anos com Mino na revista Senhor, numa convivência, descobri depois, invejada por inúmeros jornalistas que precisavam dessa experiência para abrilhantar suas coruscantes carreiras jornalísticas. Fui um colaborador sem pose, daqueles que aprenderam com o mestre e dessa vivência retirou o sumo do ofício, ao qual jamais chegaria por nenhuma outra mão. Nunca poderemos sonhar com a possibilidade de nos equiparar aos seus mais importantes colaboradores, mas é bom dizer que a trajetória de Mino é estrada de largo espectro, onde se abastecem de víveres essenciais jornalistas de todas as procedências, inclusive eu, que vim de longe, de uma fronteira conflagrada de um tempo de guerra, de uma família que jamais sonhara em ter entre os seus alguém desta profissão. Deserdado do direito divino à profissão, tive a sorte de compartilhar, por um trecho grande dos anos 80, o tremendo esforço que Mino e sua equipe fez para dotar o país de uma imprensa democrática numa fase em que o Brasil definia seus rumos, que infelizmente se desvirtuaram e desembocaram no fracasso de FHC e na atual desilusão petista. Esforço que fez, não. Que, felizmente, ainda faz, com sua solitária e imbatível CartaCapital.

VOCAÇÃO - Ao tomar conhecimento de versões que omitiam ou distorciam a grandeza da participação de Mino na chamada redemocratização, o herói afiou seus floretes e partiu para a desforra. Dá a sua versão dos fatos, perfil acabado do que realmente aconteceu. Fico por enquanto no território da imprensa, já que no da política o tema é vasto e tema para outro texto - sem falar no que é mais importante, na construção do romance, que é a aula de um renascentista radical. O renascentista é um inconformado com as trevas medievais e torna-se, por dever de ofício e destino, um arquiteto de nova civilização. Para isso procura protagonistas à altura do projeto. Mino achou que encontraria ouro ético em seus contemporâneos. Em alguns deles, como Claudio Abramo e Raymundo Faoro, realmente desembocou em porto seguro. Mas para o restante, ou sua maioria, nada viu, apenas o deserto. Por isso, vocacionado para a pintura - já que a arte é a única vocação - foi empurrado para o jornalismo por contigência e nesta abraçou a profissão pelo horizonte que propunha, numa época em que havia esperança de construir algo. Tornou-se mais tarde romancista de alto calibre, porque assim é o caminho da voz interna que chama os eleitos. Romancista, pintor e jornalista, Mino é um estrategista do possível capitaneando um navio insensato de coragem. No seu livro, ele elenca cada dardo atirado sobre sua imagem e os desfaz com a galhardia dos que possuem a consciência limpa. Não se fala aqui em inocência nem em culpa. Fala-se em grandeza, a de um dos raros entre nós e que ficará na História, porque para a História o empurram as incompreensões de todos os quilates. Silenciar sobre Mino agora é o mesmo que enterrar-se vivo. O deserto só sabe falar pó e secura. Contra o deserto, o Castelo de Âmbar ergue-se, majestoso, sem dar o prazer da acessibilidade a seu segredo (o de como pode ser real e ao mesmo tempo fantasmagoria) a quem quer que seja. Mesmo o autor que tenta dele se aproximar encontrará um punhado de violetas. É dessa têmpera que nascem os sonhos de quem não se conforma com a data de validade de uma vida, nem com a cegueira dos que se acham imortais e são apenas poeira.

RETORNO - Não deu para falar muito sobre o livro. Por isso continuaremos essa viagem para O Castelo de Âmbar daqui a pouco. O baú de Mercucio Parla é incomensurável. Nos arrebata e pode nos levar ao delírio de uma metáfora. O nome composto poderia ter uma vírgula no meio e um ponto de exclamação no fim, a sugerir o que o renascentista radical deveria ter dito no final de sua obra, inspirado por um conterrâneo não só ilustre, como eterno.

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