5 de dezembro de 2003

O ANO DA VIRADA


Entramos em dezembro e 2003 cumpriu a escrita. É o ano da mudança. Foi o primeiro round contra o grande cansaço acumulado desde os anos 90, aquela época em que, por falta de opção, voltamos a acreditar no que nos diziam. Agora, descobrimos que não adianta mais esconder-se para sobreviver. É o momento de ir à forra. É o que dizia Papillon, interpretado por Steve McQueen: “Hei, bastards, I´m still here!”

ESTAMOS VIVOS! – Você sonha com a liberdade e ela bate à sua porta. Você deseja o fim da prisão e a cadeia se abre. Você quer trabalhar com aquela pessoa que está sintonizada com sua cabeça? Determine-se. O chato do chefe quer te humilhar? Não deixe. Você vai ficar sem salário o próximo mês? Aposte. Alguém disse que você não vai conseguir? Ria. Conseguiu apenas passagem de ida? Embarque. Acha que a rotina está estragando sua vida? Rompa. Mas o ímpeto de jogar tudo para o alto não deve ser um gesto de regressão infantil, um deus-dará inconseqüente. A mente adulta planeja a sua revolta a partir da sua reflexão e sentimento. Não um planejamento matemático, mas uma previsão a partir da experiência, da seleção. O passo certo é dado porque seu coração não coloca outra saída. Convença-se de que sua experiência pessoal está imersa na tempestade coletiva. Aquele jornal no fim do mundo está esperando por você. Aquela grande redação ainda não sabe, mas você está chegando. Está na hora de substituir a estrela. É a sua chance. Você respira fundo, concentra-se e bate forte. A primeira oportunidade de você estender a mão para seu colega, por maior que ele seja, ou mais bem sucedido, é sua oportunidade de ouro. Não vá sentar em cima dos outros. Não abra caminho quando não lhe pedem. Fique firme quando tentam te empurrar. Coloque-se à altura de 2003, o duro ano da mudança. Basta uma navegadinha na Internet para ver o que a cultura mundial apronta: a pressão está gigantesca, vai tudo entornar em cima da velha realidade. A exclusão chegou a auge. Ao limite. Prepare-se. Qualquer lugar é o front.

DESPEDIDAS - Lindolf Bell apertou bem a pedra com tratamento artesanal em sua mão, que era uma pequena obra da sua galeria de arte Açu-Açu, e me deu de presente. Depois me abraçou, se despedindo para sempre. O homem da Catequese Poética, que foi para as avenidas e viadutos de São Paulo nos anos 60 recitar seus poemas, foi-se em 1998, mas eu fui embora de Blumenau em 1971, levando comigo aquele presente pequeno e simples. Lindolf Bell lutava por uma abertura cultural na sua cidade. Deu a maior força para que a peça Hair, com todo mundo pelado no palco, se apresentasse no único teatro local, e foi o que aplaudiu mais alto quando a cena maldita tomou conta de tudo.
Da janela do ônibus, vi Caio Fernando Abreu pela última vez, na altura do Masp. Muito magro, muito concentrado, muito digno. O amigo que me deixou inúmeras cartas, todas carinhosas e cheias de consideração, falando sem parar sobre nossa vida de escritores do extremo sul brasileiro, ele que era internacional e fez uma literatura sem concessões, dura, aguda, profunda. O ônibus partiu e Caio ficou lá atrás, na avenida maior, com seu passo que palmilhou o mundo, com suas mãos que acenderam incensos, com seu sorriso que parecia cheio de enigmas, mas era apenas sincero, e grandioso em sua forma cool, sussurrada, transparente.
Fui visitar Gilberto Duro Gick no seu apartamento e não sabia que era a última vez que o veria. Peguei as canetas coloridas e comecei a desenhar enquanto ele se arrumava. “Não mexe aí que dá choque”, disse-me, antes de sairmos pela cidade, que exibia grandes out-doors onde pontificava seu rosto de menino, de mãos postas sobre a mesa, fazendo propaganda de algo. Gilberto não era modelo, mas vestia-se e se comportava como um príncipe. Estávamos em Porto Alegre. Disse para mim: “Vou-me embora dessa cidade, Nei. E deixo nela meu retrato em todas as ruas.” Foi assassinado um ano depois, aos 26 anos. Foi por um tempo meu melhor amigo. Colegas desde a primeira série do ginásio, Gick era precoce e brilhante. Desenhava maravilhosamente. Tinha fama de volúvel e para contrariar essa imagem, fazia comigo longas audições de Beethoven. Falava mal dos ignorantes, dos medíocres.
Gilberto Duro Gick, Caio Fernando Abreu, Lindolf Bell: amigos em todos os momentos de mudança, irmãos na eternidade.

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