18 de novembro de 2024

MEDIDAS

 Nei Duclós 


Não sou grande nem pequeno

Sou medido por minha fome

Grudo no sonho como um druida

No mundo da lua me recomponho


Sou o que resta de um poema no prelo

Que ficará inédito 

Publiquem ao saberem que amo


Nei Duclós

16 de novembro de 2024

AUSENTE

 Nei Duclós 


Preencho com vida falsa a vida verdadeira

Que assim se calça em fungo na madeira


O que faz falta é  tua voraz presença 

Ausente, matas o que não tem preço 


Nei Duclós

DATAS

 Nei Duclós 


Passo lotado por todas as datas 

Cicatrizes da História no corpo do Tempo

Heróis e eventos em marcos eternos

Que todos esquecem mas nos feriados se lembram


Já me preocupei em lavrar testemunho 

Mas eu era moço e qualquer coisa serve

Dias inúteis fazem redemoinho 

E eis que a verdade súbito aparece 


É quando descobrimos que não existe milagre 

Os anos são sempre os mesmos e ninguém toma a Bastilha

A vida é uma ilha, cercada de adeus por todos os lados


Nei Duclós

15 de novembro de 2024

CONVITE

 Nei Duclós 


Não posso ir a lugar nenhum 

O mundo não tem o que eu preciso

Que só acho aqui onde me visto

Com as roupas antigas sem registro

Além do alumínio e a porcelana 

Os tijolos nos canteiros do jardim 


Nos atos da criação que me pertence

Sou refém do que uso nos limites 

Arbustos, roseira e grama ruim

Casa de alvenaria que comprei

Quando tive recursos para tanto

Numa rua escondida e sem encanto 

Jogadores de bola no portão 


Fecho todo dia este porão 

E reabro quando chega a primavera

Um só verso faço por segundo

Teimosia do ogro veterano


Já fui moço como a poesia

Hoje caço a mesma fantasia

Venha ver o esforço de um ofício 

Esta obra com a letra de um convite


Nei Duclós

13 de novembro de 2024

LIBERDADE

Nei Duclós 


A ditadura pode vir de qualquer lado

Direita ou esquerda o sol nasce quadrado

Não se apegue à falsa coerência do passado

O crime muda enquanto permaneces parado


Bater no peito não te livra do pecado

A virtude também pode virar um fardo


A História é o que costura e não produz milagres

Mostra o que te cura se souberes ler os fatos

Não espere ser aceito na lúcida viagem

Vão te atirar pedras se cruzares a margem


Estarás sozinho nos dias decisivos

Nu com tua ideia, flagrante da coragem

Soldado em água clara, padrão da liberdade


Nei Duclós

ESQUECER

 Nei Duclós 


Esquecemos para que a vida caiba na memória 

Guardamos algumas gotas dos mares de outrora

Senão o peso do tempo vergaria no outono

E a lembrança não seria a doce primavera


Conviver com tanto dano nos deixaria exangues

Melhor selecionar o vinho dos instantes

Está caduco, dizem dos gigantes

Mas ficou leve, essa que é a verdade

Não precisa carregar arquivos dissonantes


Para muitos isso fica insuportável 

Pois como continuar se o que somos nos falta?

Brutal situação dos velhos que sobram


Não sei o que é melhor, confesso minha barra

Só sei que me esqueci 

É tudo o que me resta 

Os dias são cavalos a trote selvagem

Quem vai segurá-los sem estribos de prata?


Nei Duclós

12 de novembro de 2024

PARTIR

 Nei Duclós 


Fica tudo por fazer

Livros que nem comecei

Papéis sem nenhum valor

Memórias soltas no chão 

Mofo em paredes de dor

Corpo guardado em porão 


Fica tudo por fazer

Casa sem arrumação 

Graxa por todo o fogão 

Tralha de pesca sem uso

Caixas de parafusos

Inúteis manuais ainda intactos

Fotos e cartas nos sacos


Fiquei de um dia fazer

Deixar tudo pronto e partir

Mas me encontro numa estação 

Com um bilhete preso na mão 

Chove e te espero em vão

De repente há um choque de trens


 Nei Duclós

8 de novembro de 2024

CURVA

 Nei Duclós 


Todos os dias te dou bom dia

Flor, palavra ou coração vermelhinho


Você aceita o carinho

E me receita algo da Bíblia


Assim cultivamos nosso caminho

Trilha de mimos


Ainda te pego na curva.


Nei Duclós

EXAGERO

 Nei Duclós 


Acham um escândalo 

Celebrar um poeta só depois que morre

Enquanto viveu esquecido numa vida de sacrifício

Queriam vê-lo ostentando titulos

Cercado de reconhecimento


Considero um exagero

Exigir aplauso em vida

Um poeta sabe a barra do oficio

E nada espera na rotina da sua arte


E falando sério

O que faria um poeta com sua glória?


Nei Duclós

28 de outubro de 2024

AINDA DIGO

 Nei Duclós 


Tantos filhos que partiram 

Neste século morto 

Cheio de países que se agridem

sem nenhum direito

Um desses filhos é o meu

Que cedo foi-se


Que lá no paraíso onde se encontra 

se permita a paz que aqui não tinha

Para seu corpo de homem e menino


Pois é no céu que ele existe

Não há outro lugar


Por isso ainda digo seu nome

Miguel, que Deus mandou chamar


Não mudo de assunto 

É proibido esquecer


Nei Duclós

VOAMOS BAIXO

Nei Duclós 


Voamos baixo, nós os contemporâneos 

Não por incapacidade

Pois temos formação para alcançar as nuvens

Mas para escapar do radar


Assim, não reconhecidos, cruzamos cidades, mares e florestas

Carregando o pó de tesouros ignorados


Somos como as ruínas megaliticas 

Cheios de enigmas jamais decifrados


Perguntarão como conseguimos burilar a vida

Oferecendo pedras lisas cortadas por desconhecidas tecnologias


Um dia nos desenterrarão

Mas não vão descobrir o momento em que sobrevoamos o paraíso 

E saltamos de para-quedas


Nei Duclós

27 de outubro de 2024

TOMBO

 Nei Duclós 


Eu me escondo

Porque levei um tombo

Chama-se vida

De longos anos


Já fui humano

Hoje sou marimbondo

Mantenho a palavra

Com a mão ferrada


Não há motivos para encontros

Minha rua fica na Lua

Do lado oculto

Moro no cosmo com neblina


Tenho apenas a rotina 

Criado mudo

Com a gaveta cheia de escombros


Não se impressione

Guardo segredos

No bolso de um anjo


Nei Duclós

21 de outubro de 2024

MAQUIAGEM

 Nei Duclós 


Quem é você quando não me conhece?

Praia distante, bússola do leste 

Ar de quem não me vê e esquece 


Não gravas meu rosto, que não te apetece

No banco da frente estás ocupada

Saltas de repente em incerta parada

Vou até o fim da linha e volto desolado

Em qual casa te escondes na avenida lotada?


Moro no subúrbio, toco na garagem

Treino para uma futura serenata

Enquanto te maquias para um baile de gala


Nei Duclós

20 de outubro de 2024

O TEMPO COME

 Nei Duclós 


Tem dias que o Tempo come, voraz gigante

Quando está de porre, apetite podre


Não se satisfaz com tudo, quer a sobra

Leva embora o que sempre esqueço 

E faz um monturo de coisas pequenas 

Só de implicante e prevalecido


Eu não me importo, a não ser que carregue

Os raros momentos em que estive contigo

Isso me desespera pois só quando eu lembro

É que o meu amor por ti acontece 


Nei Duclós

17 de outubro de 2024

TEU NOME

 Nei Duclós 


Tão bonito o tempo contigo

Parece sonho

Sol de morno alento

Em sopro de clima ameno


A saia rodada beija tuas pernas

Que mostras prudente na distância dos joelhos


Nem precisa ser primavera 

Basta a manhã e seu farnel de vento

Pétalas que caíram ao relento

E se juntam às folhas de antigo outono


Vivo disso, coração amoroso

Tua palavra num sussurro autêntico 

Doce que me alimenta

Raiz de árvore, grãos de planta

Viceja o verbo que se fez teu nome


Nei Duclós

ENCAIXE

 Nei Duclós 


Encaixe perfeito 

No convite e no peito

Unidos no jeito

Sintonia extrema

Os corpos convictos

Prazer de estar juntos


Não é o que dizem

Se proibem ou aceitam

O evento transita 

Onde não se comportam

As leis não alcançam

Nem as armas sujeitam


É sempre surpresa

Mesmo antes de escrito

Renascer do dia

No ventre do escuro 

Voo permitido 

Em raízes de pluma

Ave marinha

Em pele de urso


Chamam de amor

Talvez seja o certo


Nei Duclós

15 de outubro de 2024

A VISITA

 Nei Duclós 


Tive pouco tempo para varrer a frente da casa onde moro no deserto. Por isso esse areal tomando conta dos canteiros. Mas pelo menos pus minha melhor roupa para te esperar chegando na velha diligência. Fiquei sóbrio em tua homenagem e te dei a flor mais agreste deste ermo conflagrado pelo destino. Chegaste com o rosto transfigurado, mulher que um dia me recolheu, ferido, nos escombros de uma guerra.


Nei Duclós

IMPASSE

 Nei Duclós 


Tudo é passado quando passas da idade

E a vida sépia define os  contornos da memória 


É o troco que recebes em pobres moedas

Os amores findos, a fuga da soberba 


O tempo te impõe a humildade 

Resta a vontade que tens de sobra

De adiar o desfecho, implicante bárbaro 


Nei Duclós

10 de outubro de 2024

CAMARADA

 Nei Duclós 


Agora parece fácil 

Que tens meu novo endereço 

E poderás encontrar-me

No almoço ou café da tarde 

PoIs disponho de concreto

Um corpo para o abraço

E nada nega que existo

Muito além da prosa e verso


Quero saber quando o tempo

Vier e eu desapareça 

Se será fácil me acharem

Entre memória e tropeços 

Na inútil biografia 

Oculta nos testemunhos 

Ditos de má vontade 

Em tantos contemporâneos 

Não porque sejam nocivos 

Apenas se sentem vivos

Fora da minha história 

E os rascunhos não resgatam

Detalhes de muitas datas 


Pois bem, amigo, aproveite

Que eu ainda aqui respiro 

Porque chegará a hora

Que alguém irá procurar-me

E verás que fui um cara

Nada especial, só um sujeito

De peito aberto, mais nada

Que no tempo bem antigo

Me chamavas camarada


Nei Duclós

7 de outubro de 2024

OURO E PRATA

 Nei Duclós 


Nossos corpos preservamos do olhar que tira a roupa 

Já vivemos bastante para saber do que se trata

Missão cumprida, prazer e descendência 

Somos ouro puro com os cabelos de prata


Para os moços lembramos que é  sagrado

O que vivemos no calor da tempestade

Porque o tempo se encarrega do transtorno

E a memória é a favor do que não mata 


Hoje imaginamos o que poderia ter sido

Mas é  só o que temos,  essas mãos no espaço

Tentando pegar o que agora  nos escapa

E só conseguimos quando Deus atende a porta


Nei Duclós

30 de setembro de 2024

TUDO CONTIGO

 Nei Duclós 


Tudo o que você faz eu gosto

Tudo o que você é eu curto 

Tudo o que você diz escuto

Tudo o que você sonha abraço 

Tudo o que você esquece passo 

Tudo o que você lembra assumo

Tudo o que perde procuro

Tudo o que você acha encontro

Tudo o que você joga apanho 

Tudo o que você quer eu tenho

Tudo o que você nega esqueço 

Tudo o que come eu sirvo 

Tudo o que você sofre apago

Tudo o que você ganha eu somo

Tudo o que você toca eu tremo


Nei Duclós

27 de setembro de 2024

FATURA

 Nei Duclós 


Flagrei-te moça enquanto eu veterano 

O tempo congelou teu rosto

E em mim escavou um reino

De vestígios sem importância 


Não importa, tudo é virtual neste século torto

Vivo no troco depois de pagar a conta


Minha esperança é namorar-te primeiro

Apagando a fatura do nosso desencontro


Nei Duclós

26 de setembro de 2024

 Quando partimos, deixamos o coração na chuva. Ele é anfíbio, respira por memórias.

Nei Duclós 

AMOR É VONTADE

 Nei Duclós 


Teu encanto é uma fina camada 

Que não sai com a roupa ou a maquiagem

Gruda como segunda pele

E assim permanece resistindo ao assédio 


Desperta contigo intacta

Apesar do gigante ao teu lado

Que não vence no auge do amasso

Se entrega, e o encontro dá certo


Amor é vontade

Tua essência é o que te cobre

Esse véu, segredo de seres tão bela


Nei Duclós

ACASO

 Nei Duclós 


Escapa de ti o que pensas ser destino

Algo substitui

Um susto, um desvio, uma sílaba 

Vida é o que o Acaso apronta

Quando atiça


Nei Duclós

21 de setembro de 2024

EM SEGREDO

 Nei Duclós 


Selecionei um trecho da tua imagem. Aquele em que te entregas em segredo.


Eu ia dormir, mas pensaste em mim. Não resisto a um chamado em voz alta.

    

Queres dar um tempo? Me passe alguns anos.


Como sou gigante, me tornei exilado da doçura. Então surgiste, flor de seda pura.


Agora sim, durmo contente. Fiz versos para povoar teu sonho.


 Como na tua mão, fada de outro mundo. Sou tua criação, ser errante.


Crio a esmo. Trigo com ervas do campo. Depois não colho, porque cansa muito.


O tempo nos reserva uma surpresa. Viajamos sós e nos reconhecemos no convés, depois de um cinema.


Você é tão adorável, estrela cadente.


Não sei o que estou pensando. Não costumo olhar o rastro do meu barco a remo.


Tens aquela postura de ter desistido. Mas te empinas para a frente, perfil de seios. Assim te entregas quando recitas o poema.


Não tenho profundidade, tenho cataventos.


Quando me conheceste, eu era outro. Agora que és outra, descubro que sou aquele.


Sou feito de abandonos. São tantos, espalhados por toda parte, que fácil me encontras.


Para não esquecer, me beije. A memória mora nessas besteiras.


Faça outra coisa. Que eu farei o mesmo.


Vou te mostrar minha coleção de borboletas. Só que todas voaram.


Todas as fotos são antigas. Somos um álbum de retratos.


Digo coisas sem sentido porque assim me sintonizo com vibrações fora do circuito.


Se és amor, levante a mão. Eu aponto em meu caderno de esperanças.


Nossa palavra é limitada pelo que somos fisicamente. Para extrapolar é preciso jejuar e só depois de 40 dias comer alfinetes.

 

Não somos objetos. Somos sujeitos ao desejo.


Mas vai piorar. Agora vou aparecer gigante sobre a cidade, como Godzilla cuspindo fogo. Saia do cinema correndo.


Também não gostei quando alguém me apresentou dizendo meu nome para mim mesmo. Achei over.


Perdeu a graça quando me viste. Faltava o rosto imaginado. Deste as costas e eu lá estava, imagem configurada pelo teu espelho.


É uma pena seres minha amiga. Poderíamos exercer o vale tudo da luta livre.


Vão rir de ti, não revide. Há mais graça na planta que imaginas florir do que na falsa armadura da razão e seus convites


Manténs distância lendo poesia. É um truque do teu não, lisinha.


Se perguntarem quem és, diga: solidão. Não vão acreditar, estrela do mar.


Fui rei para te fazer a vontade. Depois abdiquei, quando viraste voluntária na colheita do trigo.


Venci a guerra mas não ocupei o trono. Fiquei contigo, desvio de um exército.


Diga ai que eu fico. Não resisto ao teu capricho.


Lembre da beleza quando eu for embora.Peguei emprestado de tuas asas.


Aguardas, soberana, que eu me desperdice. Depois me acolhe, aos pedaços, em suas asas de espuma.


Meu poema reza no crepúsculo.


- Sou muito perigoso, disse ele.

- Morres de medo de ti mesmo? disse ela.


Nei Duclós

19 de setembro de 2024

COFRE

 Nei Duclós 


Guardo o que descubro pois não vale a pena 

Anunciar os segredos mais profundos

Não se percebe o que muda o mundo

Ou então há medo na imobilidade


Acumulo insights que bem poderiam

Fazer a diferença em vários assuntos

Pode ser soberba, penso usando o freio

E me calo no calor dessas verdades


Há também a chance de outros dizeres

Que acertam o ponto que vislumbrei sozinho

Melhor então deixar que o vizinho 

Ganhe o crédito que jazia abandonado


Assim me manifesto, recolhido a tempo

Sem usufruir de inúmeros presentes

Passo pela vida anônimo e frio

Meu único prêmio é manter a fonte

Das revelações dentro de um cofre


Nei Duclós

18 de setembro de 2024

TROCA

 Nei Duclós 


Quero voltar, só o tempo é seguro

Porque está feito como um fruto maduro

Dia perfeito em que tínhamos margem

Para o certo e o erro que enfim sobreveio


Quero voltar estendido no pampa

Lençol onde dormem os planos do vento

E o fogo se aquieta na boca da noite

Barulhos de bichos nas dobras da sanga


Sei que é mesquinho o desejo de infância

Depois que perdemos as amarras da terra

Prometo uma prenda ao chegar de surpresa

Em troca o perdão e o amor em sossego


Nei Duclós

ESQUECIDOS

 Nei Duclós 


Tudo o que vemos jogamos fora

Não no esquecimento

mas na memória

Guardamos o tempo sem serventia

Damos adeus todos os dias


Tudo se repete, daí a indiferença 

Minha tia deixou um estranho legado

Pilhas de caixas e vidros amontoados 

Tinham tampa, se justificava

Poderia precisar em determinada hora


Nunca usou tantos guardados 

Era una forma de grudar momentos

Que no fim se foram, como sempre


Dizem que no desfecho passa um filme nos olhos

Toda vida em capítulos de uma série única

Talvez nos reservem algo inédito 

Imagens que perdemos e que um dia voltam

Para nós, os esquecidos da miséria 


Nei Duclós

16 de setembro de 2024

RELENTO

 Nei Duclós 


Dormimos ao relento de um amor no começo. Complicado jogo de cobertas. Acordamos em alto mar, mortos de espanto.


Domar a vontade de perder-me. Mergulhar na luz que te desenha


Venha dizer, maçã e gerânio. Sopro macio, que cruza o oceano.


Nei Duclós