20 de junho de 2004

A BOLA PASSA POR TODO MUNDO


É a frase dos narradores descrevendo o lance mais comum do futebol brasileiro. A bola cruza o campo sem interferência e vai para a linha de fundo. Basta um jogo da Eurocopa - Portugal x Espanha, por exemplo - para que fique claro o mal que a cartolagem inepta e corrupta e o monopólio televiso fazem ao nosso futebol. O jogo transmitido pela Record - e narrada pelo número 1, Luciano do Vale - alterna plano geral, primeiro plano, zoom, contra-plongée, toda a cultura cinematográfica, para revelar cada detalhe e a riqueza de um jogo movido a proteína na primeira infância. Pela Globo, o apático Corinthians x Flamengo mostra o eterno plano geral com a bola sendo rifada pelos jogadores, ou enrodilhada nos pernas de pau que assombram as transmissões esportivas.

MASSA MUSCULAR - Ora, direis, somos penta. O que estou falando é que, em relação ao futebol, nos comportamos de maneira idêntica à extração do ouro e pedras preciosas. Tínhamos de sobra, extraímos até a medula e entregamos tudo para o estrangeiro. Ficamos com o granito, o calcáreo, a pedra vagabunda. Sim, direis, mas a Eurocopa está cheia de brasileiros, a começar pelo técnico de Portugal, Felipão (quando perdeu para a Grécia, murmurei: ele vai ganhar, ele não vai deixar barato). O que falo é que na Europa Kaká ganha massa muscular enquanto aqui vemos Gil e outros valores com as pernas arqueadas por falta de vitaminas na formação física. Predamos nossos jogadores, vendemos todos os que sabem manejar com a bola ainda com destes de leite e ficamos com a sucessão da mediocridade. Garrincha foi escolhido por Nilton Santos. É a linhagem do gênio, o melhor escolhe um outro melhor ainda. Aqui temos apenas idiotas que colocam para jogar excrescências que nivelam por baixo todos os times. Não há respeito nenhum a nada. Depois que pegaram um cartola, anos atrás, com a féria do jogo escondido no porta-mala do carro fica fácil entender o tipo de gente que manipula o futebol. Inventam esses certames intermináveis, que fazem os jogadores viajarem de avião várias vezes por semana, com jogos transmitidos às três da manhã. A Globo monopoliza tudo. Galvão Bueno reserva-se os melhores e mais importantes jogos e deixa os outros para os clebers machados da vida (a voz insossa, a falta de talento e vibração, bem na medida do temeroso Galvão). Obriga Falcão a falar mais rápido do que a luz, o que torna os bons comentários do craque incompreensíveis. E tem o Casão, que começa toda a frase com "É...", ou seja, sempre com o mando da fala, jamais se deixando empolgar pelo jogo, como se analisar futebol fosse dissecar ratinhos em laboratório - se tivesse competência cientifica para tanto. E fica de fora o magnífico do Valle, que felizmente de vez em quando dá o ar da sua graça com alguns jogos internacionais ou na copa do Brasil.

CORONEL - O modelo de Lula de poder é o do coronel do sertão - assim como o de FHC era o de presidente da República Velha. "Em que língua vocês querem que eu fale" diria este. "Venham todos vestidos de caipira", ordena o primeiro. O país em colapso vê diariamente o massacre da população na violência, no trânsito, no sistema de saúde. Os números do crescimento são fajutos: comparados com época de descenso, índices mais equilibrados saltam nos gráficos, avisa um economista na Folha. No lado oposto da gangorra, cresce a importância de Getúlio Vargas na política, na economia, na História. Coincidência? Não, lógica cristalina. Se aprovarem o mínimo de 275, está aqui a caneta, diz o coronelão, o que nos dá a impressão amarga que Julio Prestes - o candidato que não assumiu o poder devido à revolução de 30 - virou presidente na pele de FHC e foi sucedido pelo Zé Pereira, aquele manda-chuva que em Princesa já roncou, como cantou Luiz Gonzaga e como descreve Moacir Japiassu no seu Concerto para paixão e desatino. Aliás, falando em Japi, fiquei impressionado com a coincidência: na orelha do seu romance A Santa do Cabaré, escrevo que a literatura dele é água de corredeira que se solta por vingança depois de muito tempo represado, deixando um rastro de morte e destruição. Pois não foi na Paraíba de Japi que ocorreu o estouro da represa? Vou cuidar melhor das palavras. Fiquei assustado.

INFINITO - Visito a maior praia do mundo. Absolutamente solitária. O dia azul sem par e a espuma do mar lavando a areia ocre, como se a porção Cinderela de Iemanjá, por puro prazer, esfregasse o chão sem se importar com nossa presença. Mesmo com ventinho gelado, caio na água. No primeiro dia do inverno. Em cada ponta da praia, velam as pedras milenares de um Brasil anterior ao Brasil. O pássaro toma altura e cai como flecha na água, para ferir o peixe de morte. Recolhe o que sobra e voa. Faz tudo isso a poucos passos de mim. Pergunto: tudo isso é real? A lua nova que surge no crepúsculo confirma: mais um turno da magia desce sobre a ilha.

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