23 de setembro de 2007

PARA LÁ DO CACARÉU


Os conterrâneos vão ficar escandalizados, mas nunca soube exatamente onde fica o Cacaréu. Só sei que é muito longe. Talvez descendo o rio, perto dos Navais, num charco, imagino. Deve ficar perto dos fuzileiros, para justificar a frase “carioca do Cacaréu, baixa as calças e tira o chapéu”, que servia para desmoralizar quem inventasse de falar chiado. Conheci guris bem gauchinhos que depois de entrar para a Marinha (lá em Uruguaiana é lugar de águas de fronteira) falavam como se tivessem vivido o tempo todo no Rio de Janeiro. Pois nada sei do Cacaréu, mas sei alguma coisa sobre um senhor muito distinto e grandalhão conhecido como o sr. Lapitz, nome que era traduzido como Lápis, tanto para facilitar como para buchinchear com ele.

O sr. Lapitz era um portentoso carola e estava em todas as missas importantes, a das seis, do domingo, as da hora do Ângelus, todos os dias, e as das grandes datas. Puxava o coro com seu vozeirão e ajudava em tudo na igreja, como esses devotos tão bem retratados na literatura do século 19. Devia ser isso mesmo, o fervoroso Lapitz era um personagem saído de páginas ancestrais e divertia a macacada da cidade, pois exibia uma presença gigantesca, obesa, alta. Vestia-se com casacos que lhe sabiam escassos na cintura e na altura, e calças que subiam pelos tornozelos. Tudo era encimado por uma grande careca e um nariz proeminente.

O conjunto pessoal era brindado ainda por uma perna capenga, pois o sr. Lapitz tinha um defeito na perna, talvez num dos tendões, como o personagem do romance Madame Bovary, de Flaubert. Mas Lapitz teve a prudência de não se entregar a algum cirurgião de inexperiente para corrigir o defeito, como acontece na literatura, com péssimas conseqüências, como sabem os que leram a história. Pois ele puxava a perna enquanto carregava um gigantesco Cristo crucificado de metal, talvez de prata. Era uma cena e tanto ver o sr. Lapitz cantando aos berros pela rua (só sua voz se ouvia), puxando as procissões, bem na frente, com aquele Cristo que tocava as nuvens.

Como a fronteira é terra também de engraçadinhos, especialmente entre a garotada, era dito e feito. Saía a procissão para juntar a bagacerada ao redor do gigante. “Aí, véio Lápis”, diziam os guris, voejando como moscas, querendo puxar a aba do casaco ou dar-lhe uma rasteira. O sr. Lapitz ficava, logicamente uma fera, pois sua grandiosidade física e sua profundidade devota não eram escudos para a súcia de malfeitores atraídos por motivos óbvios: assim como existia carolice, existiam os debochados, os ateus, os anti-clericais ou simplesmente os moleques, que a tudo desprezavam com sua algaravia de pé descalço.

Um dia o sr. Latpitz estava de maus bofes e resolveu reagir. Estava pronto para a desforra. Acho que foi numa procissão importante, dessas de Corpus Christi, em que literalmente toda a cidade sai para rua, tanto para engrossar a procissão, quanto para ver as pessoas passar, especialmente as gurias, com seus véus sobre a cabeça, o que lhes emprestavam um charme irresistível aos seus rosto lindos e corpos deslizantes. Mas a gurizada não queria saber de namorar, mas de zoar com o velho devoto, tanto para garantir prestígio em relação às outras gangs quanto para se exibir simplesmente diante do enorme público.

Pois a um grito maior de “aí véio Lápis”, o santo homem levantou ainda mais alto seu talismã religioso, que carregava como a expiar culpas antigas e garantir seu lugar no céu. Ameaçando com aquela vara de metal pesada, com a mesma vozeirão, berrou:
- Sai da frente, moleque, senão te dou um Cristaço!

A história me foi contada por meu pai, ateu convicto, que gostava de zoar com os excessos da religião. Lágrimas saíam dos olhos do meu pai num almoço de domingo, em que ele chegou a se levantar para imitar o protagonista da cena. Tornou-se, para mim,um causo também clássico do humor ferino da fronteira, com toda sua carga de inocência, graça e crueldade coletiva.
RETORNO - Imagem de hoje: foto de Regina Agrella.

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