28 de outubro de 2024

AINDA DIGO

 Nei Duclós 


Tantos filhos que partiram 

Neste século morto 

Cheio de países que se agridem

sem nenhum direito

Um desses filhos é o meu

Que cedo foi-se


Que lá no paraíso onde se encontra 

se permita a paz que aqui não tinha

Para seu corpo de homem e menino


Pois é no céu que ele existe

Não há outro lugar


Por isso ainda digo seu nome

Miguel, que Deus mandou chamar


Não mudo de assunto 

É proibido esquecer


Nei Duclós

VOAMOS BAIXO

Nei Duclós 


Voamos baixo, nós os contemporâneos 

Não por incapacidade

Pois temos formação para alcançar as nuvens

Mas para escapar do radar


Assim, não reconhecidos, cruzamos cidades, mares e florestas

Carregando o pó de tesouros ignorados


Somos como as ruínas megaliticas 

Cheios de enigmas jamais decifrados


Perguntarão como conseguimos burilar a vida

Oferecendo pedras lisas cortadas por desconhecidas tecnologias


Um dia nos desenterrarão

Mas não vão descobrir o momento em que sobrevoamos o paraíso 

E saltamos de para-quedas


Nei Duclós

27 de outubro de 2024

TOMBO

 Nei Duclós 


Eu me escondo

Porque levei um tombo

Chama-se vida

De longos anos


Já fui humano

Hoje sou marimbondo

Mantenho a palavra

Com a mão ferrada


Não há motivos para encontros

Minha rua fica na Lua

Do lado oculto

Moro no cosmo com neblina


Tenho apenas a rotina 

Criado mudo

Com a gaveta cheia de escombros


Não se impressione

Guardo segredos

No bolso de um anjo


Nei Duclós

21 de outubro de 2024

MAQUIAGEM

 Nei Duclós 


Quem é você quando não me conhece?

Praia distante, bússola do leste 

Ar de quem não me vê e esquece 


Não gravas meu rosto, que não te apetece

No banco da frente estás ocupada

Saltas de repente em incerta parada

Vou até o fim da linha e volto desolado

Em qual casa te escondes na avenida lotada?


Moro no subúrbio, toco na garagem

Treino para uma futura serenata

Enquanto te maquias para um baile de gala


Nei Duclós

20 de outubro de 2024

O TEMPO COME

 Nei Duclós 


Tem dias que o Tempo come, voraz gigante

Quando está de porre, apetite podre


Não se satisfaz com tudo, quer a sobra

Leva embora o que sempre esqueço 

E faz um monturo de coisas pequenas 

Só de implicante e prevalecido


Eu não me importo, a não ser que carregue

Os raros momentos em que estive contigo

Isso me desespera pois só quando eu lembro

É que o meu amor por ti acontece 


Nei Duclós

17 de outubro de 2024

TEU NOME

 Nei Duclós 


Tão bonito o tempo contigo

Parece sonho

Sol de morno alento

Em sopro de clima ameno


A saia rodada beija tuas pernas

Que mostras prudente na distância dos joelhos


Nem precisa ser primavera 

Basta a manhã e seu farnel de vento

Pétalas que caíram ao relento

E se juntam às folhas de antigo outono


Vivo disso, coração amoroso

Tua palavra num sussurro autêntico 

Doce que me alimenta

Raiz de árvore, grãos de planta

Viceja o verbo que se fez teu nome


Nei Duclós

ENCAIXE

 Nei Duclós 


Encaixe perfeito 

No convite e no peito

Unidos no jeito

Sintonia extrema

Os corpos convictos

Prazer de estar juntos


Não é o que dizem

Se proibem ou aceitam

O evento transita 

Onde não se comportam

As leis não alcançam

Nem as armas sujeitam


É sempre surpresa

Mesmo antes de escrito

Renascer do dia

No ventre do escuro 

Voo permitido 

Em raízes de pluma

Ave marinha

Em pele de urso


Chamam de amor

Talvez seja o certo


Nei Duclós

15 de outubro de 2024

A VISITA

 Nei Duclós 


Tive pouco tempo para varrer a frente da casa onde moro no deserto. Por isso esse areal tomando conta dos canteiros. Mas pelo menos pus minha melhor roupa para te esperar chegando na velha diligência. Fiquei sóbrio em tua homenagem e te dei a flor mais agreste deste ermo conflagrado pelo destino. Chegaste com o rosto transfigurado, mulher que um dia me recolheu, ferido, nos escombros de uma guerra.


Nei Duclós

IMPASSE

 Nei Duclós 


Tudo é passado quando passas da idade

E a vida sépia define os  contornos da memória 


É o troco que recebes em pobres moedas

Os amores findos, a fuga da soberba 


O tempo te impõe a humildade 

Resta a vontade que tens de sobra

De adiar o desfecho, implicante bárbaro 


Nei Duclós

10 de outubro de 2024

CAMARADA

 Nei Duclós 


Agora parece fácil 

Que tens meu novo endereço 

E poderás encontrar-me

No almoço ou café da tarde 

PoIs disponho de concreto

Um corpo para o abraço

E nada nega que existo

Muito além da prosa e verso


Quero saber quando o tempo

Vier e eu desapareça 

Se será fácil me acharem

Entre memória e tropeços 

Na inútil biografia 

Oculta nos testemunhos 

Ditos de má vontade 

Em tantos contemporâneos 

Não porque sejam nocivos 

Apenas se sentem vivos

Fora da minha história 

E os rascunhos não resgatam

Detalhes de muitas datas 


Pois bem, amigo, aproveite

Que eu ainda aqui respiro 

Porque chegará a hora

Que alguém irá procurar-me

E verás que fui um cara

Nada especial, só um sujeito

De peito aberto, mais nada

Que no tempo bem antigo

Me chamavas camarada


Nei Duclós

7 de outubro de 2024

OURO E PRATA

 Nei Duclós 


Nossos corpos preservamos do olhar que tira a roupa 

Já vivemos bastante para saber do que se trata

Missão cumprida, prazer e descendência 

Somos ouro puro com os cabelos de prata


Para os moços lembramos que é  sagrado

O que vivemos no calor da tempestade

Porque o tempo se encarrega do transtorno

E a memória é a favor do que não mata 


Hoje imaginamos o que poderia ter sido

Mas é  só o que temos,  essas mãos no espaço

Tentando pegar o que agora  nos escapa

E só conseguimos quando Deus atende a porta


Nei Duclós

30 de setembro de 2024

TUDO CONTIGO

 Nei Duclós 


Tudo o que você faz eu gosto

Tudo o que você é eu curto 

Tudo o que você diz escuto

Tudo o que você sonha abraço 

Tudo o que você esquece passo 

Tudo o que você lembra assumo

Tudo o que perde procuro

Tudo o que você acha encontro

Tudo o que você joga apanho 

Tudo o que você quer eu tenho

Tudo o que você nega esqueço 

Tudo o que come eu sirvo 

Tudo o que você sofre apago

Tudo o que você ganha eu somo

Tudo o que você toca eu tremo


Nei Duclós

27 de setembro de 2024

FATURA

 Nei Duclós 


Flagrei-te moça enquanto eu veterano 

O tempo congelou teu rosto

E em mim escavou um reino

De vestígios sem importância 


Não importa, tudo é virtual neste século torto

Vivo no troco depois de pagar a conta


Minha esperança é namorar-te primeiro

Apagando a fatura do nosso desencontro


Nei Duclós

26 de setembro de 2024

 Quando partimos, deixamos o coração na chuva. Ele é anfíbio, respira por memórias.

Nei Duclós 

AMOR É VONTADE

 Nei Duclós 


Teu encanto é uma fina camada 

Que não sai com a roupa ou a maquiagem

Gruda como segunda pele

E assim permanece resistindo ao assédio 


Desperta contigo intacta

Apesar do gigante ao teu lado

Que não vence no auge do amasso

Se entrega, e o encontro dá certo


Amor é vontade

Tua essência é o que te cobre

Esse véu, segredo de seres tão bela


Nei Duclós

ACASO

 Nei Duclós 


Escapa de ti o que pensas ser destino

Algo substitui

Um susto, um desvio, uma sílaba 

Vida é o que o Acaso apronta

Quando atiça


Nei Duclós

21 de setembro de 2024

EM SEGREDO

 Nei Duclós 


Selecionei um trecho da tua imagem. Aquele em que te entregas em segredo.


Eu ia dormir, mas pensaste em mim. Não resisto a um chamado em voz alta.

    

Queres dar um tempo? Me passe alguns anos.


Como sou gigante, me tornei exilado da doçura. Então surgiste, flor de seda pura.


Agora sim, durmo contente. Fiz versos para povoar teu sonho.


 Como na tua mão, fada de outro mundo. Sou tua criação, ser errante.


Crio a esmo. Trigo com ervas do campo. Depois não colho, porque cansa muito.


O tempo nos reserva uma surpresa. Viajamos sós e nos reconhecemos no convés, depois de um cinema.


Você é tão adorável, estrela cadente.


Não sei o que estou pensando. Não costumo olhar o rastro do meu barco a remo.


Tens aquela postura de ter desistido. Mas te empinas para a frente, perfil de seios. Assim te entregas quando recitas o poema.


Não tenho profundidade, tenho cataventos.


Quando me conheceste, eu era outro. Agora que és outra, descubro que sou aquele.


Sou feito de abandonos. São tantos, espalhados por toda parte, que fácil me encontras.


Para não esquecer, me beije. A memória mora nessas besteiras.


Faça outra coisa. Que eu farei o mesmo.


Vou te mostrar minha coleção de borboletas. Só que todas voaram.


Todas as fotos são antigas. Somos um álbum de retratos.


Digo coisas sem sentido porque assim me sintonizo com vibrações fora do circuito.


Se és amor, levante a mão. Eu aponto em meu caderno de esperanças.


Nossa palavra é limitada pelo que somos fisicamente. Para extrapolar é preciso jejuar e só depois de 40 dias comer alfinetes.

 

Não somos objetos. Somos sujeitos ao desejo.


Mas vai piorar. Agora vou aparecer gigante sobre a cidade, como Godzilla cuspindo fogo. Saia do cinema correndo.


Também não gostei quando alguém me apresentou dizendo meu nome para mim mesmo. Achei over.


Perdeu a graça quando me viste. Faltava o rosto imaginado. Deste as costas e eu lá estava, imagem configurada pelo teu espelho.


É uma pena seres minha amiga. Poderíamos exercer o vale tudo da luta livre.


Vão rir de ti, não revide. Há mais graça na planta que imaginas florir do que na falsa armadura da razão e seus convites


Manténs distância lendo poesia. É um truque do teu não, lisinha.


Se perguntarem quem és, diga: solidão. Não vão acreditar, estrela do mar.


Fui rei para te fazer a vontade. Depois abdiquei, quando viraste voluntária na colheita do trigo.


Venci a guerra mas não ocupei o trono. Fiquei contigo, desvio de um exército.


Diga ai que eu fico. Não resisto ao teu capricho.


Lembre da beleza quando eu for embora.Peguei emprestado de tuas asas.


Aguardas, soberana, que eu me desperdice. Depois me acolhe, aos pedaços, em suas asas de espuma.


Meu poema reza no crepúsculo.


- Sou muito perigoso, disse ele.

- Morres de medo de ti mesmo? disse ela.


Nei Duclós

19 de setembro de 2024

COFRE

 Nei Duclós 


Guardo o que descubro pois não vale a pena 

Anunciar os segredos mais profundos

Não se percebe o que muda o mundo

Ou então há medo na imobilidade


Acumulo insights que bem poderiam

Fazer a diferença em vários assuntos

Pode ser soberba, penso usando o freio

E me calo no calor dessas verdades


Há também a chance de outros dizeres

Que acertam o ponto que vislumbrei sozinho

Melhor então deixar que o vizinho 

Ganhe o crédito que jazia abandonado


Assim me manifesto, recolhido a tempo

Sem usufruir de inúmeros presentes

Passo pela vida anônimo e frio

Meu único prêmio é manter a fonte

Das revelações dentro de um cofre


Nei Duclós

18 de setembro de 2024

TROCA

 Nei Duclós 


Quero voltar, só o tempo é seguro

Porque está feito como um fruto maduro

Dia perfeito em que tínhamos margem

Para o certo e o erro que enfim sobreveio


Quero voltar estendido no pampa

Lençol onde dormem os planos do vento

E o fogo se aquieta na boca da noite

Barulhos de bichos nas dobras da sanga


Sei que é mesquinho o desejo de infância

Depois que perdemos as amarras da terra

Prometo uma prenda ao chegar de surpresa

Em troca o perdão e o amor em sossego


Nei Duclós

ESQUECIDOS

 Nei Duclós 


Tudo o que vemos jogamos fora

Não no esquecimento

mas na memória

Guardamos o tempo sem serventia

Damos adeus todos os dias


Tudo se repete, daí a indiferença 

Minha tia deixou um estranho legado

Pilhas de caixas e vidros amontoados 

Tinham tampa, se justificava

Poderia precisar em determinada hora


Nunca usou tantos guardados 

Era una forma de grudar momentos

Que no fim se foram, como sempre


Dizem que no desfecho passa um filme nos olhos

Toda vida em capítulos de uma série única

Talvez nos reservem algo inédito 

Imagens que perdemos e que um dia voltam

Para nós, os esquecidos da miséria 


Nei Duclós

16 de setembro de 2024

RELENTO

 Nei Duclós 


Dormimos ao relento de um amor no começo. Complicado jogo de cobertas. Acordamos em alto mar, mortos de espanto.


Domar a vontade de perder-me. Mergulhar na luz que te desenha


Venha dizer, maçã e gerânio. Sopro macio, que cruza o oceano.


Nei Duclós

ESCUTO FLORES

 Nei Duclós 


Escuto flores ocultas na estação

Esperam passar o fogo nos jardins

Sabem que morrem se emergirem inseguras 

No mundo cultivado pela dor


Mas não suspiram nem gemem na opressão 

Das grutas sobre as nuvens invisíveis 

As que tardam a chuva


Dão voz ao vento com tontos perfumes

Convidam o céu no rumo do futuro

Possuem as palavras há tempos esquecidas

Paz, prazer, reflexão e vida


Só se concentram no frágil existir 

E isso é música composta na mudez

Parece estranho mas é assim que funciona

Mesmo na loucura e a insensatez


Eu ouço porque lembro como era

Na minha infância a doce primavera

E hoje na idade adulta ainda procuro 

onde estarão no tempo terminal


Elas se situam no meu pobre coração

Firmes no sonho apesar de todo o mal


Nei Duclós

DECISÃO

 Nei Duclós 


O que pode a palavra diante do assassinato?

O que pode o verso sem nenhum aparato

A não ser o poema e seu passo em falso?

O que pode o amor diante da fraude?

O poeta em adiantada idade?


O que pode a verdade se não acontece

Na mente do próximo e na vida afora?

O que pode o sonho em meio à catástrofe?


O que pode a oração sem a fé que a sustente?

Pobre coração que no tempo sofre

Quem virá em socorro se meu gesto tarda?


Devo uma resposta e para isso preparo

Não uma guerra mas algo mais forte

Minha decisão de não ser covarde


Nei Duclós

15 de setembro de 2024

ORAÇÃO DOS MELHORES DIAS

Nei Duclós 


Que o Senhor nos proteja da tristeza

Nos proteja do pânico 

Da desesperança 

Nos proteja do remorso e da raiva


Que nossa fé não seja credulidade

Que o amor não ceda à indiferença 

Que o crime se afaste

Que a vida se transforme 

Que o hábito não vire rotina

Que possamos exercer a arte

E viver da excelência do nosso ofício

E que nossas ações sejam livres e solidárias


Que o desejo não nos transtorne

Que o sonho nos ilumine

Que os dias sejam nosso avanço 

Em direção ao humano destino da salvação 


Assim seja


Nei Duclós

13 de setembro de 2024

SUMIDA

 Nei Duclós 


Faz o oposto do que digo

faz por gosto, faz por birra

me condena a ver navios

Some quando mais preciso


Nei Duclós

12 de setembro de 2024

VIVO

 Nei Duclós 


Vivo porque resisto e é bom

Porque tenho o dom

De ficar vivo


Da fase terminal desisto

Não quero dar o exemplo do final


Não que escolha o riso 

Como antídoto da dor

Todo drama é comédia 


Vibro na trama desta peça 

Sem valor

O que parece acabar começa 


Vivo porque a vida é um sopro

Como no tango Volver


Nei Duclós



PRESENÇA

 Nei Duclós 


Chegou sem pedir licença 

Com os ventos da manhã 

E ficou para sempre 


Não é apenas mulher

É um tormento

Quem pode com tua presença?


Passas a limpo

Meu pobre universo


Nei Duclós

PRISÃO

 Nei Duclós 


Ela me ensinou a cantar

A escrever versos de amor

A dizer, mesmo que doa

A sonhar sem ter vergonha


Depois foi-se embora

Pássara migratória 

Deixando-me só 

Com as lições aprendidas


O que faço com o que sei?

Aluno expulso da escola

Não há serventia

Para quem perde alguém 


Uso na poesia

O que ficou de refém 

Esse coração condenado

À prisão da liberdade


Nada possuo

Além da verdade


Nei Duclós

8 de setembro de 2024

DOMÍNIO

 Nei Duclós 


Não pense mais em mim, desista

Sei que é dispensável este aviso 

Detonamos a relação, deu tudo errado

A idade me expulsou do paraíso 


Não pense que direi meu endereço

Para vires me consolar na mocidade

Dar tapinha no ombro com a mão cínica


Tenho dignidade, fico na minha

Aprendi a dominar a tempestade 


Nei Duclós

TODA TROVA

 Nei Duclós 


Todo poema é de amor

Todo verso beija a boca

Toda dor vem do deserto

O sol é meu professor 


Navego em campo aberto

No corpo nasce uma flor

Amansei todas as feras

Antes de pedir-te a mão 


Escrever não é a meta

Mas viver ao teu comando

Planto trigo onde há pedras

E só canto sem motivo


Não é fácil ser cativo

Da mulher ou vocação 

Ao mesmo tempo ser livre

Escolho o que molha o chão 


Nasci num sopro de brisa

Nas sombras de uma floresta

Fujo do que não presta

Toda trova tem valor


Nei Duclós