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31 de dezembro de 2011

ENQUANTO TE DESMANCHAS


Nei Duclós

A realidade é a ilusão mais convincente. Mas vivemos no sonho, fonte da criação e da mudança

Ai, me dizes, enquanto te desmanchas.

Hoje é dia de desmaiar na cama. Sou capaz de cometer um crime. Comece me perdoando, convicta

Perdi meu tempo contigo. Amas algo fora do meu alcance. Resta apenas meu sentimento, único bem que tenho

Viver sem prazer é muito pentelho

Deixaste passar o tsunami. Depois se queixa que não tem um frame em sua câmara. Estavas ocupada com o discurso banana


Aquele lugar oculto de paredes nuas, que abafavam nossos gritos nas tardes de chuva. Desenhávamos nelas nossos exercícios de ficar vivos

Abrir mão do ponto final dos versos é como um passo na beira do precipício

Estás brilhante, como sempre. Nem mais te escuto. Apenas rezo num canto, pedindo mais um ano ao redor do teu coração, que pensa

Ao te conhecer, fica obrigatório inventar o amor

Não vieste, mas enviaste uma foto. Obrigado pela consideração. É bom, porque fiquei de castigo, de rosto virado para a parede, onde colei tua imagem

Depois de ser teu objeto de desejo, virei teu objeto apenas. Um ser abjeto. Que faço com as fantasias que acumulei para te encantar?

Pode parecer exagero, mas sinto vontade de te presentear a Lua. Ok, a Nova, que é mais pequeninha

Como é bom te querer. Parece passeio em praça de grande cidade remota, com pombas em pânico de tão felizes

O amor trabalha no porão do sentimento, faz alguma coisa que não vemos mas sentimos pelo resultado. Nosso barco flutua independente de ter mar

Não me diga o que fazer. Sei acertar sozinho

Não me diga o que esquecer. Sou bom em errar no amor, como todo mundo

Não me diga o que dizer. Pois já disse que te amo

Está arrependida? Gostei de saber. Mas não guardo ressentimento. Só odeio uma coisa: o fato de te amar


RETORNO – Imagem desta edição: Mylene Demongeot

URGENTE


Nei Duclós

Essa bocarra de batom vermelho na penumbra é o que tinhas para me dizer tão urgente?

Não entendi a necessidade de vir até aqui no mirante onde teu vestido batido pelo vento mostra o que me mata. Talvez um beijo me revele

Já vi tudo. Queres que eu te leve até a porta. Será como da última vez, em que fiquei na chuva? Ou me mostrarás tua coleção de selos?

Pediste para eu ir caminhando um pouco na frente. Não entendo. Poderíamos conversar lado a lado. Mas preferes calar, olho grande

Ela deu boa noite como se fosse um beijo na testa. Mas era só disfarce. Dali a pouco voltou, despertadora em festa

Fui te buscar na saída do banho. Estavas desprevenida. Tiveste que usar minha pele

De frente, coincidindo cada metro cúbico de corpo, dançando ao som dos ruídos que se formam na noite fechada e sobem como labareda

Estamos além do abraço, lá onde mora os sons mais graves da serenata

Agora pensa uma cena perigosa. Eu te salvo. Agora eu penso uma cena perigosa. Eu te salvo

Saltaste sobre mim e achei que iríamos cair. Mas és uma pluma e pousaste em meu colo engatando um beijo pesado

Já passa da meia-noite e teu sapatinho de cristal jaz sob meus olhos como um pássaro ferido

Flutuas na minha frente cavalgando o vento, que é minha mão que vou passando em ti sem cerimônia

O que farei sem você? ela me disse.Primeiro a Minguante,respondi. Precisa de um enxerto de Lua cheia. Depois volto para ti,estrela perfeita

Imploras piedade quando vês que não vou parar. Tinha te avisado, agora é tarde. Acabarás uma poça de água no amanhecer de uma praia distante

Cruzaremos o ano com um fogo estranho nos olhos. Dirão que é ressaca, mas sabemos que é outra coisa, bem pior

O Sr. precisa deixar dessa vida, disse o mensageiro. O eixo da terra poderá ficar ainda mais inclinado

Bem quieta no canto de butuca no alvo. Quem pode contigo, estilingue?



RETORNO - Imagem desta edição: Ursula Andrews

30 de dezembro de 2011

DELICADA


Nei Duclós

No mundo bruto, és o bálsamo. Quando já estou entregue, me resgatas

É tão delicada a maneira como você me trata. Estou mais civilizado, minha gata

Falta pouco. Apenas uma eternidade para eu esgotar a cota de atenção que recebo de você

O ano acabou? perguntei. Ainda não, disse ela. Há milhões de instantes antes de dezembro encerrar este tempo em que nos encontramos

Negarei até a morte que te quero, açucena. Jamais te amarei, delícia plena. Pode apostar, minha dona

Faço curso de aconselhamento contigo, professora. Só um aluno nesta época do ano. Na saída, te levo para o dever de casa

Marcamos encontro na praça.O sol dourava o vento frio vindo do leste. Já era verão e os corpos prometiam aquele riso mudo antes do salto

Toda a cidade se mudou para longe. Ficamos sós, na rua em pânico. Foi quando enfim nos cumprimentamos. Senti teu cheiro agridoce

É bruto o desencontro. Quando não nos achamos, por mais força que façamos. Trânsito, dúvidas, medo. A alegria voa em círculos, sem teto

Não suporto mais a esperança. Quero o desespero da tua presença

Deixei tudo pronto para a tua ausência. Até as cartas que não mandei estão sobre a cama. Não virás. Mas continuo consultando a porta

De que adianta? disse ela, voltando ao silêncio. Tentei convencê-la. Agora me encontro na Lua, extraindo um pedaço de sonho

Me faça um soneto? disse ela. É para meu primeiro amor. Pois não, eu disse. Deixe eu pegar uns algodões que flutuam sobre o mar da paixão

Estamos sentados no meio fio da eternidade. Olhamos para o meio da rua. Nenhum carro passa. Ao longe, o amor soletra essa tesão sem volta

Espere por um beijo que já volto. Valerá a pena. Estarei carregado com um novo abraço

Fiquei com teu cheiro a tarde inteira. Foi uma espécie de delírio

Teu amor me deu experiência. Hoje posso te amar sem tropeços

Atração não pode servir para mútua armadilha, mas para o prazer compartilhado. O futuro dá um presente para o passado

Ainda há tempo.Antes do foguetório faça um balanço. Lembre a primeira vez, quando nos debatemos diante do amor à primeira vista


RETORNO – Imagem desta edição: Romy Schneider

O AMOR EM PESSOA


Nei Duclós

Um abraço bem longo, assim como um poema que deixa marca depois de ser recitado pelo amor em pessoa

O amor está próximo demais para ser percebido. Até que algo nela te toca de improviso. É quando cai tua ficha, noviço

Um telefone toca no breu. Tua voz ilumina o céu como uma invasão alienígena

Trago o amor para conserto. Impossível, disseram na oficina. Está arrebentado. O que houve,deixou cair? Atropelei sem querer. Não sobrevivi

Amor é o que você sente, não o que você cobra. Obsessão não é amor, é chatice

Colocar-se como paradigma das virtudes amorosas é sinal evidente de falta de amor

Amor é um só e eterno. Ele encarna inúmeras vezes ao longo da vida e às vezes ao mesmo tempo em mais de um alvo. Isso não o torna um crime

Amor pode se transmutar, como nas crisálidas. Ninguém condena uma borboleta porque não é mais a mesma

Às vezes pinta um lance bonito com alguém, mas como tempo a pessoa se revela medonhamente chata. O amor se manda

Amor é animal arisco. Se esconde na mata, rouba alimento, arranha. Não tente domesticá-lo

Mas você prometeu! Sim, mas mudei de idéia. Meu sentimento não tem nada a ver com isso

Culpa de gênero: eis a besteira. Porque homem é assim, mulher assado. Somos indivíduos, não colméias

O amor é o último reduto da natureza. Se veste, se arruma, põe sapato, como toda criatura. Mas não se entrega. Qualquer coisa, dá rasteira

Quando o poema diz eu, diz “eu, personagem”. Vou repetir isso até o final dos tempos. O “eu poeta” é indevassável, não está na berlinda

Você fez o que lhe pedi? Se houve silêncio, essa é a resposta.

É intolerável que usem a exposição nas mídias sociais para fazer criticas pessoais públicas, principalmente injustas. Chama-se covardia

Quando me agridem, acuso o golpe. A tendência natural é me esconder. Mas cai e ficha e vejo o tamanho da covardia. Aí revido

Quando a vida a dois fica aborrecida, o amor já pegou a estrada

Por ser animal arisco, juraram que o amor não existe. Ou só serve para apelo comercial.Mas algo urra na mata fechada. É o coração,teu susto

Coração é uma metáfora, representa o sentimento amoroso, nada tem a ver com o órgão físico.

Contaste teu caso com detalhes, mas ela foi ao revide e te apresentou um chegado. Vocês saíram no tapa. Foi feio

Tudo bem que você seja linda de doer. Mas que ainda por cima tenha sardas eu acho covardia


RETORNO – Imagem desta edição: Elizabeth Taylor

29 de dezembro de 2011

ABISMO


Nei Duclós

Quando o aceno não se renova, ele parece aqueles lenços que vão sumindo na névoa conforme vamos nos afastando do cais

Me empresta teu ombro? Depois devolvo, sequinho

Treinamos o silêncio nas brigas. Toda vez que voltamos, faltava uma porção de entendimento. Tinha ficado para trás

Agora que o expediente do ano acabou, sonhe com o próximo, quando viveremos a fantasia de sermos um só

Até quando acordarei contigo me vendo pelo vidro do destino? Terei sumido desde que te vi e ando perdido como um zumbi entre as orquídeas?

Já dei um tempo e agora cobro a conta. Abra esta porta, desejada

Você fez de tudo para me colocar na rede. Mas sou muitos e fui me reproduzindo, sempre liberto dos nós das tuas armas. Te caço onde não moras

Se ficar vazio, não diga nada. Olhe para as paredes. Hiberne. Há neve por todo canto. Onde estás, longe/perto? Volta

Remorso corrói o amor e deixa o osso à mostra. Mas o sentimento tem estrutura e se articula. És a coluna e eu a dor, insubstituível

Cedi onde não devia e ter perdi mais uma vez. Quem te trará de volta, ventania?

Fui atraído pelo que não tinha só para fugir de ti, pastora. Agora uivo sobre o deserto sem Lua . Peço socorro

Por isso estou vazio, porque me afasto quando te aproximas. Sou aquele passo pelo avesso, que finge andar quando no fundo se retira

Agora é tarde demais, porque estás ferida. Esse é meu desespero: saber que me querias e eu preferi o corte. Minha alma não existe

Nunca soube amar como deveria. Não freqüentei a escola do sentimento. Fui reprovado em todos os encontros. Até que surgiste

O silêncio voltou. Isso pega

Que importa o sentimento,dolorosa? Ninguém dá bola. Achei que poderia me misturar à indiferença. Mas sou feito de ti, carnívora

Aquela corrida final dos filmes em que tudo dá certo é só cinema. Na vida real, o avião parte contigo e eu fico preso na avenida

Fugi e fui punido. Não haverá mais uma chance. O amor esgotou sua cota. No fundo foi o que cavoquei: meu exílio. Adeus, esplendor

A não ser que eu me aprume e dê o pulo para o voo definitivo em tua direção. Me aguarde, abismo


RETORNO – Imagem desta edição: Rachel Weisz

UMA HISTÓRIA VERDADEIRA DE PESCADOR


Nei Duclós

O lançamento oficial do livro “Chico Bastos – O pescador”, de Willy Cesar, publicado pela editora UniverCidade, do Rio de Janeiro, foi no dia 20/12/11, em Rio Grande. Recebi um exemplar por especial gentileza de Cabeto Bastos, sobrinho do protagonista, Francisco Martins Bastos ( 1907-1986), e o responsável por esse resgate precioso da nossa memória. O livro enfeixa uma rica variedade de vetores da história brasileira e não se limita às lides empresariais ou à linhagem familiar ilustre. Trata-se do perfil de uma saga que está entranhada organicamente no desenvolvimento da nação.

Foi feliz a seleção do enfoque da abordagem deste épico, que buscou a essência do personagem na pesca, que define a simplicidade e o desprendimento do pioneiro, que combinou sucesso em atividades rurais com uma participação decisiva na implantação da indústria do petróleo no Brasil. Faz justiça à suas origens, que vieram de longe, totalmente identificadas com a ousadia dos migrantes, desbravadores do território da fronteira. Um lugar que de ermo improdutivo tornou-se um exemplo de criadouro de gado – e mais tarde, de semeadura e colheita de grãos - da melhor qualidade, graças à competência que as gerações sucessivas de grandes empreendedores souberam implantar.

Há muito o que dizer do livro, mas o destaque é o enriquecimento do acervo de História que mais me interessa. Pois foi nas memórias e nas biografias de protagonistas importantes nem sempre lembrados em sua totalidade que consegui entender um pouco sobre o Brasil. Lembro sempre o brasilianista Stanley Hilton que veio fazer a biografia – brilhante – de Oswaldo Aranha e perguntou, na época, quantas já existiam. Nenhuma, lhe disseram, causando espanto no scholar.

Jornalistas como Willy Cesar fazem um trabalho que em principio caberia aos historiadores, mas estes estão mais preocupados com as atividades teóricas e conceituais do que com a marca deixada pelos habitantes do país sempre em construção. Nesta obra, Willy mostra como foi difícil o começo da Ipiranga e como ela esteve ligada à construção do Brasil soberano na era Vargas, mesmo que com ela não se identifique em aspectos fundamentais como foi o caso do monopólio instituído no governo de Getúlio eleito pelo voto direto nos anos 50 e a encampação das refinarias decretada por Jango, um dos estopins do abril de 1964.

O autor mostra como o próprio Vargas escutou Chico Bastos ao encaminhar o projeto da Petrobrás, em que havia convivência entre a estatal e a iniciativa privada, detalhe que foi atropelada pela radicalização do debate político da época, com o hilário paradoxo dos udenistas defenderem o monopólio só para contrariar o presidente, inimigo mortal.

Quando perguntaram a Chico Bastos o que faria se a Ipiranga fosse encampada, ele respondia: Vou pescar! E assim surge aos olhos do leitor toda a riqueza humana de uma figura que decifra o próprio tempo por meio de suas atividades que geraram inúmeros empreendimentos e por isso seu nome se tornou uma lenda.

Destaco a importância desta seleta de documentos fornecidos por algumas fontes, especialmente a do sobrinho do protagonista. O Arquivo Camb, de Cabeto Bastos é uma das colunas mestras da coletânea de depoimentos e registros do empreendedor que cruzou o século 20 com um leque importante de realizações.

Descobri na prática o quanto pode ser gratificante o mergulho num acervo rico, quando consultei os registros do Deops paulista nos anos 90, num trabalho pela USP. Consegui boas revelações que estavam estocadas em inúmeras pastas. Não é o caso aqui deste lançamento, já que se trata de outro tipo de acervo. Francisco Martins Bastos é uma figura conhecida e respeitada, famosa por suas atividades à frente do grupo Ipiranga que, sem ele, como diz a esposa sra. Maria Ondina, “teria morrido na casca”. Mas o foco é idêntico: não se pode deixar tesouros encerrados. Precisam ser disseminados e o melhor meio para isso ainda é o livro.

É difícil conseguir o equilíbrio entre o perfil do homenageado, sua trajetória profissional e pessoal , o tempo em que viveu e a cultura corporativa a qual esteve ligada por quase toda a vida. É complicado conseguir a costura de uma obra chamando atenção para a grandeza do personagem sem cair nos deslizes da publicidade pura e simples, do panegírico. O livro de Willy Cesar não deixa de lado nenhum assunto espinhoso, apesar de todas as páginas estarem impregnadas de um justo orgulho pelo grupo empresarial brasileiro que se destacou no ramo do petróleo e se diversificou por vários nichos.

Lá estão as dificuldades familiares e empresariais, as dúvidas e os enfartes, as perdas e as quedas, as ameaças e as crises, as comemorações e os funerais, os meandros políticos, os embates da concorrência. Tudo está devidamente enfocado, para livrar do trabalho esse tom monocórdio que costuma contaminar a narrativa. Willy Cesar optou pelo registro puro e simples, com um toque elegante de argumentos quando necessário, ao abordar problemas complicados. Sem querer justificar sem base, o que daria um clima de aplauso permanente a um texto que faz de cada leitor um atento crítico. Pois se sabe que o petróleo tem a ver com poluição, que a briga por essa riqueza industrial cruzou paixões políticas sérias. Não há, portanto, o interesse em tapar o sol com a peneira.

A solução do autor (foto acima) foi muito simples: reportou o que devia e manteve o texto ao nível de grandeza do personagem, enfocando os benefícios da sua obra. O despojamento de uma pessoa importante nos momentos mais cruciais do empreendimento, nos detalhes de sua vida agitada (era conhecido na juventude como Chico Barulho) faz o contraponto ideal para que a leitura corra sem problemas. Como o livro tem 365 páginas, às vezes o relatório do grupo pesa um pouco para quem quer saber mais da pessoa do que dos desdobramentos da Ipiranga.

Mas o livro sai ganhando ao conseguir que isso não seja determinante. O que vale é aprendermos sobre um homem e sua vida plena, orgulho dos conterrâneos e que é uma referência do brasileiro que ajudou a inventar uma nação, o Brasil soberano. Um país formatado para a posteridade. É uma obrigação, para nós, mantê-lo com todas as suas conquistas.


RETORNO - Esta resenha reúne dois artigos que publiquei no jornal Momento de Uruguaiana.

JOGO BRUTO


Nei Duclós

Pequenos negócios não dão margem para firula. Não tente viver de sua arte no ermo, vão rir de você. Confeccionar mosaicos portugueses onde todo mundo usa bermuda e camiseta é dose. Oferecer cestos artesanais de vime com bordados é outra bobagem. O que pega é padaria, queijaria, 1,99 e uns tabefes na cara. Não tente fazer do seu sonho um atrativos para almas brutas. Não coloque livros de viagem na vitrine nem ofereça espressos finos. Jogue grande quantidade de massa envolvendo algum glegous de queijo ou carne no azeite quente e cobre 10 real o pastel. Entupa a clientela de refrigerante.

Vejo prosperarem alguns donos de mercadinhos. Muitos dançam, ficam vazios e fecham. Mas os que acertam no veio são aqueles que entopem as prateleiras de praticamente tudo e ficam abertos 48 horas por dia. Você vai na tarde de Finados e consegue comprar pano de prato ou garrafa térmica. As pessoas gostam de ter tudo num lugar só, como nos hipermercados. Não gostam de lugares que te obrigam a ir em outro. Tem cadáver de rato aqui!, grita a faxineira e ninguém dá bola, a fila do caixa dobra o corredor.

As padarias são também lanchonetes e vendem o cardápio completo de tudo o que engorda, para alegria da obesidade em festa. Não tente vender comida natural num lugar onde acreditam que o arroz nasce branco. Boutique de comida não funciona. O negócio é a fartura, o varejão, o sacolão, os retalhos. Todos saem carregados, aos berros. Os fornecedores encostam caminhões sem parar ameaçando os fregueses ringindo pneus e arrancando gargalhadas. Há uma vocação de fazer negócio do Brasil profundo que continua, apesar das gracinhas dos programas especializados em pequenos negócios na TV. Ninguém está penteadinho no balcão das grosserias.

Eu sempre quis montar um negócio, mas era só fantasia. Não me imagino aturando gente metida achando que pode dizer o que quer para os atendentes. Lidar com comida é um transtorno, carregar caixas, suar no eito brabo do comércio. Já passei dessa fase de realizar sonhos. O que precisamos é não realizá-los para evitar o pior ou nos convencer que não valem nada. Multiplique por um bilhão de vezes que você terá de sorrir para vender algo. Ora, leve de graça e me deixe dormir.

Fico encantado com esses anúncios em que as pessoas sorriem o tempo todo porque conseguiram um financiamento para a sua portinha. Se endividam e acabam perdendo tudo. Só tem um jeito: o pai bilionário cacifar o empreendimento. Mas não vamos ser pessimistas. É certo que a maioria das empresas que abrem fecham logo em seguida, porque temos um ambiente anti-negócio, um sistema tributário extorsivo e hábitos arraigados da população. O que se segura são os ambulante que vendem quinquilharias ou café com bolo para trabalhador apressado.

Somos um país de brutos. Os automóveis e caminhões inundam a nação. Usamos bermudas, chinelos e camiseta. Gritamos ô véio e aí alemão e chutamos os restos de mosaico português artesanal que tentaram nos vender. Ora, vendam sanduíches. Vão se catar.



RETORNO - 1. Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: Rua Direita, obra de Rugendas.

28 de dezembro de 2011

VIAGEM À PARIS IMAGINADA


Nei Duclós
Depois de ver Midnight in Paris, de Woody Allen, me mudei para lá, não para a cidade física ou a representada em imagens, mas para a conexão entre os mundos, a viagem para dentro de si mesmo, o insight sobre a insatisfação do presente, o acerto do convívio entre os talentos como forma de barrar a barbárie. Um filme e tanto. WA sempre acerta. O protagonista é uma Cinderela pelo avesso: sua ilusão começa depois, e não antes, das doze badaladas. É a senha para palmilhar a Paris imaginada, ou seja, a cidade mítica como linguagem percebida pelo filtro não do presente, mas da necessidade gerada pelo talento.

Paris é cinema e todo filme é sobre cinema. Temos ali a paisagem de Stanley Donen de Charada (1963) e de Cinderela em Paris (Funny Face, de 1957). Na sucessão de marioskas, as bonecas russas que existem dentro uma da outra, e que são as fases de ouro do imaginário literário e cinematográfico, Allen escolhe a última boneca, a menor e que está no miolo do drama, não nos anos 20 e sim nessa virada dos 50 e 60 de Donen. Allen já filma Paris anteriormente revisitada, ou seja, não é ele que começa a resgatar essa viagem, apenas faz uma referência a essa busca incessante do mito desfocado do presente.

Por ser cinema e por ser Allen um artista anti-pedantismo, identificado totalmente com seu personagem dividido entre a arte e a indústria, Midnight in Paris trabalha com os clichês, mas de maneira encantadora. Seu casal Zelda e Fitzgerald e os conflitos com Hemingway são puro irmãos Marx, mas há algo de poderoso no seu Ernst (interpretado por Corey Stoll), com falas decisivas sobre a competição entre escritores e a necessidade de um tertius (no caso, Gertrude Stein) para lançar alguma luz para a literatura que estava sendo produzida na época e que os autores não poderiam avaliar por estarem envolvidos nesse boxe entre talentos.

Ou seja, dentro da sequência de cenas que nos mostram os lugares comuns sobre os personagens famosos da época, que incluem Picasso, Dali, Buñuel e toda a fauna, abre-se a brecha para o que interessa: a auto-análise do escritor em crise (interpretado por Owen Wilson), que entende a precariedade da sua busca e se conforma com o duplo movimento em relação ao seu desejo: quando ele mergulha na Paris que amava acaba descobrindo que precisava ficar longe dela para se encontrar. No fundo, não é Paris que interessa, não é essa a personagem principal, e sim a decisão do sujeito que escreve, o protagonista da linguagem, já que tudo é linguagem.

Qual a diferença entre os americanos da família da noiva e os americanos escritores dos anos vinte que se refugiam em Paris, além da cultura e do talento? É a qualidade do agrupamento. Enquanto os laços de sangue colocam no mesmo convívio o status, o vazio e a ignorância (reforçadas pelo amigo pedante), no grupo de Gertrude Stein existe vanguarda, coragem no ver e dizer, afinidades e conflitos. Nessa Paris mítica, vive-se a arte e a cultura como forma de interromper o fluxo da destruição do espírito, por mais doloroso que seja. Dá frutos maravilhosos, como podemos ver nas obras e entre elas se inclui, naturalmente, este maravilhoso filme.

Woody Allen: não tem perigo de errar. É por isso que me mudei para lá.Sou um dos caras sentados no café. Estou escrevendo um livro.

CRISÁLIDA


Nei Duclós

Quando te vejo solta, fico admirado. Como consegues ter asas, crisálida?

Se você mentir, o amor acaba

Meu amor sumiu por dois dias. Achaste pouco. Aí o teu sumiu por dois dias. Achaste muito

Discutiste a relação há dois dias. Hoje reclamas que ontem passaste em branco.

Quando quer, aparece. Quando some, é porque quer. O que acontece nos intervalos do eu te amo?

Somos livres. Não sabemos é o que fazer com este nó cego

Saiste por uns instantes. Eu agüento.

Depois daquela intensidade, nunca mais te vi. Soube mais tarde que foste infeliz. Não me perdôo por teres me deixado partir

Parabéns, disse ela esfregando teu ombro e emitindo um sorriso simpático. Quiseste morrer. Como podia fingir tanta indiferença?

Há quanto tempo. Vem sempre por aqui? disseste, por falta de assunto. Sim, sou a mulher do dono, disse ela, com o olhar sombrio

Onde nos conhecemos? perguntaste assim por acaso. Numa Igreja,falou ela. Eu era a noiva e você caiu na besteira de me dar um beijo.Esqueceu?

Amanhã, então, disse ela. E foi embora para sempre. Estranho. O dia de hoje não acaba nunca

Amor, estou vendendo, disse ele. Sobrou do último ano. Compraste por quanto? ela perguntou. Só para saber se terás lucro

Rodaste pelos amores até chegar perto de mim. Foi quando usaste o laço: a palavra sincera extraindo mel do meu coração de pedra

Não se trata apenas de chegar lá. Quero que me fale disso. Diga o que nunca ouvi. Me reporte o mergulho, feminina

Oxigênio vai ficando raro conforme subimos a montanha. Até chegarmos ao cosmo frio, totalmente sem ar. Isso acontece quando me afasto de ti

Compus um decálogo para nós. O mais bonito é “me ame bem próximo de ti mesma”

Te desdobras, real, na areia, me olhando fundo e me pergunto porque perdemos tempo com luzinhas

Meço com os olhos o que és. Sentes com a pele o que sou. Vejo o que não sei. Sabes o que me tens

Fiz um pacote de verbo e deixei abandonado no espelho. Escolhi teu rosto como continente


RETORNO – Imagem desta edição: Sharon Stone

CONCHA DE ORVALHO


Nei Duclós

Toquei tua mão em concha. Estava cheia de orvalho. Nela bebi toda a manhã sem secá-la

Quando chegamos lá no alto, você apontou o horizonte. Era uma forma de me dizer que nosso amor enxerga longe

Estou proibido de te admirar. Extrapolei a cota

Mais uma dessas e acabas comigo. Precisas me preservar, sou feito de material antigo, disse o veterano na porta da donzela

Se tivesses a imagem que faço de mim eu ficaria tranqüilo. Mas tens exatamente o oposto. O homem presente com uma flor trêmula na mão

Devo fechar o estabelecimento.O escritório só volta em janeiro. Meu medo é que o teclado continue funcionando sob o comando do coração

Peguei o ônibus errado e precisei descer. Por acaso, dei de cara com você, que fingia curtir a balada. Tínhamos a marca do amor perdido

Faltaste ao encontro e mandei a fatura para o teu endereço. O pagamento não pode atrasar. Um beijo molhado todo mês, até a eternidade

Cumprimentos efusivos são despedidas. Um oi rosnado é quase um encontro

A ressaca do esforço gasto em reuniões familiares forçadas deve ter alguma influência nas estatísticas das estradas

Arte não é a beleza, mas a sua homenagem. A beleza é você

Amigo, disse ela, cortando um bife do teu coração e servindo na mesa comum

Nos vemos por aí, disse ela para reforçar a falta de compromisso. Nem ouviu o tilintar do anel sumindo pelo piso

Foi bem legal, ela disse sobre o mais importante momento da tua vida. Vamos repetir? gritaste. Outra hora, ela falou, dobrando a esquina

Todos te cobram, menos ela, que anda sumida. Fiel a esse amor, permaneces mudo, como um pássaro que assiste o apocalipse

Falta pouco, disse o anjo. Tudo está pronto. Deixa virar o ano, transbordar os rios, cair as pontes.Aí ela virá,com sua mochila de assombros


RETORNO – Imagem desta edição: obra de Paul Chabbas

CONFIDÊNCIA


Nei Duclós

Unhas na pele, rouge no amasso
pernas mais longas do que sinceras
umbigo à mostra, com véu de seda
cobrindo as precárias paredes

Não falo disso, por ser prudente
censuro a pena, guardo o tridente
escondo na gaveta a confidência
molho íntimo, design de rendas

Em vez do agarro, mais um soneto
acabo no limbo de tanto verbo
não queres rabisco, mas a criatura

Devo deixar essa insistência
de escrever a marca da queimadura
ferida aberta de tanta espera


RETORNO – Imagem desta edição: Jennifer Lopez

DESMAIO


Nei Duclós

Arte é plataforma, patamar, mirante
meta de um ofício, harém de sínteses
onde chega o mestre, séquito de sabinas
festa de aprendiz em carrossel de ritos

Palavras sem sentido adquirem vida
situações sem brilho na Lua refocilam
de lá se avista o corpo transcendido
sem a corrosão acumulada em lixo

Meta impossível, esse perfil de esquinas
que define o rosto de algo além da vida
longe da flor que medra sem currículo

Acabo sucumbindo às tentações de estilo
que é teu corpo nobre, estátua de delícias
capricho no cinzel, e desmaias sem ruído


RETORNO – Imagem desta edição: Alessandra Ambrosio

27 de dezembro de 2011

ESPANTO


Nei Duclós

Foste no breu aguardar minha volta. Acabaste dormindo. Foi quando o sol raiou sobre teu rosto e me viste te olhando. Eu havia chegado, espanto

Você me faz feliz todos os dias, ela disse. Foi o momento do balanço: o amor existe, e como

Vamos ser práticos. Você também me ama e pronto

Juntou gente para ver teu vestido. Só eu enxergava a musa, porque a espiei no banho

Não faz sentido sentar-se para compor versos. Melhor construir uma escova, varrer um piso. Vai que você resolva passar

Amor dói,mas deixa de existir quando machuca. Aí é outro setor. Enfermaria

Parei de vibrar os tambores. Não fazia sentido. Já não respondias. Decidi me recolher para o início, quando te vi pela primeira vez

Disseram para suspender o poema. Interromper o rio, falhar a pleno. Colocar a vela no chão do barco em alto mar. Ficar à deriva, como um iceberg

Está vendo a enorme montanha de gelo se desprendendo do continente e indo em direção ao abismo? Sou eu, coração de pedra à deriva

Está vendo o leão marinho uivando sobre o iceberg enquanto o clima ameaça o dia? É o sonho, que acreditou na viagem e agora pede socorro

Não me fale o que não digo. Silencio a dor para ver se desiste. Não alimente o que não ligo. Abandone o choque, refaça a pele ferida

Tanta companhia e a solidão mandando sinais da estrela guia. Somos um navio, amiga

E o que diz tua paixão, orquídea? Roxa de ilusão, pede água e olho bom, firme

Pé ante pé, para não acordar os anjos, digo no teu ouvido um poema que inventei sem nenhum auxílio. Escute e molhe o nosso jardim, carinho

Vou para o canto, onde uma sombra me conforta do perigo. Venha comigo, coração de vidro, exposto como um raio de luz, infinito

Trocamos palavras de calor antigo, que nos acompanham desde início, quando fomos brindados pelo encontro definitivo

Pronto, pronto, disse ela. Não se atire. Volto no próximo trem, quando houver clima. Espero que seja passageiro este exílio

Não me conformo com tanta beleza. Queria que fosses minha. Melhor assim, viver à parte da felicidade para não sofrer de amor

Suei para te agradar. Mas me dá a impressão que desististe. Meus excessos cansaram tua beleza

Melhor ficar longe. Tanta poesia acaba gerando desconfiança. Rolam nas estantes as pérolas perdidas de amores ardentes

Bela planta industrial, disse o visitante. Depósitos gigantescos de amianto. E aquele canto coberto por lona? Ah, são sonhos,disse o gerente


RETORNO - Imagem desta edição: Winona Ryder

CULTIVO


Nei Duclós

As formas mais perfeitas de vida em todo o cosmo são as joaninhas

O amor é quando a joaninha alça vôo na orquídea que cultivas no teu jardim

Beija-flores e joaninhas seguram a existência do universo na ponta de suas asas

Amor deixa de ser desperdício quando a coragem toma o leme sem machucar a tripulação

Amor desperdiçado no quarto de despejo.Guardado sob o pó de inúmeros laços.Lembrança num cofre de compromissos.Numa branca coleção de vidros

Cediço despertar como palavra antiga, quando havia sol envolto em mercúrio cromo, sangrando em horizontes cheios de esperança

Queria mudar de assunto,mas recebi uma carta sua. Ainda não abri. Espero que meu espírito amadureça. Acho que 5 segundos são suficientes

Também não precisa exagerar, me dizem. Foi só uma gentileza. Sim, mas já sentiram o borrifo do mar às três da tarde no calorão?

Cruzei o mar para resolver a parada mas não estavas lá. Agora faço a viagem de volta de um ponto remoto, do infinito onde o amor me jogou

Entende outra coisa quando falo à toa. Não escuta se falo sério. Pede que eu repita se fiquei calado. Discute a relação quando quero ir embora

Gosto do que dizes quando não aceitas. Quero que me mostre quando não compreendo. Chego a duvidar da minha sorte. Volto melhor a cada beijo

Faço conferência se murmuras algo. Quero convencer que não sou o mesmo. Mas me tens na mira rindo do meu esforço. Te quero assim mesmo, diz

Não resisto ao teu charme, ela disse. Imita de novo aquele ídolo

Vou abandonar minha coleção de selos. Doarei para a caridade o que reuni em décadas de silêncio, recebendo de volta tua correspondência

Não ganho nada com isso. Nem soma na aposentadoria. Amor é ralo aberto na montanha, caindo em forma de cachoeira invisível, véu de noiva chorona



RETORNO - Imagem desta edição: obra de Gustave Coubert

26 de dezembro de 2011

APERTO


Nei Duclós

Esse gato assustado com o cheiro
de olho arregalado pelo beijo
não acredita no que vê e sente
ser favorito do cânone da beleza

Não a bela que forra as paredes
pose falsa em virtuais banquetes
mas a essência da obra suprema
que na Criação veio primeiro

Quisera eu ser o alvo da carícia
que eriça o pêlo e gera o alvoroço
no corpo excluído no remorso

O exílio do amor é o mais intenso
ganha de toda solidão e sofrimento
mas vem você e nada mais é o mesmo


RETORNO – Imagem desta edição: Carol Phonenix

MOTIVO


Nei Duclós

Explico o motivo do poema
inteiro em seu perfil de verbo
cidade com todos os nervos
nação a postos na fronteira

Poesia além do sonho, uma arma
lugar de morar ao mesmo tempo
serve de batalha e de amurada
serva da beleza e da vanguarda

Pois tudo é datado, menos o verso
feito de vocação, amor e sofrimento
teimosa permanência, coral de chamas

Ele mantém o prumo de um império
que tem na base serena consistência
capaz de sucumbir diante da deusa


RETORNO – Imagem desta edição: obra de Gustave Jean Jacquet

COLCHÃO DE NUVEM


Nei Duclós

Teu beijo ficará comigo até tua volta. Estou fazendo coleção

Colchão de nuvem, deitas olhando teu céu, meu rosto cheio de estrelas

Depois da cama, perdi aquela cara de travesseiro

Tirei você para dançar. Foi quando morri

Todo amor para ti retorna 3 vezes mais intenso.Todo beijo vale o triplo.O abraço volta em forma de multidão. Refletes o eu te amo nas nuvens

Gastei tua mensagem com os olhos. Ainda não acredito no que está escrito: teu nome assinado ao lado de minúscula flor

Tocas para ti, boiando no infinito. Guardada em teu canto, todos te escutam. É como o coração na cela do peito: quando bate, atinge o alvo

Mais não podes dizer, íntima. Preservas o que tens de lindo, linda. De tua carruagem sou teu guia: obedeço ao comando da rainha

Posso andar à toa depois que me presenteaste o guizo. Onde for, não estarei mais perdido. Me farejas pelo som de sino

Assim desse ângulo fico triste. Mas se mudar a perspectiva, poderei entrar no templo fechado do teu sonho

Depois da meia noite tudo fica estranho. Antes do amanhecer parece sonho. No sol a pino te banho. Aguardo a Lua, quando me chamas

A conexão está impregnada pelo teu cheiro. Navego num mar de perfume

Ficamos juntos desta vez, úmida. Agarrados numa tarde de frases soltas. Nem sabíamos dessa possibilidade. Ser tão feliz com tão pouco

Obedeço teus votos, vou ficar bem. Estás na lembrança e espero o próximo encontro. Como num livro de personagens confidentes

Nem tenho foto tua. Não precisa. Me emprestas a Lua

Debaixo da cama tem um duende: meu recado de amor, embrulhado para presente

Como naquela noite, se eu tiver a sorte idêntica, serei a abraçado em teu seio. Ficarás olhando para meu sono


RETORNO – Imagem desta edição: Ava Gardner

25 de dezembro de 2011

AMBIÇÃO


Nei Duclós

Não é vício, mas de outra estirpe
a composição obsessiva do poema
Não obedece a nenhum esquema
ou quer transparecer o que não vivo

Gostam de dizer que é uma beleza
o perfil mais adequado deste crime
e difundem suspiros pela brisa
como se eu fosse o fole de oficina

Soneto é uma espécie de sequestro
da alma recolhida em ventania
veneno oculto da flecha de Cupido

Sou o aspirante ao trono mais violento
o que não dorme na ambição extrema
de te acertar em cheio, minha rainha


RETORNO – Imagem desta edição: Kimberly Cox

ADIVINHO QUE TE AMO


Nei Duclós

Joguei conchas, li as cartas, pesquisei na borra do café. Não para te decifrar, mas para adivinhar que te amo

Palavra não tem vaidade, não gosta de elogio à toa. Se maquia quando tem vontade, não quando a obrigação dá as cartas.

Romantismo é pedreira, não esse derramamento de jarro. Esse puxa-saquismo da palavra amor, que tenta seduzir pela falsidade

Poesia amorosa é perda de uma parte sua e não um bibelô na sala. É viagem de camelo pela África, não uma ida ao shopping

Toda “dizida” metida a amorosa que olha de esguelha o efeito das suas palavras em quem lê pode apostar: é fria

Demagogia com mulher, então, é praga. Ou você admira e se rende ao abismo e ao enigma, sem tentar dar dicas e piscadinhas

Amor é uma coisa bruta, que te derruba. E ao cair, você mergulha na doçura

Mulher é fresca, mas não frescura. É doce, mas não água-com-açúcar.E pode se tudo isso, desde que você não se meta a entendê-la, cavalgadura

Por que não posso ir? perguntou a Sereia. Porque é em terra firme, não em alto mar, disse Jack o Marujo. Chão bruto em vez de escama, tropeço e não mergulho

Que amor é esse que ameaça? Não há amor quando se toma

A ilha faz tempo bom quando logo cedo no verão o dia tem aquela consistência de ouro antigo, como se a luz do outono viesse pegar praia

Um belo dia os pássaros anunciam que podemos visitar o horizonte, que chegou até a orla para se espreguiçar

Não lido com o amor, não é expediente. Normalmente me atrapalho. Não aprendo nunca. Sabe onde fica a dor? Moro em frente

Voltei correndo para a rua onde vivíamos. Fico por aqui, contando os pingos da chuva. Um dia apareceste do nada, molhada por um sorriso

Passei uns dias sem amor. Quando acordei, estava atirado num canto do cais. De um navio, meu coração abanava como louco

Fui dez vezes na parada de ônibus, achando que vinhas. Só desciam sapatos, nenhum pé com tua cicatriz de infância

Não estranhe. Voltei ao meu normal. Quando te amo

Fechei para balanço. Não adianta insistir dizendo que ainda há tempo. Estou voando junto com quem eu quero tanto

Ali no canto, pode pegar. É o que sobrou de um relacionamento. Dois sonhos pisados, uma ametista fosca e um anel feito de cartolina

Passe depois, então. Fico esperando. Há um banco que ninguém senta.É o do nosso encontro, quando vestias aquela blusa cor de vinho sangrando

Nada de drama, concordo.Lágrima é fóssil de museu que ninguém visita. Vamos adotar a cara de paisagem, cheio de estrelas mortas dentro

Vá embora, estou chorando. Nenhum amor sobrevive se houver piedade. Prefiro que me mates com teu beijo



RETORNO – Imagem de hoje: Eva Mendes

24 de dezembro de 2011

DIVÃ


Nei Duclós

Pingo de mel que é o teu self
nutre confiante e complicado
engolfa o ego, me faz estrago
divã de mestres do passado

Ou tudo não passa de pitacos?
livros que não valem a maçã
falso saber, biombo de estanho
onde escondo teu ser exuberante

Comprei um 38 contra concorrentes
vibro o chicote no gentio meliante
civilizo por osmose e o meu tamanho

És um poço de cultura, minha amante
ninguém tem vez contigo, meu portento
sou teu único aluno, reprovo por proveito


RERORNO – Imagem destas edição: obra de Rodolfo Amoedo

23 de dezembro de 2011

PECO PELO EXCESSO


Nei Duclós

Peco pelo excesso: não te conheço.
Mas isso não me impede de querer-te

Peco pelo excesso: sou tua sombra.
Puna-me com teu sol esplêndido

Peco pelo excesso: tenho medo.
Seja minha coragem, que eu navego

Peco pelo excesso: só para mim escreves.
Guardo na gaveta e finjo que não leio

Peco pelo excesso: caio morto
quando desces do pedestal absurdo

Peco pelo excesso: quero arreglo.
Mesmo que eu não tenha mais sossego

Peco pelo excessso: toco banjo,
enquanto és solista das bachianas

Peco pelo excesso: sou tua dança
quando te atiras para o vôo

Peco pelo excesso só para ter vez
no teu confessionário

Peco pelo excesso: compro a platéia
na tua ópera para dominar o gargarejo

Peco pelo excesso: descarrego
um caminhão de flor a teu critério

Peco pelo excesso: sou teu servo
mas essa escravidão é meu tempero

Peco pelo excesso: em vez de jóias
cumulo de amor teu lado esquerdo

Peco pelo excesso: não me meto
a te esquecer mesmo que queiras

Peco pelo excesso: em teu seio
pousa a solidão que já não tenho

Peco pelo excesso: não há teto
quando viajo nas nuvens do poema


RETORNO – Imagem desta edição: Natalie Wood em West Side Story

ÍNTIMA MÚSICA


Nei Duclós

Refaço o rumo, ou esclareço a trilha quando acendes a luz. A que trazes de ti, íntima música

Agora que me tens e brincas com minhas palavras, posso dizer a mim mesmo que posso ter esperança? Ou continuarei no limbo do começo?

Conversamos normalmente como se não houvesse nada entre nós. Mas de longe as pessoas notam a delicadeza do teu toque no meu braço

No primeiro dia em que enfim nos encontramos,dissemos coisas banais sobre o ambiente e o clima. De repente teu olhar me abate como um míssil

Vamos nos falando, disse ela há cem anos

Tens tantas histórias, me disse ela antes de partir. Sim, a melhor é a contigo, falei para a estação vazia

Cansei de te sussurrar segredos. Agora falo alto para você ouvir.

Aguarde a próxima mensagem, disseste nas entrelinhas. Quem sabe meu coração sente saudade

Não quero mais que me abrace, ela falou. Melhor ficarmos distantes, neste banco apertado de praça, meu amor

Não se preocupe, isso passa, falei. Já estive assim antes. Em outra encarnação, em outra eternidade. O amor de hoje também fará parte das estrelas

Você é bonita, falaram para a palavra. O importante é o meu significado, disse ela

Romantismo é um bom nicho de mercado, disse o pragmático. Não tenho valor se ela não me quer, disse o coração

Gostou da minha coleção de palavras? perguntou o beletrista. São comportadas porque estão na cela, falei. Solte que elas te mordem

Tenha cuidado com as palavras, disse o censor. Ah, são suas? perguntei

Coloquei alguns poemas na cabeceira da cama, meu amor. Para estarem lá no teu despertar

Talvez amanhã ela me convoque. Há tanto o que fazer. Uma conversa sobre tudo. Um passeio na tarde. E um até logo interminável, daqueles que melam calçada

O sentimento é o verdadeiro amor, independente de quem for o alvo

Não devemos implorar carinho, a não ser que sua paixão esteja fazendo parte da indiferença da paisagem

Jogaste fora as coisas inúteis que se acumularam no ano: chocalhos, porta-retratos, versos esparsos de amor, sapatinhos de cristal

Entramos em recesso, disse ela. Fique aqui, colecionando estrelas. Depois me dê, quando eu voltar do exílio, vazia como um trem abandonado


RETORNO – Imagem desta edição: obra de François Gall

ESPOLETA


Nei Duclós

Maduro perfume sob o sol
espalhado ao sabor da sorte
molha além do coração
atinge o núcleo da espiral

É coletiva essa sensação
que balança o sólido coreto
serpentina ralando o chão
falsidade expulsa pelo cheiro

Chega mais perto, diz o corpo ardente
elaborando apertos mais ao norte
onde conflui fluidos de espoleta

Somos pessoas do século dezenove
a fazer galanteio em gesto nobre
e fogo atiçando o que não dorme


RETORNO – Imagem desta edição: Harlequinn and Columbine, de Jean-Antoine Watteau

DESENLACE


Nei Duclós

Amor é drama quando há ruptura
lenço de sangue na viagem súbita
lágrima de sal moído em terracota
chá de fel como exemplo de amargura

Vou partir, pastora, já estou pronto
saio da roda clara do teu manto
perco novamente o que me toca
nesta estação eterna de martírio

Não é justo atribuirmos ao romance
o que pertence ao desenlace
entre o sonho louco e o expediente

Nascemos com vocação do sentimento
e exercemos sem medir retorno
o que nos faz melhor e escapa sempre


RETORNO – Imagem desta edição: Vínculos, obra de Dario Ortiz, Colombia

22 de dezembro de 2011

MISTUREI AS ESTAÇÕES


Nei Duclós

Reli teu bilhete na contra luz. Um inseto atrapalhou a ciranda das frases. Embaralhei tudo, recomecei. Era tua emoção, meu maior presente

Faz tempo que não dizes nada. É uma eternidade esses cinco minutos.

Levei as frases do teu bilhete para conhecer as redondezas. Elas gostaram do mirante, onde nos beijamos. A mais animada era a eu te amo

O poema veste o terno azul diamante do soneto para cruzar a rua. Os estranhos lhe entregam pepitas que tilintam em seus bolsos de linho

Para me agradar dizes que corres perigo. Eu faço aquela pose de faroeste

Fazemos tudo meio apressados porque temos encontro às dez. Chegamos esbaforidos no mesmo instante e caímos num riso tão perfeito que parece choro

Vou dar um tempo, me disse. Para quem? perguntei. Para mim, falou. Então somos dois

Não entendi, você também vai dar um tempo para você? ela perguntou. Não, para você, respondi

Foi-se o dia. Guardo sua lembrança como um pequeno fogo na beira do mar. Não ilumina os navios, mas inspira os que estão no convés, atracados

Misturei as estações. Coloquei primavera no verão e outono no inverno. Assim floresceste fora da temporada e o amor deu frutos na tempestade

Misturei as estações. Te chamei de amor quando não devia. Te tirei para dançar depois do baile.Te joguei bilhetes ilegíveis.Apareci no sonho

Misturei as estações. Tropecei na cerimônia. Bebi demais no aniversário. Xinguei os passarinhos. Mas fui perdoado pelo arco-iris

Misturei as estações. Invadi a reunião no momento xis.Desisti do projeto ainda no começo.Te ofereci carona depois de perder a chave do carro

Misturei as estações. Me declarei no primeiro minuto. Persegui teus filmes favoritos. Perdi a noção das horas sob a neve diante da tua janela

Misturei as estações.Abri o bico na hora errada.Calei-me quando devia falar.Não compareci ao encontro porque me atrapalhei. Perdoa, coração?

Não quero te aborrecer com minhas histórias. Vamos dançar?

Lembrança é a seleção de um cena pelo filtro do tempo.Perdemos o principal,que pertence não à memória, mas ao mistério. Sombra que pulsa luz

Teu cabelo ia até a cintura. Estavas de costas. Os pássaros emudeceram na tua passagem. O momento gravou uma pintura

Lembro o que sobrou da névoa. Troco personagens. Observo o que não vi. Mas no poema tudo sai certo.A verdade é tão natural quanto as árvores

Viciei em ti, ela me disse. Não vá embora senão posso desaparecer. Para teu sumiço tenho um remédio, falei. Um beijo sem nenhuma piedade



RETORNO - Imagem desta edição: Hale Berry

21 de dezembro de 2011

ESTRONDO


Nei Duclós

Palavra suspensa, agora é sério
tua presença além do correio
carta em mãos, maior sufoco
coração transbordando o teto

Encontro trabalhado no olho
rosto próximo e com defeitos
meu cabelo mal feito a pente
e teu desleixo na sobrancelha

Não mais ilusão, mulher que veio
dar as caras no teste de afeto
seqüestro no sofá, refém do êxtase

Rabisco timidamente outro soneto
overdose de amor enquanto morro
preparo o rito que gera o estrondo



RETORNO - Imagem desta edição: Renée Zellweger.

UMA ÚNICA GOTA


Nei Duclós

Não vejo ninguém em oito bilhões no planeta. Só teu rosto encoberto pela ausência. Estive no mar em busca de uma única gota

Agora estou perdido. Migrei para as mãos de uma ave de arribação, a que voa do sonho para o infinito. Como poderei ir junto dispondo de asas tão precárias?

Houve um estalar de ventos no meio da calmaria. E me vi em plena borrasca do sentimento. Por que me surpreendes, peregrina?

Perdi mais esta chance, meu tesouro. Talvez em outro tempo, quando houver abrigo para o sentimento, pequeno animal ferido

Não tem importância, não se ligue. Passaremos imunes. Te cobriste de flor sem que eu pudesse providenciar um frasco para teu perfume

Cada dia mais perto, como a espiral de esperança que se fecha sobre teu sopro. Cada dia mais longe a solidão. Cada dia mais cheia a agenda do coração

Depois que ela se foi, um silêncio pesado dominou o deserto. Um pé de vento levantou uma espiral de areia. Era minha alma, aos fragmentos

Reconheço teu silêncio como a chance que temos.A palavra é hóspede nesse território e está sob suspeita.Só teu olhar ilumina,amorosa,terna

De vez em quando você se debate e cria um revoar de pombos na tua concentração de canteiros. É quando voam pétalas do teu perfume denso

Cheiro de longe o que aprontas no teu canto. Não tento adivinhar, porque não tenho acesso a segredos. Mas sei que sou eu teu vibrar de sinos

Agora reencontras teus hábitos, a vida sem mim, a que te dá conforto. Mas chega a hora em que te atiras no corredor, descomposta

Temos uma praça, exposta para o tempo. Lá és a estátua de gesso. Jogo tinta em teu cabelo e ele pega fogo. É quando me perguntas o que está havendo

É só o que tenho, esse rosto e meia dúzia de palavras. Acervo que compõe uma mensagem cifrada. “Amanhã te beijo”, parece que diz a charada

O que mata não é tua mensagem, mas o que nela fica encoberto. Essa camada de tormento, doce cristalizado, açúcar com fermento

Eu apenas repasso o que pintou na tarde. Um sorvete a dois, uma confidência, uma fuga para o mato. E tua veia saltada à beira de um colapso

Você beijou o menino que mora dentro do homem. Acariciou a infância onde mora o perigo. És mais linda que uma rosa demente de tão vermelha


RETORNO – Imagem desta edição: Audrey Hepburn

CONVÊNIO


Nei Duclós

Vais me deixar sem sentir teu cheiro
sem um abraço e fora do meu centro
ficarei na periferia onde me perco
por não ter acesso aos teus espelhos

Não enxergo a dor de ser eu mesmo
sem tua imagem, crisálida de apego
me refletindo e ao mesmo tempo vendo
amor que me reparte em mil compêndios

Nasço nas páginas em que és convênio
forço as palavras por enxergar perigo
fujo do tempo permanecendo vivo

Partirás com tua coleção de selos
sendo o mais raro o que mostra um reino
onde o guerreiro rouba uma princesa


RETORNO – Imagem desta edição: Eva Mendes

20 de dezembro de 2011

NOVOS LIVROS


Nei Duclós

É generosa a safra de livros novos neste ano. Os impressos continuam firmes, e irão continuar a existir, convivendo com toda a revolução digital. Toda mudança é soma. A fotografia não desbancou a pintura, nem o cinema o teatro e nem a televisão o cinema. A primeira boa notícia é que meu livro de poemas, o quarto, Partimos de Manhã, foi selecionado pelo Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul para ser publicado em 2012. Foi pelo IEL-RS, na gestão de Ligia Averbruck, em 1975, que estreei com Outubro. Desde 2001, com “No Mar, Veremos”, pela Editora Globo, que não publico uma coletânea de poesia, ofício a que tenho me dedicado cada vez mais, colocando on line a produção destes últimos tempos.

Neste final de ano está sendo distribuído Laguna, obra e paisagem pela Editora Expressão de Florianópolis, com patrocínio de empresas pela lei de incentivos à cultura, um projeto encomendado pelo meu amigo editor e jornalista, Antonio Carlos Coutinho, o Zuba, com quem trabalhei nos gloriosos tempos da Folha de S. Paulo de Claudio Abramo e Tarso de Castro no final dos 70.Com pesquisa de minha esposa, a socióloga formada pela USP Ida Duclós, o livro sobre Laguna é uma incorporação de narrativas e estudos sobre a jóia do litoral catarinense e um assombro fotográfico, que esteve a cargo do jovem Edson Junkes. O visual do livro é mais uma prova da competência e talento de um mestre do ofício, Luiz Acácio de Souza, que conheci muito menino nos idos dos anos 70 aqui nas redações catarinenses.

Há também o segundo volume da saga Diogo e Diana, o casal de adolescentes com poderes sobrenaturais , que a Record está lançando. Projeto de Tabajara Ruas, que me convidou para ajudar a escrever, depois do primeiro livro em 2008 temos agora A Trilha da Lua Cheia, com aventuras espetaculares da turma formada pelo casal e seus amigos, mais alguns adultos especiais. Conheço Taba desde os tempos do Colégio Santana, mas só fizemos amizade em Porto Alegre. Amizade que cruza o tempo e hoje é a fonte dessa parceria de excelentes resultados. É emocionante receber mensagens de professores, alunos, jovens e adultos que adoram as histórias da dupla.

E falando em amizade, Cabeto Bastos, o mais gentil e cavalheiro exemplar da minha geração uruguaianense, a pessoa que é um símbolo do nível de civilização que foi gerada na fronteira, me envia Chico Bastos, o pescador, de Willy Cesar, o perfil aprofundado de seu tio, Francisco Martins Bastos, um cidadão que enfeixa as qualidade do seu tempo, época de grandes estadistas em todas as atividades humanas. Mergulho na leitura e trarei para cá o que tenho aprendido nesta pesquisa primorosa, em que se sobressai a grandeza dos pioneiros do petróleo no Brasil, formados num sistema educacional rígido, em valores familiares e institucionais sólidos e que deixaram um legado eterno para as novas gerações.

Precisamos da poesia, da História, da biografia, da ficção para reforçarmos um imaginário poderoso de forte influência na realidade. Somos palavras que se incorporam na vida bruta dos dias. Amor pela palavra, e mãos à obra.


APRESENTAÇÃO DE “LAGUNA, OBRA E PAISAGEM”

“Este livro sobre Laguna é uma homenagem aos seus cronistas clássicos e contemporâneos, aos seus pesquisadores pioneiros e atuais e ao acervo de narrativas que eles compuseram ao longo do tempo. Aqui Laguna é vista pelos que entendem do assunto e dedicaram ou dedicam suas vidas para reportar, decifrar, celebrar essa joia do litoral catarinense, que se expressa por suas inúmeras manifestações culturais, econômicas, religiosas.

É um mergulho que, a partir da superfície das formas, procura atingir a essência de um lugar que luta pela preservação do seu patrimônio. E que a partir dos vestígios resgata uma parte importante da história do Sul do Brasil.Trata-se apenas de um voo de pássaro diante da grandeza desse acervo acumulado, um plano geral, com alguns closes, das cenas que fazem de Laguna um marco fundamental da civilização brasileira como soma de grandes contribuições de outros continentes e que aqui encontraram seu rosto próprio.

É, portanto, uma história tecida com as palavras que a pesquisa revelou e por isso a sua fonte é compartilhada pelas pessoas que gostam de Laguna e transmitem esse amor a todos que dela se aproximam”. (O Editor)


RETORNO - A crônica "Novos Livros" foi publicada no jornal Momento de Uruguaiana.

VIAJANTE


Nei Duclós

Te vi de relance. O suficiente para notar aquele sinal visível no decote. Pirei ali mesmo, te imaginando em outra. Mas estavas só, viajante

Nunca é a mesma coisa. No ano passado nem sabias da minha existência. Hoje me ignoras, o que é diferente

Passarei a pão e água na ultima cabana antes do deserto. Desertarei de exércitos famintos. Saberei a pó, pastora, mas chegarei a tempo

O amor me cansa, por isso me decidi por outra coisa, disse a confidente. Hoje colho conchas em praias detonadas para fazer um colar de sonhos

Sua fórmula é conhecida, disse o estudioso. São palavras com eco de quando em quando, para seduzir pelo ouvido. Aprendi com as sereias, admiti

Trocamos imagens sedutoras, de notoriedades intensas. Mas é só implicância. Gostamos mesmo é da nossa imperfeição extrema

Balanço do ano: te amo. Amor é quando você me balança

Estou sempre no mesmo lugar à tua espera.Um dia te pego,disse o Tempo. Deixe primeiro passar a caravana,peço.Tenho um particular com a deusa

O amor sussurrou por um segundo e foi além da conta: todos os pássaros subitamente levantaram vôo no meu coração liberto

Tudo é teu, dona. Me tens porque sei o quanto sonha teu corpo com o meu

Sei que te irrito, não consigo evitar. Pode me matar, mas me leva contigo

Escancarar o íntimo é tirar dele toda a intimidade. Resguarde e fale por fábulas, metáforas, parábolas. Use todo o acervo da linguagem

Sou tua propriedade, meu segredo. O amor cercou com muro alto de granito. Lá há um jardim aberto para o sem fim

Mudaste meu coração, ela me disse. Agora não sei se é meu e onde coloco. Em nenhum lugar cabe, a não ser no teu

Tem sido intenso para mim, ela me disse. Fui jogada onde não digo. Venha me ver, se é que tens a pista

Ela deu um tempo no limbo onde vive. De lá de vez em quando joga uma seta de Cupido. Aguenta coração, essa ferida

Sangra o mote da paixão no papel em branco. Espontâneo, o poema se escreve. É ela, pegando da minha mão

Sabes ser musa, meu mistério. Não gastas à toa teus poderes. Viras as costas enquanto adivinho. Acho que ris, mas choras, doçura da minha hora

Tua mensagem me sustenta por anos. Mas só dois dias eu agüento, meu encanto. Me escreva de novo

Estou pensando em ti, depois me mando para outras paragens da lembrança em rede. Todas com tua imagem, sempre


RETORNO – Imagem desta edição: Jane Russell

FORTALEZA


Nei Duclós


O ano trouxe amor e o resto passa
coração embrulhado para presente
o poema como cavaleiro andante
a musa trança o verbo da janela

Sim, é fantasia e a vida vive disso
realidade para as mãos feridas
para o corpo exausto e a voz tardia
é sonho que encarna a epifania

O tempo enfim nos deu uma trégua
faça o balanço da água que te banha
desde o orvalho até a oculta rosa

Venha sentar-se à hora do mistério
e compartilhe essa visão grandiosa
sou fortaleza e tu o lago do castelo


RETORNO – Imagem desta edição: Grace Kelly

19 de dezembro de 2011

ALVOROÇO


Nei Duclós

É tão suave o toque do teu corpo. Roça meu nariz com gosto. Formata o ombro. Coloca fogo brando e depois incêndio. Quem te segura, alvoroço?

Perguntam como estou. Você me dói um pouco, respondo. Mas logo fico bom quando você chega cheirando a chuva

Fui reprovado em todos os testes rigorosos de tua seleta. Espero que releves. Sei que me amas, definitiva

O poema repõe forças, alinha sopros, recupera tempos, alinhava toques, acompanha ventos, desarvora, para que o amor triunfe

Levo um susto quando dás o bote.Enrodilhada no silêncio,de repente dizes o que eu não esperava. Tento me recuperar,mas é tarde.Fui capturado

Quem deveria me dizer, se cala. Fica a demanda. Todos se atiram, em vão, no ouvido alheio. Só tu me tens, palavra

Hoje não soube de ti, sentimento. Ficaste longe, como sempre. Não te chamo, para não quebrar o encanto. Aguardo a estrela Dalva

Vales mais que toda algaravia. Esse jorro de declarações sem sentido. Me fazes companhia, concentrada

Queres saber o que realmente digo por trás do biombo das palavras. O que fala meu coração quando se cala

E você, fortuita, não me peças decisões quando só tenho amor. Quem ama tem essas escassez de concretagens

É você que lê e guarda. E olha o poema contra a luz da Lua nova. Para ver se na letra mora a verdade que imagino ter

Vou deixar para amanhã o verbo que me pega pelo braço. Pouso em ti, flor do espaço

És a criatura mais linda deste dia. A mais feminina, a mais mulher. Fico louco de alegria só em te ver

Esse amor não dá trégua. Vão ter que nos prender e nos jogar em celas separadas de planetas distantes. Pois qualquer proximidade resgatará o grude

Quis comentar as notícias, mas o amor desviou minha atenção. O talo de flor que colocaste na boca tem mais impacto e sabor

Esperei amanhecer para te ver passando. Então voltei ao normal, porque és meu dia claro

Não há como viver sem que me digas quando. Nem fazer viagem sem teu encanto. Nem compor o verso sem tua canção selvagem

A caixa postal estava cheia de folhas. Não foi o vento. Eram bilhetes que me enviaste de Andrômeda

Me risca num papel novo. Me dobra em forma de navio, de pluma, de rosto . Como se eu fosse teu adorno. Um camafeu brilhando no pescoço

Musa é pouco, és meu entorno. Giras como vagalume sobre a noite. Mariposa prateada sem pouso. Piscas como louca, meu martírio

Chegaste cedo, dobraste a roupa. Eu ainda dormia sem fazer alarde. Amarraste a fita dos meus sonhos. E me beijaste a boca, às três da tarde

Ninguém adivinha meu alvo. És tu, mulher que me fez confesso. Depois de ti, abri todas as comportas. Te inundo, maravilhosa

És boa nisso, poções e ungüentos. Mas sou de outros tratos. Lancei um foguete para a Lua. Porque estavas lá, mágica

Se for permitido o sentimento e não houver cama para o remorso, sou pretendente do teu trato, da primeira dança no salão do teu recanto


RETORNO – Imagem desta edição: Anne Hathaway

LIMITE


Nei Duclós

Há um limite para o amor: é no poema
chega uma hora que ele não dá conta
é quando deixas de lado meus rabiscos
e olhas para mim como um estranho

queres saber se sou o que escrevo
digo que não porque assim preservo
o segredo que me sopram os longevos
anjos do verbo imantados em sua lira

Mas a flor não engana o precipício
por mais que tente ser montanha
conheces os meus truques, alpinista

Devo então voltar à minha origem
à forja da oficina que por vício
deixou de obedecer o teu comando



RETORNO – Imagem desta edição: obra de Georgia O'Keeffe

ALEGORIA


Nei Duclós

És a graça e não permito
dores em teus domínios
Fiz a guerra por tua causa
modelo vivo de estátua

As multidões estão cegas
não enxergam o que é divino
misturada ao que te nega
brilhas como alegoria

Tens os cavalos marinhos
corações feitos de entrega
pinturas de amor antigo

Caminhas como respiras
sem o ar quem te admira
me falta fôlego, amiga



RETORNO – Imagem desta edição: Claudia Cardinale

18 de dezembro de 2011

VOA, CORAÇÃO DE ESPUMA


Nei Duclós

Deves perdoar quem te celebra. Principalmente quando fico de joelhos

Não te inflo para seres minha, mas para que flutues. Voa, coração de espuma, gerada no mar da poesia

Fui ver um filme, mas saí no meio da sessão, chutando lata. Os versos não me deixavam. Queria morar naquela cena em que me beijas

Tente fugir quando eu chegar com versos saindo pelos bolsos e o olhar à tua procura. Sou perigoso quando há lua. Mas desista, abismo

Entregue o que promete teu desejo disfarçado em gestos cotidianos. Ceda à força que me impões com tua doçura. Busque o sol no mundo escuro

Fomos cercados, mas não importa. Faça comigo a cama de um reparte. Diga, meu coração, como se transforma amor em arte

Fizemos uma reunião na beira do lago. O sol da manhã prateava as águas com escamas , nos cegando de luz. Te amo, disse ela, na ata

Emudeço diante do teu corpo e grito cale-se para quem assobia

O que vai fazer no Natal? disse ele antes de partir. Vou colocar uma meia na árvore para ganhar você de presente, disse ela

As casas vazias passam o fim do ano escutando vozes. São passos do outro mundo. Há uma festa atrás do espelho. Móveis estalam

Demais a solidão, amor. Parece não ter cura. É como ficar sem condução no front, quando todos já partiram e você fica à mercê do perigo que se aproxima

Sempre falta alguma coisa no fim do ano. O amor que não se consuma, a ausência de um aceno. De quebra, uma lembrança fazendo marcas no lombo

Sempre há esperança quando o ano finda. É o que diz tua caligrafia, amor distante

Feche a casa e aposte que o canteiro sobreviva até voltares em janeiro. Vou pular o muro para regar teu cheiro que deixaste sob a ramaria

Não se espante se eu deixar tudo como está e me recolha nas montanhas. Não vá bater na porta tardiamente. Estarei longe, escondido no sótão

Me abraça forte para evitar que eu me esvazie definitivamente. Preciso do teu alimento. Teu corpo doce arranca choro do meu sonho extinto

Seja quem for, faça o que fizer, serás sempre a água interior dando banho em nosso abrigo. Te sinto trêmula chegando, de qualquer ponto

Estava perdido entre sombras, pessoas que nada sentem. Vieste resgatar o que fomos, antes da queda. Voltamos, como os pássaros do verão

A poesia aos poucos vai me resgatando do vazio do dia. É como desembrulhar uma folha e dentro existir um rebento. Nosso amor pulsando

Conhecemos a fonte. Fica atrás do morro, perto do deserto. Lá uma forquilha descobre o veio. É o filete que sai da tua boca, sereia

No meu colo cantas uma fantasia. Estou nela. Leio nas estrelas, que agora pintam o céu de promessas

No meu colo cantas uma fantasia. Estou nela. Leio nas estrelas, que agora pintam o céu de promessas

Fui empurrado para a doçura como uma aventura rola no abismo. Fui recebido na última hora pelo molho generoso da tua língua

Falas comigo com a graça que te define. Sou bruto e me civilizas. És no fundo o que me faz a poesia

Fui devorar o mundo com minha força. Voltei quebrado. Me recebeste com o olhar em dúvida. Mas teu corpo sabia mais e acabamos juntos

Releve quando peso a mão no verbo. É só um tombo no infinito prazer de estar contigo. Vou ficar mudo um segundo, maravilha



RETORNO – Imagem desta edição: obra de Madrazo y Garreta

COLHEITA


Nei Duclós

Não cultivei nada, no entanto colho
e por isso ando assim, já meio tonto
de explicar a riqueza da despensa
se cheguei aqui sem nenhum bolso

E não foi trabalho, sorte ou jogo
sequer poupança que empilhei no eito
também não casei abrindo o olho
ou recebi herança de remoto espólio

Ninguém pergunta o que compro à toa
toda vez que surge uma colheita
se são castanheiras, folha ou espiga

Querem apenas saber de onde eu tiro
recursos para entesourar tantos favores
é que pago teu lote de flor com poesia


RETORNO - Imagem desta edição: Sophia Loren