9 de janeiro de 2005

A HORA DA ONÇA BEBER ÁGUA

Meu amigo Urariano Mota escreve no La Insignia crônica antológica sobre alguém que enfrenta uma situação limite. Urariano é um dos maiores talentos da literatura brasileira e, claro, talvez por isso mesmo, é pouco conhecido fora do seu círculo de ferrenhos admiradores. Transcrevo aqui seu texto primoroso, sobre essa pessoa que precisa comparecer no bebedouro das feras do destino. O guerreiro olha a onça nos olhos, e bebe. Não pode nem piscar. Em compensação, decide cair na gargalhada.

Do humor que de repente descobrimos em nós

Urariano Mota
La Insignia. Brasil, janeiro de 2005.

Deve existir alguma relação entre o abismo e o riso, entre a consciência de uma desgraça e a graça. Há indivíduos tímidos que se descobrem de repente humoristas, porque começam a falar o pensamento que antes calavam, porque descobriram que nada mais tinham a perder. No limite da queda tornam-se humoristas involuntários, e com surpresa vêem que uma pequena observação desperta gargalhadas à sua volta, quando eles próprios estão com os olhos duros de dor.
Um amigo que conheço mais do que gostaria, percebeu isto na semana que passou. Submetido a exames médicos de rotina, que na sua idade revelam sempre males de rotina, descobriu que possuía o rim esquerdo muito alterado. O médico urologista ao ver as imagens da ultra-sonografia, enrugou a testa:

- O senhor tem uma massa tumoral...
- O senhor quer dizer um tumor.
- Sim. Temos que marcar rápido, sem demora, uma cirurgia.

O mundo então se lhe abriu. Porque, como capítulos de uma novela a que não se pode antecipar o fim, o médico lhe disse que de imediato não podia confirmar se aquela imagem indicava um câncer ("O que ele queria?", me contou o amigo, "que a imagem do meu rim fosse a de um caranguejo?"), que isto só poderia ser dito quando sofresse uma biópsia. E para a certeza do mal...

- Somente com a cirurgia. Ponha já na sua cabeça, programe-se, "eu vou fazer uma cirurgia". É simples, rápido e eficiente. É só uma laparoscopia.

Ao sair do consultório, renasceu, se assim podemos dizer. Renasceu, porque do câncer lhe nasceu um insuspeitado humor. A começar pela sua mulher, que o esperava na recepção:

- O que o médico achou do exame?, ela lhe perguntou.
- É só uma laparoscopia.
- O que é isto?
- Uma cirurgia certeira para o meu camarada tumor. Aqui, à esquerda.
- Um tumor?!
- Sim, mas o doutor me disse que eu tenho muita sorte. Pediu para que eu olhasse as coisas pelo lado positivo: eu ainda não estou urinando sangue.

E deixou a mulher em casa e saiu sozinho para encher-se de cervejas, sob a desculpa, não de desespero, mas de que sendo portador de um mal nos rins era necessário que se embriagasse de algo muito diurético.

No outro dia, foi ao serviço médico do seu trabalho. No elevador, suportou o seguinte diálogo entre o pobre do ascensorista e um senhor muito autoritário:

- A doutora fulana de tal, o senhor sabe o andar dela?, perguntava, não, intimava o cidadão classe média ao empregado no elevador. - É no quarto andar, senhor.
- E a sala, o número da sala, qual é?
- Sala 402, senhor.
- E para que lado fica a sala 402, o senhor sabe?
- O senhor sai aqui do elevador, dobra à esquerda, é a segunda sala.

O elevador pára, abre-se a porta, o importante cidadão sai, sem sequer agradecer. A porta se fecha, e meu amigo, ao ascensorista:

- O número do telefone, o peso e a altura da doutora, o senhor sabe?

A lotação inteira do elevador arrebenta de rir.

No atendimento, pede para ligar para o seu trabalho, para justificar a ausência naquele dia. Conta que em virtude do rim inchado, o médico quer passá-lo à faca, na próxima semana. E o colega, sem saber o que responder, lhe diz:

- Mas tudo bem, não é?
- Tirando o câncer, tudo ótimo.
- Certo, quero dizer, certo, não... Mas você está tranqüilo?
- Mais, é impossível. Eu já estou quase imóvel.

E desliga. Na volta, perdido e sem rumo, a porta do elevador se abre no terceiro andar. Uma senhora velhinha o vê, e exclama:

- Oh! Perdão - e quase a correr - eu vou subir.

E ele, no ato, ao fechar-se a porta:

- Ela parecia que tinha aberto a porta do WC. Em dúvida, eu até olhei para as minhas calças...

Por último e por fim, desse capítulo, espera o meu amigo, ele conta o que lhe ocorreu na sala da ultra-sonografia. A enfermeira não conseguia expressar, dizer o nome dele. E lhe perguntou:

- O seu nome é mesmo este?
- Sim, por incrível que pareça.
- Senhor, senhor.... eu não consigo, o seu nome é um trava-língua. Seu, seu....

E ele:

- Chame-me de "aranha arranha jarra, jarra arranha aranha, aranha arranha jarra...".
- O quê, senhor? O senhor é tão engraçado. Respire fundo. Prenda a respiração. Solte, devagar. Respire fundo. Solte, devagar. Prenda. Solte.

O meu amigo me assegura que jamais havia visto o mundo com tanto humor.

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