19 de dezembro de 2005

FUNK, CAN-CAN E VELHAS PROFISSÕES



Mirar o rabo para a multidão, sacudindo decididamente os países baixos ao som do baticum funkeiro em direção a uma platéia apartada do sexo real (se não fosse, não pagaria pela festa para ter a ilusão do sexo disponível no palco) é negócio para velhas profissões, como a prostituição, a segunda mais antiga do mundo, pois a primeira (qual é?) forneceu os recursos para pagar pela primeira noitada. O funk ganhou status de cultura marginal de periferia, mas não passa do velho can-can, quando as mulheres mostravam o que existia embaixo da roupa e simulavam o ato sexual em forma de dança. Agora invade os bairros de classe média e está perdendo seu caráter mais radical, mas mantém a essência: a representação da censura ao sexo num país que finge gozar e que no fundo apenas expõe sua nudez para que outros usufruam do prazer.

PERVERSÃO - O efeito é devastador, mas como é apenas um sintoma não pode ser perseguido pelo moralismo fundamentalista. O que deve ser confrontado é a origem do evento: num país sem soberania, a população é treinada para expor suas partes pudendas para que o mundo se convença que estamos de pernas abertas, é só chegar e entrar. Não podemos ter, nesta atual fase da ditadura, o que qualquer nação dispõe: mulheres protegidas por leis e costumes. Quem quer isso? O negócio é faturar e, claro, fazer análises como a da Rede Record ontem no programa Domingo Espetacular, que perguntava se aquilo é perversão. Não é. Perversão é querer um país soberano.A reportagem da Record flagrou vários grupos de machos estrangeiros (nenhuma funkeira vinda de fora das fronteiras), como uruguaios e australianos, encantados com las chicas. É turismo sexual, tratado como fenômeno de comportamento.

MODA - Como virou moda, ninguém se pergunta o que significa simular a trepada publicamente, como sempre se fez nos velhos cabarés. A explicação normal é de que tudo isso não tem importância, que é assim mesmo, que o importante é se divertir, fazer exercício e tudo o mais. Parece que liberou geral, mas é o contrário. O sexo está vedado para quem paga para participar do baile funk. O abombado pode se esfregar um pouco, fazer trenzinho de bunda, fingir que é um grande comedor de puta, mas não passa de um infeliz. Sexo é de foro íntimo, e quando é exposto não passa de mercantilização. Romperam-se os limites entre o prostíbulo e os clubes para a juventude, pois os negociantes do ramo descobriram que difundir a putaria é lucro certo. Como não existem espaços gratuitos de lazer e esportes, com raras exceções, a meninada fica confinada em lugares artificiais, sendo tonteada pela barulheira eletrônica e pelas vozes estridentes da falta de talento.

Falam em letras mas não há letras, já que não há poesia. Melodia nem se fala: é sempre a mesma arenga. Uma das funkeiras diz que faz o que o povo gosta, que é letra de duplo sentido e com esse expediente foi até Paris. Certamente foi apresentada como a manifestação da brutalidade cultural do Brasil sucateado, mesmo não tendo nada a ver com isso, já que apenas aproveita as portas que lhe abrem (e as cantoras não estão enquadradas na categoria mais apelativa, o que fica a cargo das dançarinas) . O mundo consome nossas ruínas, devora nosso fígado. Na jequice atual do berreiro sem fim, quando aparece alguém capaz de trinar uma melodia é considerado gênio. Mas não é. Apenas se destaca num mar de absoluta mediocridade. Para termos gênios, precisávamos confrontar a origem política dessa situação. Peitar o poder, que nos corrompe.

AO ANDAR - A Grande Família, da Globo, é um sucesso e dizem que é pelo texto enxuto, pela fórmula, pelos grandes atores, pelo timing, montagem ou sei lá o quê. Acho que é pelo andar. Notem como a personagem Marilda anda. Ela usa o salto alto para arrebitar um pouco o traseiro e fazer pular o cabelo sempre mal produzido. A Nenê tem aquele passinho ao mesmo tempo decidido e submisso. Lineu abre os pés em dez para as duas para navegar a barriga. Tuco anda de maneira trôpega, representação da sua falta de independência econômica. Agostinho é o próprio Costinha, com o corpo sendo revirado em sentido oposto ao da cabeça. Andar é compor um personagem. Especialmente se o autor do andar é um ator como Marco Nanini, Pedro Cardoso, Marieta Severo etc. Eles trabalham o povo, de onde vieram. Seriam caricaturas se só houvesse esforço de interpretação. Mas há muito mais. Existe o passo do país que resiste.

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