4 de janeiro de 2011

SOMEWHERE: O INCESTO DA MEMÓRIA


O problema de usar certas palavras na internet é que atrai todo tipo de tara. Lembro de uma resenha que precisei tirar porque falava de menores e isso desencadeou a busca dos sem-noção. Mas não há como escapar da palavra incesto quando se trata de Somewhere (Um Lugar Qualquer), o premiado filme de Sophia Coppola, que me provocou um surto de fúria no Twitter. Aos poucos fui voltando ao normal, já que me ocorreu uma série de considerações sobre essa obra autista, onde a cineasta dá voltas sem fim às suas obsessões e carências e filma a vidinha a que está acostumada, cercada de luxo e aquelas preocupações que pareciam fora de moda, como a incomunicabilidade, a solidão, o vazio, coisas do cinema dos anos 50 e 60.

O filme, claro, é sobre cinema: os bastidores da vida de um ator célebre (Stephen Dorff, no papel exemplar do paspalho que parece ser), dividido entre festanças, surubas, entrevistas, premiações, viagens e eventos variados. A matéria-prima de um cinema de espetáculo, que por motivos misteriosos atrai multidões. Não há dúvida que é uma representação do pai ausente de Sophia, o gênio Francis Ford Coppola, que carregava os filhos pelos hotéis afora enquanto fazia obras-primas. Não tinha tempo para a família, mas até hoje paga o tributo, já que precisa render-se à sua vocação de italiano, apesar de ser essencialmente um americano (aquele tipo que expulsa os filhos de casa mal saem da puberdade). Ele é a presença constante dos filmes da filha, que já nos deu grandes obras como Lost in Translation.

Para onde leva esse cinema que dá voltas sobre si mesmo? Para o vazio ou para gestos pretensamente libertadores (por que, em vez de abandonar sua Ferrari no deserto depois de fechar a conta no hotel de luxo, o bobalhão não me dá as chaves do carro e do apartamento enquanto ele torra no solaço? Ora, porque tudo não passa de ficção da pior qualidade). Trata-se de uma denúncia ou de uma entrega? Acho que as duas coisas. Sophia já tinha escrito um conto de fadas da menina que era filha de pais separados ricos e a deixavam vivendo com um mordomo num hotel (“A vida sem Zoe”, episódio dirigido pelo pai na obra coletiva de New York Stories). Lost in translation também se passa num hotel. Ou seja, ela não sai do reduto onde foi criada.

Um hotel é o lugar que causa alegria na chegada, mas logo em seguida dá vontade partir, disse Sophia numa entrevista. Só que ela, pelo menos no cinema, sai de uma suíte para outra. Deveria carpir um lote para romper o círculo autista. Mas o que a prende é a memória de um incesto não consumado. Um pai jovem e magro vive com uma garota de 11 anos (Ellen Fanning, fazendo filmes desde bebê)que, ao contrário dos amores fortuitos que desfilam na cama paterna, cozinha e prepara refeições no capricho. Espécie de fantasia adolescente com um homem mais velho, a relação mantem-se no nível do compartilhamento de futilidades, como tomar sol na piscina ou pedir todos os sorvetes na madrugada.

Não significa que haja perversão. É pura fantasia da memória, uma maneira de Sophia revisitar seus fantasmas, enquanto projeta uma visão crua da profissão familiar. Ela pertence a uma linhagem do grande cinema e já provou ser cineasta de primeiro time. Mas Somewhere peca pela sedução do vazio que tenta denunciar. No fundo, é uma celebração, pois a maior parte do filme é a curtição prazerosa de uma vida mansa e sem obstáculos. Os conflitos são fortuitos: mensagens no celular de um relacionamento que cobra sem aparecer; ou o choro sem sentido para a ex, confissão sem maiores conseqüências e sem o mínimo de credibilidade.

Não gostei, disse eu no Twitter. Agora digo por quê. Mas talvez o que me incomoda sejam, no fundo, as qualidades do filme. Nunca se sabe. O cinema é cheio de mistérios.


RETORNO - Imagem desta edição: Stephen Dorff e a "filha" Ellen Fanning: a doce vida vazia filmada como celebração e denúncia.

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