13 de fevereiro de 2004

O PESADELO DA LINGUAGEM

O pior é que não acordamos dele. “Obrigada eu” disse hoje de manhã a estudante usando o celular na parada do ônibus. Não se trata de exigir o “linguajar correto”, mas o menos horrível. “Brigadão aí”, diz-se a toda hora e se alguém nota, a expressão é repetida até cansar, porque então fica engraçado. Opor-se é “chorar”. Por isso escorregamos para o horror da palavra frouxa, do “tô nem aí” do individualismo crônico. Tá tudo legal.

MÃOS AO ALTO - Levantar as mãos significa entregar-se ao que a publicidade e o pseudojornalismo impõem na mídia. Vemos isso não só nos filmecos sem moderação sobre cerveja, mas em pleno campo de futebol. Depois de chargear o adversário, o animal de chuteiras levanta as mãos como a justificar sua inocência. Nos shows, a massa está entregue ao absurdo de músicos que não sabem o mínimo de música, são apenas marionetes segurando microfones e repetindo acordes. No pseudonoticiário o desplante é tamanho que hoje ouvi no jornal das dez do canal 20 o apresentador enxergar na zona leste de sampa castigada pelo granizo um certo “clima novaiorquino”. Uma popular queria saber das autoridades os motivos do gelo em pleno verão, o que recebeu imediato deboche de outro apresentador, no noticiário de sangue antes do jornal da Band. Exclusão é a palavra de ordem. Mataram um dentista porque era negro. Até quando? Até sempre. Não muda nunca. Depois o comandante lamenta. Não tem que lamentar, tem que agir antes que aconteça. Nos chamados esportes radicais, a mesma mentalidade. Para mim, esporte radical é o desprezo pela paisagem. Engraçado que, enquanto carros envenenados atravessam regiões pobres sem infra-estrutura em busca de aventura, fala-se em proteção ao meio ambiente. Ninguém se opõe. Estão todos presos no pesadelo da linguagem. É uma armadilha que não falha. Repete-se, então, obsessivamente, a muleta “com certeza”. Duvidar pega mal. Reclamou é porque é “chorão”.

LIBERTAÇÃO - Leio Soldados de Salamina”, de Javier Cercas, obra-prima da literatura espanhola contemporânea transformada em magistral texto na língua pátria por Wagner Carelli. É a reconstituição de um assombroso episódio da guerra civil, quando um soldado poupa seu inimigo da morte certa com um dar de ombros. E para espantar as versões oficiais sobre a época do regime autoritário civil-militar de 64 (regime que ainda nos oprime, consolidado pela constituição de 1988 e suas emendas) , este ano haverá uma enxurrada de literatura sobre os anos de chumbo. Preparem-se. O Ano do Livro está mal começando. Metralhadora giratória contra o pesadelo da linguagem, que é fruto da má leitura ou da falta de. Um escritor te liberta quando faz o inventário da guerra, de qualquer guerra. Quando, à moda de High Noon, o faroeste inesquecível de Fred Zinnemann, Tabajara Ruas solta os cavalos na Uruguaiana dos anos 50 em seu Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez; quando Hilda Hilst, depois da sua morte, parte com sua obra para ser traduzida no Exterior, quando escritor falangista Sanchez Masa escapa do fuzilamento na obra de Cercas; quando sinto falta de Conrad, e Henry James, e Poe, e Lorca porque faz tempo que não os releio, algo acontece em nosso abandono das linguagens. É quando despertamos subitamente do pesadelo, e abrimos a janela direto para lua cheia.

ADVERTÊNCIA - No fundo, não é o livro que eu canto, mas essa revelação que nos manda para fora da rotina e nos arrebata porque somos criaturas com data de validade e a guerra que agora está sendo travada será transformada em palavras. Como disse uma vez Eduardo San Martin, o poeta e escritor que sumiu em Nova York e jamais manda notícias: “Cuidado, a vida é um romance, alguém está escrevendo.”

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