9 de dezembro de 2007

O TRABALHO COMO ARTE, EM ROBERT ALTMAN


Lembro o impacto quando vimos Mash, de Robert Altman, nos anos 70. E qual seria esse assombro? A possibilidade de alguém exercer a profissão, seja qual for (no caso, o exemplo limite de dois médicos de guerra, interpretados por Donald Shuterland e Elliot Gould) como um exercício responsável de arte. Ou seja, era possível criar no mundo do trabalho, transformá-lo por meio da transgressão. Manter a alma intacta, sem emporcalhá-la na submissão e na redundância. E transcender o arrocho da sobrevivência, fazendo o que se gosta sem que isso signifique lirismo ou utopia.

Os protagonistas de Mash aprontavam todas, mas eram gênios em sua arte. Com Roberto Altman, vislumbramos a possibilidade de sobreviver sem cair no ramerrão dos horrores apontados por Chaplin em Tempos Modernos. Chaplin denunciou, Altman praticamente nos libertou. Um sonho que em parte se tornou possível, basta ver alguns nichos como os da criatividade em informática ou em corporações focados no talento. E que ao mesmo tempo denuncia sua distorção, pois o verniz das mudanças serviu para nos arrochar em mais tirania, como vimos a partir dos anos 80 e principalmente dos 90.

As transformações foram apropriadas pela direita, do yuppie ao metrosexual, e serviram para mais exclusão, sob a ilusão de que vivemos hoje num paraíso de opções profissionais. O que se vê, na maioria dos casos, e principalmente no Brasil, é exatamente o contrário. Cristalizou-se o discurso da mudança, que serviu apenas para manter as aparências e dar uma rasteira na vida que precisava se reinventar de fato no mundo corporativo.

O trabalho como arte continuou em vários outros filmes do grande diretor, que morreu há pouco, depois de longa e brilhante carreira: Nashville, sobre o trabalho na música, A última noite, sobre o trabalho no rádio, De corpo e alma, sobre o trabalho no balé, que vi neste fim-de-semana, e que é de 2003, e assim por diante. Neste filme, a bailarina se apaixona pelo cozinheiro, ambos artistas em seus respectivos afazeres. Altman parece que faz documentário, mas faz ficção, ou seja, cria os ambientes onde saem as grandes ações humanas por meio do talento, da determinação e da ousadia.

Juramos que estamos vendo bastidores, mas os bastidores não existem, o que há são os desdobramentos dos mesmos ofícios, tanto no palco quanto atrás dele. No fundo, Altman segue à risca a máxima de que todo filme é sobre cinema. Pois ele está mostrando o próprio métier: o que aparece na tela é a imagem pelo avesso do esforço coletivo chamado cinema.

Todo trabalho é estiva. O coreógrafo (mestre é quem enxerga o detalhe) pede para a bailarina mostrar como rodar num trapézio, tocando os pés no chão: o truque está na posição dos quadris. O recado é direto: faça o que fizer, seja como um bailarino, um virtuose, um grande cirurgião, faça arte. E fazer arte não é observar o resultado final do esforço escondido de milhares de performances, mas sim descobrir a sintonia entre a base e o vôo, a tinta e a obra-prima, o acorde e o concerto, o tombo e a coreografia.

Cineasta revolucionário, Altman usa o diálogo concomitante para gerar esses lugares onde todos estão envolvidos . Parece uma balbúrdia, mas é simultaneidade das linguagens, o que só surgiu muito tempo depois, no universo digital. Ele viu primeiro, ao inventar no cinema essa superposição de falas na mesma cena. Tudo se perde na dublagem, mas quem deve ver filme dublado? Absolutamente ninguém. A fala original é metade do filme. Com esse expediente, Altman aponta para o que acontece sempre no mundo do trabalho: todo resultado é fruto da convivência coletiva de profissionais afins, que interagem em função dos objetivos.

Foge, portanto, do ilusionismo pueril do trabalho como meta da civilização ou do denuncismo estéril sobre os problemas em espaços onde se luta pela sobrevivência. Propõe o trabalho como arte, não obrigatoriamente de quem se envolve com o mundo artístico. Mr. McCabe and Mrs. Hiller, por exemplo, com Warren Beaty e Julie Christie, é sobre cabaré e pôquer no velho oeste coberto de neve. São dois profissionais do lazer bruto por aquelas paragens no século 19. Não há sentimentalismo, mas poucos filmes contém carga tão explosiva de sentimentos.

É que Robert Altman conhece o caminho. Ele é o maestro que nos acena para o trabalho edificante, fora dos conceitos tradicionais sobre o que é humano, como a divisão entre cabeça e coração. É a pessoa inteira que nasce nos seus filmes antológicos. Glória eterna ao grande cineasta.

RETORNO - Imagem de hoje: cena do filme The Company, ou "De Corpo e Alma", de Robert Altman.

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