25 de março de 2010

STRANGE DAYS E 2012: APOCALIPSE ONTEM E HOJE




O Apocalipse é uma das mercadorias do tempo, assim como o horário do almoço ou o período de férias (se formos seguir o rastro das observações de Guy Debord em A Sociedade do Espetáculo). No eterno presente, que é a imposição de tempo do sistema econômico que nos rege, férias, pausa para a refeição ou fim dos tempos são eventos com roupagem cíclica: eles se repetem sem interferir na hegemonia do tempo único imposto pelo capitalismo. São produtos como qualquer outro e obedecem à roda viva da produção e consumo, que escraviza corpos e mentes como se fosse algo “natural” e por isso, incontestável.

Nos anos 90, a proximidade do número redondo, o ano 2000, provocou um frenesi em torno do Apocalipse, que se nutria do texto bíblico de S. João e das profecias de Nostradamus. Foi uma mercadoria que ganhou intensidade conforme se aproximava a representação máxima desse final dos tempos, o reveillon da virada para o chamado novo “milênio”, a palavra que gastou de tanto uso e hoje está esquecida (mil anos passaram em menos de dez).

Como não aconteceu nada demais, como era de se esperar, o Apocalipse precisou de uma nova embalagem para continuar funcionando como mercadoria. Para isso, alimentou-se de novidades explícitas do novo século: o tsunami, onda gigante que varreu a Indonésia; a derrubada das torres gêmeas de Nova York, que interrompeu a arenga internacional sobre a integração entre nações e a Pax americana; e a profecia maia sobre 2012, uma nova data tirada do anacronismo da História transformada em arena do espetáculo. O marco próximo e assustador serve para gerar novos produtos de consumo, na indústria cultural e de entretenimento, e seu entorno, a astrologia e a ciência mutante e adaptável para a circulação de produtos.

Um dos filmes sobre o velho Apocalipse, aquele que foi desmoralizado pela besteira do reveillon 2000, é Strange Days (1995), de Kathryn Bigelow, com roteiro do seu marido na época, James Cameron. É sobre a ruptura das fronteiras das mercadorias da indústria audiovisual, pois no lugar de filmes, segundo a profecia do filme, teríamos o fluxo permanente de imagens e sons percebidos diretamente na cabeça dos compradores (o que se concretizou com a internet). Essa ilusão, pelo excesso, precisava de cada vez mais radicalidade na sua produção e é por isso que a transgressão é a lógica para seduzir os que podem pagar.

O anti-herói do filme, interpretado por Ralph Fiennes, que se chama Nero exatamente porque precisa ver o circo pegar fogo para continuar vivo, é o mercador das cenas brutais que encantam as pessoas imobilizadas no sistema. Recusa-se a vender assassinatos e mortes, mas é empurrado para isso pelas circunstâncias, onde um ex-amor faz o papel de tornassol de uma explosiva combinação química, quando entra de tudo, desde estupro até execução sumária nas ruas de Los Angeles.

Qual a diferença dos antigos filmes com essa realidade de imagens sem forma que tomam conta da paisagem? No cinema ultrapassado, havia um fim, um the end, diz a ex-namorada, interpretada por Juliete Lewis. Esse alívio não existe mais. A esperança é que a virada do milênio traga o desfecho do pesadelo. Mas o que acontece é apenas a resolução de um crime, graças à intervenção de uma mulher apaixonada por Nero, a motorista de limousine interpretada por Angela Bassett . Tudo se reduz a um caso policial com final feliz e com direito ao beijo deslumbrado.

2012 (feito em 2009 e dirigido por Roland Emmerich) joga mais pesado. É a fantasia americana de se livrar do resto da humanidade e ficar com a parte nobre do planeta, o Terceiro Mundo sem seus habitantes para atrapalhar. A arca que salva os eleitos que pagaram para sobreviver revela as imagens do estrago que a destruição provocada pelas manchas solares provoca por toda parte. Para nós, brasileiros, sobra o deboche: é o único lugar onde o Apocalipse desencadeia uma corrida suicida aos mantimentos, já que somos mesmo esses macacos famintos, na visão deles.

A derrubada do Cristo Redentor acompanha a destruição de todos os símbolos da civilização que se esvai: a Basílica de São Pedro (os americanos jamais vão perdoar o catolicismo), a Torre Eiffel (jamais vão perdoar a defecção francesa no Iraque), o monastério budista encravado no alto da montanha (toda devoção será castigada). Resta apenas a família que estava separada e se une na tragédia, já que o Apocalipse cuidou de levar o sujeito que ocupava o lugar do pai das crianças (este, interpretado pro John Cusack). E fica também aquela porção da humanidade milionária ou feita de alguns outros espécimes que acabaram inundando a arca nos minutos finais: todos eles vão reconstruir o mundo agora livre do excesso de gente pobre.

O novo Apocalipse é um alerta para a sucessão de eventos que estão matando em massa por toda parte (como, recentemente, no Haiti e no Chile). É demais o número de terremotos e furacões e tsunamis. Algo está errado. O clima tem sido usado como arma, essa é uma evidência que os cientistas sérios já admitem, apesar da incredulidade dos eternos desconfiados de teorias conspiratórias. Parece que a idéia é fazer uma limpa geral, onde só sobrariam umas 500 mil pessoas. A pergunta é: como vão sobreviver os donos do mundo sem escravos para sustentá-los?

A diferença entre os dois filmes é radical: Bigelow é cineasta da pesada e faz um thriller de prospecção de comportamento coletivo numa época de intensa manipulação do medo da população, enquanto 2012 é uma bobagem avassaladora que deixa no chinelo todos os outros filmes de catástrofe. Uma onda que atinge o pico do Everest é o sinal da demência absoluta que tomou conta de Hollywood na sua faina de produzir mercadorias que o tempo dissolve na primeira curva.

RETORNO - Imagens desta edição: a primeira é John Cusack com Morgan Lily em "2012" e a segunda é Ralph Fiennes e Angela Basset em "Strange Days".

EXTRA: FOI-SE O GRANDE MESTRE

Morreu István Jancsó, grande historiador da USP, nascido e criado húngaro mas brasileiro por escolha e devoção. Foi torturado e preso, mas voltou. Tive a sorte e o privilégio de ser seu aluno em mais de um curso de História Colonial. Já o citei aqui várias vezes. "É complicado" dizia sempre quando abordava um assunto, principalmente da nossa História. O Brasil é complicado. Escasseiam seus decifradores, suas grandes cabeças. Seu livro "Na Bahia, contra o Império", é um clássico.

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