19 de maio de 2009

JOSÉ ONOFRE: CARTAS DO FIM DO MUNDO


Nei Duclós

Recebo a notícia de Dorva Rezende, editor do caderno Variedades e de Cultura do Diário Catarinense: “Oi, Nei, notícia triste. Acaba de falecer José Onofre. O jornalista, de 66 anos, foi internado em março no Hospital São Francisco da Santa Casa de Porto Alegre após sofrer uma crise decorrente da diabetes. A situação se agravou em abril, quando Onofre teve uma parada cardiorespiratória. Desde então, ele era mantido sob observação. Difícil dizer onde o jornalista não trabalhou. Folha da Manhã, Estadão, Veja, Isto É, Carta Capital. A reputação de Onofre como crítico cultural era tão grande que Paulo Francis declarou que se houvesse alguém a sua altura, esse alguém era José Onofre. O corpo vai ser velado no cemitério João XXIII, onde também será realizado o enterro.”

Trabalhei com José Onofre na lendária Folha da Manhã de 1974/75 em Porto Alegre e na revista Senhor, de Mino Carta, nos anos oitenta. Por mais de uma vez, nos estranhamos. Depois, viramos amigos. Nos bares, restaurantes e há dois anos, por meio de intensa correspondência. Seleciono aqui alguns trechos das cartas que ele me enviou de uma chácara isolada em Jundiaí, onde fazia tratamento para as feridas provocadas por uma vida inteira dedicada ao jornalismo e ao que ele mais dominava, com extrema maestria: o texto inesquecível.

A morte de José Onofre nos leva para sempre do convívio o talento, a experiência, o testemunho e a grandeza de um jornalista que percorreu as redações com sua cultura incomparável, capaz de nos assombrar em alguns minutos de conversa. Leva para sempre o humor que é fruto desse preparo, dessa formação, que é a marca registrada do Brasil soberano pré-64. José Onofre tinha lido tudo e visto todos os filmes importantes. Ficar próximo dele era um privilégio. Sem falar que, ao longo desse convívio, os que estavam ao seu redor, escutando, caíam na gargalhada.

A inteligência que transcende é o seu legado maior, ele, que fazia autocrítica por enxergar demais. De agora em diante, quando o nome de José Onofre for lembrado numa redação, todos devem ficar imediatamente de pé. Ele esteve no front. Lutamos ao seu lado e isso nos tornou melhores. O que fazer com esse legado? O que dizemos agora, Zé, tu que não perdoavas jamais qualquer lance de mediocridade ou burrice ou mesmo sentimentalismo? O que fazer com o presente secreto de um guerreiro?

“A REDAÇÃO ERA O MEU DESTINO” – José Onofre

“Nei, me pegaste no sufragante, como diziam em Bagé, porque não esperava tua resposta tão rápida. Ao que interessa: Teu site está muito bonito, antes de dizer o amarfanhado “graficamente correto”. E, rapaz, você produz mais do que Coelho. Não se sabe por onde começar. Mas vou com calma.

Saído do Incor, fui remetido a uma clínica de desintoxicação em Jundiaí, mas fora da cidade. Uma chácara grande, sem barulho. A média do tratamento é três meses. Para ficar vivo, fiquei aqui, no meio do mato, até hoje e nem penso em sair. Jornalismo, para mim, seja em que lugar for, é uma impossibilidade. Não consigo me imaginar me comprometendo, me dando (e recebendo) numa redação.

Tu falas nas redações que nos mastigaram. É verdade. Sempre foi o que nos tocou deste latifúndio. Se eu tivesse a poesia, como tu, talvez fosse ainda mais duro, como é para um sujeito atrasado para um encontro e sendo obrigado a dar atenção as queixas de um vizinho chato. Mas uma redação era meu destino e eu cumpri, bem ou mal.

Eu aqui faço minhas resenhas para a Carta e tento escrever as primeiras duas linhas do romance, mas ainda não cheguei lá. Falta insaite, como dizem os críticos (inclusive eu) quando comentam aqueles livros que, se falados, seriam classificados (minha primeira mulher, se referindo aos meus longos papos, normalmente vazios, advertia: “Estás falando para mexer com a boca, José) como tinta gasta inutilmente. Mas tens notado que não tem saído romanção, daqueles que ficam em pé? Talvez já esteja quase pronto, em algum lugar do país.

Eu sei, embora uma voz, lá no fundo negue, que eu podia ter me saído melhor no jornalismo. Sei que é o orgulho que está falando. Mas se tu fores olhar teu passado e avaliar os erros, tu entras naquela frase do Faulker em “O Som e a Fúria”: “O passado não tem fim. O passado sequer passou”.

Paro aqui, para não “puxar angústia”, como diziam os personagens de Fernando Sabino em “Encontro Marcado”. Um abração. Zé."

RETORNO – 1. Gosto de citar a cena em que estávamos almoçando numa birosca da Lapa de Baixo, onde se situava a redação da Senhor, quando veio o prato feito e José Onofre lascou: “Já tinha pisado nisso. Comer, é a primeira vez. “ Comentei isso com ele e Zé respondeu: “A frase é na fila do rancho, num dia de chuva, em que os cozinheiros vão jogando a comida nas bandejas dos soldados. A frase é: “Já havia pisado nisto, mas não havia comido ainda”. Origem: ou “O mais longo dos dias” ou “Os Doze Condenados”. Não consigo lembrar.” Voto nos doze condenados, com John Cassavetes, que possivelmente disse a frase (na foto desta edição, em primeiro plano). 2. Escrevi sobre o romance policial de José Onofre, Sobra de Guerra, em 2005.

PRATO QUE SE PISA: ENIGMA DECIFRADO

José Onofre escreveu em 5/4/2006, num e-mail para mim: "No respeito as minhas dúvidas sobre os filmes de guerra: sou mais os doze condenados, porque tenho quase certeza de que quem a pronunciou foi John Cassavets. Mas é apenas “quase”. Por outro lado, lembro que o soldado em questão estava usando aquelas capas de chuva sem mangas e isto me parece mais o mais longo dos dias. Um dia saberemos."

Paulo Paiva Nogueira escreveu dia 25/05/09, para mim: “Nei, revi o filme ontem, em DVD. En inglês, o título é The Dirty Dozen. Numa cena, na primeira hora inicial do filme, numa fila, um dos doze, o Franko, ao receber o rancho trava o seguinte diálogo:
--Que prato é este?- pergunta alguém.
Ele: -- Não sei, Nunca comi nada assim. Já pisei nisto, mas nunca comi.”

Agora sabemos.

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