24 de janeiro de 2004

QUEREMOS MAIS, SÃO PAULO



A cidade-mãe a todos acolhe e recebe visitas e presentes no seu aniversário. Mas como toda mãe idosa, seu espírito parece estar confinado num asilo, esperando o dia em que filhos e trisnetos venham lhe prestar homenagens. No resto do ano, acontece o de sempre: surge a toda hora uma nova maneira de explorar a velha senhora, tirar tudo o que dela ainda jorra generosamente. Basta olhar ruas e calçadas e ver como a deixaram feia enquanto fazem brindes à sua longa vida.

O ENTERRO DOS FIOS – O morador comum de São Paulo não usufrui do que ela tem de melhor. Vive-se entre sujeira e pouco caso, barulho excessivo, ar poluído e água escassa. Estrelas internacionais vem e vão carregadas de dólares, restaurantes maravilhosos servem a poucos comensais, exposições de arte atraem filas e atropelos e morre-se diariamente no trânsito onde todos são os primeiros em tudo. O risível é o pacote de soluções idealizadas, todas orientadas pelo politicamente correto, os temas da moda, as picuinhas políticas. O fundamental para tirar São Paulo do horror urbano é, em primeiro lugar, deixar que o dinheiro público fique isento da cobiça do tubaronato. Segundo, cuidar da infra-estrutura, pois não é possível que ruas desenhadas para passar carroça tenham que absorver a incúria do poder público, que infesta o território nacional de novas fábricas enquanto deixa à deriva o mais importante transporte do mundo, o público, com ênfase nas ferrovias (temos ainda pouco metrô). O saneamento básico, a permeabilização das ruas, o conserto e reforma e redesenho das calçadas, o necessário enterro da rede de fios (coisa que se faz há decadas em outros países), o investimento maciço e total na habitação (em convênio com a própria população, que, sem ter outra saída, constrói casas por sua conta, deixando-nos o espetáculo triste de favelas com tijolos à mostra), seriam medidas óbvias. Colocar o poder público a serviço da infra-estrutura não é fazer obras mirabolantes, como levar 18 meses para cavar dois túneis em terreno nobre para impressionar os eleitores, como acontece atualmente na Eusébio Matoso e na Cidade Jardim. Habitação deve vir acompanhado de urbanismo moderno e eficiente em todos os bairros. O que se vê é uma cidade abandonada. As calçadas da importante avenida Francisco Morato, por exemplo, onde sobram empresas milionárias ao longo do seu percurso, são as mesmas que encontrei há trinta anos. Não se faz nada, a não ser politicagem.

CAOS - Não é difícil se chegar a resultados. Imagino sempre que os responsáveis pela cidade não vivem nela, passam por cima de helicóptero e estão sempre pensando em fugir do caos permanente. Não existe amor por São Paulo, existe o hábito de viver à sua custa, de se servir do que oferece, de encher os bolsos com seu dinamismo, de abraçar seus privilégios. Existe interesse e incúria. O amor é outra coisa. Amor não é detectar a cidade antiga soterrada na violência de hoje, não é sentir saudade, não é relevar seus problemas para dizer que ela continua maravilhosa. Amar a cidade é sair à rua e sentir-se seguro e confortável. Tradicionalmente, o Brasil odeia o espaço público e transforma o espaço privado num palácio. Os visitantes europeus notavam que não se encontrava nada nos mercados e que as ruas das cidades brasileiras eram imundas. Em compensação, as casas tinham tudo, de sobra. Essa mudança de enfoque não ocorreu ainda em São Paulo (onde, claro, são poucos os palácios e muitos os barracos), mas existe em outras cidades. Precisamos acabar com essa cretinice cíclica de desovar falso amor sobre a cidade que nos acolheu, que nos permitiu sobreviver e que continua grandiosa, imponente e cheia de energia, apesar do vampirismo que a suga diariamente.

VIBRAÇÃO - Foi paixão à primeira vista. Cheguei em São Paulo em julho de 1969 pela primeira vez. Fui com meus amigos pousar no estádio do Pacaembu, pois estávamos em férias e tínhamos carteira de estudante, ou seja, era permitido o acesso de peregrinos escolares aos infindáveis aposentos. Achei o máximo quando conheci a Avenida Paulista num entardecer de ouro. Senti a vibração das ruas e das pessoas. São Paulo me chamava e continua me convocando. Estou aqui em missão cívica, para aprender e ensinar. Gostaria de abraçá-la neste 25 de janeiro, quando completa 450 anos, como uma velha amiga e protetora. Cidade que o Brasil constrói como um projeto de futuro. Que abriga toda a população da terra. Que distribui bênçãos como uma matriarca. E que nos acompanha quando nos afastamos dela, saudosos da sua loucura, amantes da sua grandeza. Somos gigantes quando conseguimos sobreviver na selva paulistana. Ficamos diferentes e compartilhamos a experiência comum de conviver no miolo de um furacão, atiçados pelo centro de um terremoto.
Queremos mais, São Paulo. Te queremos limpa, bonita e agradável. Dizem que é impossível, que é pegar ou largar, que devemos nos conformar com os transtornos pois São Paulo é assim mesmo. Não concordo. São Paulo pode ser melhor. Basta deixar de roubá-la. Basta deixar de tratá-la como um objeto valioso da qual nos servimos sem limites. Basta devolver a ela mais do que palavras, ações verdadeiras em favor da sua redenção.

RETORNO- Não quero, com este texto, dizer que tenho cidadania paulistana. Sou lá do “sudoeste onde o Brasil termina”, como diz o poema. Também não quero dizer que devo a esta cidade. Aqui vivo e aqui muito sofri. Paguei o que recebi. Mas quando me perguntam onde estou agora, digo com orgulho: moro em São Paulo. A cidade vitoriosa que nos ensina a virtude da garra, a tenacidade do sonho, a realização do projeto, a convivência planetária. Moro aqui, onde queremos ser melhores do que somos. Onde sabemos que não somos nada. À parte isso, queremos mais do que apenas uma vida para ficar à altura do que podemos ser nestas avenidas, nestas pontes, nestes bairros.
Feliz aniversário, São Paulo. Posso te chamar de minha cidade?

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