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28 de dezembro de 2011
VIAGEM À PARIS IMAGINADA
Nei Duclós
Depois de ver Midnight in Paris, de Woody Allen, me mudei para lá, não para a cidade física ou a representada em imagens, mas para a conexão entre os mundos, a viagem para dentro de si mesmo, o insight sobre a insatisfação do presente, o acerto do convívio entre os talentos como forma de barrar a barbárie. Um filme e tanto. WA sempre acerta. O protagonista é uma Cinderela pelo avesso: sua ilusão começa depois, e não antes, das doze badaladas. É a senha para palmilhar a Paris imaginada, ou seja, a cidade mítica como linguagem percebida pelo filtro não do presente, mas da necessidade gerada pelo talento.
Paris é cinema e todo filme é sobre cinema. Temos ali a paisagem de Stanley Donen de Charada (1963) e de Cinderela em Paris (Funny Face, de 1957). Na sucessão de marioskas, as bonecas russas que existem dentro uma da outra, e que são as fases de ouro do imaginário literário e cinematográfico, Allen escolhe a última boneca, a menor e que está no miolo do drama, não nos anos 20 e sim nessa virada dos 50 e 60 de Donen. Allen já filma Paris anteriormente revisitada, ou seja, não é ele que começa a resgatar essa viagem, apenas faz uma referência a essa busca incessante do mito desfocado do presente.
Por ser cinema e por ser Allen um artista anti-pedantismo, identificado totalmente com seu personagem dividido entre a arte e a indústria, Midnight in Paris trabalha com os clichês, mas de maneira encantadora. Seu casal Zelda e Fitzgerald e os conflitos com Hemingway são puro irmãos Marx, mas há algo de poderoso no seu Ernst (interpretado por Corey Stoll), com falas decisivas sobre a competição entre escritores e a necessidade de um tertius (no caso, Gertrude Stein) para lançar alguma luz para a literatura que estava sendo produzida na época e que os autores não poderiam avaliar por estarem envolvidos nesse boxe entre talentos.
Ou seja, dentro da sequência de cenas que nos mostram os lugares comuns sobre os personagens famosos da época, que incluem Picasso, Dali, Buñuel e toda a fauna, abre-se a brecha para o que interessa: a auto-análise do escritor em crise (interpretado por Owen Wilson), que entende a precariedade da sua busca e se conforma com o duplo movimento em relação ao seu desejo: quando ele mergulha na Paris que amava acaba descobrindo que precisava ficar longe dela para se encontrar. No fundo, não é Paris que interessa, não é essa a personagem principal, e sim a decisão do sujeito que escreve, o protagonista da linguagem, já que tudo é linguagem.
Qual a diferença entre os americanos da família da noiva e os americanos escritores dos anos vinte que se refugiam em Paris, além da cultura e do talento? É a qualidade do agrupamento. Enquanto os laços de sangue colocam no mesmo convívio o status, o vazio e a ignorância (reforçadas pelo amigo pedante), no grupo de Gertrude Stein existe vanguarda, coragem no ver e dizer, afinidades e conflitos. Nessa Paris mítica, vive-se a arte e a cultura como forma de interromper o fluxo da destruição do espírito, por mais doloroso que seja. Dá frutos maravilhosos, como podemos ver nas obras e entre elas se inclui, naturalmente, este maravilhoso filme.
Woody Allen: não tem perigo de errar. É por isso que me mudei para lá.Sou um dos caras sentados no café. Estou escrevendo um livro.