4 de maio de 2015

INVENTÁRIO



Nei Duclós

O país estava habitado pelos seus poetas
uma janela aberta para o nordeste
cadeiras na calçada em direção à praia
a estrada de ferro das lições da escola
o vozerio no rádio anunciando revoluções
O colégio em frente despejando gente
as medalhas de honra, os desfiles da Pátria

O país estava certo nos limites da infância
a cidade limpa por carrinhos em fila
e a polícia que enterrava gente viva
O cheiro de glostora, o barulho dos vestidos
as serenatas dos bêbados para as gurias
e os bancos da praça incendiando as bocas

O país se estendia para além da vista
esse horizonte começava na estação dos trens
mas antes tínhamos os filmes e as revistas
víamos o mundo de camarote, de binóculo
os times de futebol exibiam heróis eternos
e todos usavam chapéu para ver o clássico
no estádio que até hoje existe, perto do rio

O país não precisava de nós, bobos imberbes
diziam que éramos o futuro e nós ríamos
como podem confiar em pessoas de calça curta
chambões em campo, perdedores na bulita
estudiosos que choravam ao fazer os temas
dava um nervoso de perder a matéria e o ano
mas em dezembro ganhávamos os diplomas

O país acabou quando fomos para a capital
e lá encontramos a vida adulta e a ditadura
e bebemos muito e puxamos todo o fumo
e deixamos o cabelo crescer para encher o saco
e saímos pela estrada com trouxas nas costas
viramos mendigos no funeral daquele tempo
pedíamos dinheiro para o café e o almoço

O país permaneceu preso como um pássaro ferido
hoje conto as balas que nos estilhaçaram
sem sentir remorso ou pena, apenas o inventário
que nossos cadernos caprichados  jamais previram
Sabíamos as respostas dos teoremas, dos logaritmos
mas o futuro chegou com as perguntas erradas
Por que sobreviveste? diz um deus sem memória

Nei Duclós 

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