22 de abril de 2004

O MITO CEDE AO CERCO


Maradona agoniza e com ele sua esperança de uma vida pessoal. Na Argentina, o mito é a confirmação da superioridade mundial da nação autosuficiente. Como são imbatíveis em tudo, seus mitos servem para registrar essa hegemonia. Mas esse registro, por natureza, é precário, pois a realidade cerca o mito com a insuficiência humana. A saída é a morte, batismo da eternidade. Os argentinos não idolatram os heróis mortos, eles gostam do que os heróis fazem em vida, mas transformam a morte física no passaporte para o lugar onde o mito – a superioridade Argentina – jamais será destruído.

VINGANÇA - O esboço de risinho sarcástico que Marcelo Araújo, jornalista esportivo argentino, fez na CNN ao colocar Ronaldo como uma coisinha acanhada, dentro das fronteiras da Espanha e ... Brasssil (como eles desprezam essa palavra!)! Ronaldo, na visão tosca do jornalista, nem chega aos pés do genial Maradona. Primeiro, coloquem o Pelé no meio e depois conversamos. Segundo, para mim Ronaldo, apesar de limitado, já fez muito mais do que Maradona. Mas isso seria entrar no jogo deles. O importante é notar como a construção do mito depende do critério seletivo, da percepção distorcida. Maradona ficou desesperado porque não conseguia ter uma vida pessoal, apesar do dinheiro que ganhou. Não tinha liberdade e não podia mais jogar devido à idade. A solução Pelé, que foi coroado em vida e mantém-se em forma, não serve para Maradona. Pois Maradona fica sendo o típico mito argentino: a nacionalidade tenta se impor por meio da vingança (a comemoração de um gol argentino é a celebração de um assassinato), já que ninguém, em sã consciência, vai reconhecer tanta hegemonia em tudo. De minha parte, admiro os argentinos pela sua politização e luta e pela qualidade dos seus produtos (nasci na fronteira), e claro, por seus grandes e geniais escritores, a começar com Borges. Mas não suporto esse desespero que entroniza heróis como consagração da hegemonia enfim intocada. Isso tem raízes, possivelmente, na tragédia de Gardel (ou será que esse evento foi forjado pela predestinação Argentina?), que morreu no auge, ou seja, não conseguiu ir até o fim da sua carreira e despedir-se com grandeza. Foi colhido depois de muito ter feito, mas muito havia ainda a fazer. O destino foi cruel com a Argentina, que não tinha mais vivo seu grande ídolo. Então a morte entrou como a palavra final sobre a superioridade mundial da nação. Com Evita a mesma coisa, tanto que tentaram, primeiro preservar seu corpo e depois ressuscitá-la em Isabelita, o que redundou num golpe de estado que faz estrago até o hoje.

REIS - A ansiedade da mídia que cerca o homem para alimentar-se do mito é a tragédia final de Maradona. Ele poderá escapar da atual crise, mas sempre terá esse cerco sobre seu corpo que enfim encherá, morto, Buenos Aires de um mar de gente. A morte virá para tirá-lo do pesadelo e colocá-lo no pantheon dos heróis nacionais. Inconscientemente ele procura essa morte consagradora, já que não lhe é permitido mais viver. Maradona e Gardel são grandes em suas respectivas artes, e lavam a alma de uma nação que a auto-suficiência tornou isolada em sua mania de grandeza. A Argentina é um enigma difícil de decifrar. Gera heróis trágicos, talvez porque a maior tragédia seja essa tentativa desesperada de ser a melhor do mundo. Ninguém é melhor. Cada país tem sua identidade e seu destino. No Brasil não cultuamos heróis mortos (pelo menos por muito tempo; dá forte e passa logo). Cultuamos reis, já que expulsamos o rei para colocar no seu lugar uma máfia cruel, desprovida de carisma e que implantou-se pela guerra. Pelé e Roberto Carlos são nossos exemplos de mitos em vida. Precários, porque conseguem ainda viver suas vidas humanas. Mas não são melhores do que ninguém. Toda vez que o Pelé faz um anúncio e dá aquela risadinha forçada e sem som, mudo imediatamente de canal. Roberto, então, nem se fala (tantas emoçõeshhh...). Mas, eles podem. Acertaram muito mais do que erraram.

DESPREZO – O mundo hispânico despreza a palavra Brasil porque conseguiu engolir a América portuguesa, nós, no seu imaginário fajuto. Basta ver um filme da Carmen Miranda ou verificar que o mundo pronuncia samba como se fosse rumba. Como não temos existência – e quando temos a chance, nossos ídolos cantam em espanhol ou inglês – somos chutados. A CNN em espanhol então, gargalha com o Brasil. Não há uma reportagem decente. Sempre é nossas violência ou miséria. E futebol só quando perdemos, para darem aquela risadinha execrável. O Brasil precisa dar um chega para lá nisso. Dizem que na Inglaterra nosso embaixador está fazendo um trabalho magnífico e chamando a atenção para nossa cultura. É um passo para difundirmos nossa identidade, longe dos cucarachos. Lutamos 500 anos contra eles para os caras, enfim, nos devorarem. Por que? Uma jogada de Pelé vale por mil Maradonas. Pelé é a grandeza de um império, Maradona é o esplendor de um estilo que comparo a uma correria com precisão de relógio cuco. Espero que ele se livre da armadilha e possa sobreviver ao mito que o empurra para a morte. Já vi Maradona fazer altos elogios ao futebol brasileiro. É uma pessoa que teria chance de sobreviver, não fosse a pressão da ansiedade pela hegemonia.

RETORNO - É o seguinte o horário do programa Leituras, da TV Senado, que vai transmitir minha entrevista para o jornalista Mauricio Melo Junior:
sábado: 9h30, 20h
domingo: 20h30
Ontem, no Momento do Livro, da TV Cultura (22h15), Jefferson del Rios indicou Universo baldio. Baita força do veterano amigo, meu editor da Folha ilustrada nos anos 70.

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