28 de novembro de 2010

UM ESTRANHO CASO


Cachorro-Em- Pé era visado pelos maus da vizinhança. Com um tronco desproporcional aos pequenos braços e pernas, que sacudiam no andar desengonçado, o rapaz virou alvo fácil logo que chegou de mudança na rua, junto com a família. Além de bizarro, era de outra cidade. Parece que de Santiago ou Cachoeira, lugares distantes, só alcançados em longas viagens de jipe ou trem. Como não tinha irmãos que lhe “tirassem a cara”, como se dizia na fronteira, que evitassem o massacre, nem um pai visível, já que a casa era habitada praticamente só por mulheres, o ataque era uma questão de dias, talvez horas.

O plano já estava esboçado. No momento em que ele, babão, passasse cumprimentando todo mundo com seu ar de idiota, olhar perdido, queixo proeminente, grande papada e um cabelinho preto enrodilhado no cocuruto da cabeça ovalada e enorme, bastava dar um grito para provocar o susto. Depois, era só diversão: roubar-lhe os tênis vistosos comprados talvez naquelas lojas ricaças da capital, a camiseta de grife estrangeira, a pulseira, que parecia de ouro, entre outras atrações. Além de completamente inofensivo, Cachorro Em Pé ainda exibia grande volume no bolso de trás da calça, de onde costumava tirar uma carteira recheada de notas.

Com ela, o infeliz fazia as compras para a família só de mulheres. Ia na padaria, na farmácia, no mercadinho e de lá vinha carregado de coisas inúteis, de cosméticos a pão integral, e ainda se arrastava pesadamente sob os mandados como se o bolso lhe tivesse pesando ainda mais depois de tantos gastos.

A petizada era formada de gente ruim. Rato, baixinho e peludo, com cicatriz no rosto, comandava. Gringo, alto, parrudo, pronto para entrar para os fuzileiros, obedecia. Bolo Fofo aparentava preguiça mas na hora de roubar era o mais rápido e ladino. Além de outros, quase anônimos, todos brutos. A idéia era roubar e esconder rapidamente, puxar para a briga, tudo em poucos segundos. Seria moleza. Mas não contavam com um fato extraordinário.

Logo que sentiu a aproximação dos meliantes, o inocente grandalhão tirou a carteira do bolso de trás, deixando cair um pote de geléia, um pacote de frutas variadas e outras miudezas sem importância. Parece que ria apontando a prenda, como se estivesse convidando para que a levassem. Os bandidinhos se entreolharam e se jogaram no butim. Mas no mesmo instante, viram o objeto de desejo se transformar de repente num pássaro preto enorme, que começou a dar bicadas na turma. Apavorados, tentaram fugir, mas o bicho, sob as ordens dos gritos do imbecil, sabia transformá-los em gado, obrigando-os a ficar contra a parede. Um deles parece que se mijou. Talvez o Bimbo, magro e comprido e com uma boca rasgada de orelha a orelha, que desandou num choro humilhante para a quadrilha.

Logo que estavam todos sob as ordens do bicharoco, eis que as asas se recolheram e o animal se projetou para os braços do Bahaunde (esse era o nome verdadeiro do Cachorro-em-Pé). Sorrindo, ele recolheu de novo a carteira para o bolso de trás, pegou as compras esparramadas no chão e foi-se, cumprimentando todos os que passavam.

Essa estranha história me foi soprada por um duende. Será que aconteceu?

RETORNO - 1. Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem destaa edição: Hitchcock e um dos seus Pássaros pretos.

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