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30 de dezembro de 2023

 TEXTO LIMPO, INFORMAÇÃO PRECISA


Jornalismo é entregar o ouro na primeira frase. A informação mais preciosa, a sacada mais importante, a revelação mais contundente.


Fazer suspense, fingir mistério, anunciar para mais adiante, jogar para o próximo bloco: isso não é jornalismo, é dramaturgia barata.


O texto precisa ser limpo, com informação precisa, e não seco, burocrático, duro, repetitivo. A leitura deve escorrer, mas não como incontinência verbal.


O texto precisa ser reescrito até se tornar claro em relação ao que o jornalista conseguiu apurar e esclarecer. Não se passa enigma ao leitor.


Aconselhamento jornalistico cai na tentação de fazer média com novas gerações malhando veteranos. Diga a que veio e pronto. Dá trabalho.


Dois neurônios seriam suficientes para costurar textos das hard news se eles interagissem. Mas Tico e Teco agem por conta própria em direções opostas.


O que há é empilhamento de frases que repetem a informação já dada no título. Fica uma gosma.


Precisa ter mestre dentro da redação. A linhagem rompeu-se com a soberba dos paraquedistas que pousaram no jornalismo.


Nei Duclós

28 de dezembro de 2023

IMPULSO

Nei Duclós 


Poesia é o refúgio da palavra

Seu reduto antes da batalha

Do impulso que apaga o susto


Nessa gruta se crucifica

Implodindo em si mesma

Quando então se ressuscita


Poesia é quando a alma humana se cansa

E do próprio olhar se sustenta

Como águia no alto da montanha


De lá vislumbra o desespero em carne viva

Do teu passo torto na planície 

Que procura a superfície onde Deus respira


Nei Duclós

FICAR

 Nei Duclós 


Fico por ter dito coisas

Com valor ou não

Lembradas ou esquecidas

Mas terei um lugar 

Depois do dilúvio 

Que será de mar ou fogo 

Mas que virá 


Fico mesmo assim

Pois faço parte do vento e do pó das estrelas

Porque me dedico à criação 

Desde o princípio

E não será o fim que decidirá o destino


Fico porque essa é a missão 

De quem insiste

Em repartir o pão com toda gente


Fico porque ninguém e nada existe em vão 


Nei Duclós

23 de dezembro de 2023

JOGOS

 Nei Duclós 


Marcamos o tempo com a mutação do corpo 

Sabemos de que século somos 

Quantas estações navegam em nosso rosto

E a migração dos ventos batidos em antigas roupas


Tudo se cansa  com o avanço dos anos

Novas gerações são a cura para a idade doente da terra


Carregamos a herança que um dia recebemos

E passamos adiante

Como fazíamos na infância

Nos baldios jogos que nos treinavam para a vida


Nei Duclós

20 de dezembro de 2023

GERAÇÃO

 Nei Duclós 


Idosos ficamos todos com a mesma cara

O cabelo ralo a pele lavada

O corpo redondo

As pernas finas

Olhos mortiços granulados

Ombros caídos gestos escuros


Disfarçamos tudo com a mesma indumentária 

Bermuda e chinelo, camiseta regata

Óculos de praia pose de veterano


Lá vai o velho dizem os moços

Que perdem as garotas por serem brutos

Somos a última geração humana


Nei Duclós

18 de dezembro de 2023

AMANHECE

 Nei Duclós 


Amanhece o meu amor com seus olhos dormidos

Tanto tempo longe e agora está comigo

Serena dorme firme nos lençóis de linho 

Ocupa a nossa cama outrora tão vazia 


Amanhece o meu amor, já não corro mais perigo

De viver só de ilusão refém da poesia

Ela é real como tarde de domingo

Em que íamos ao cinema na sessão das cinco

Para ver as palhaçadas dos pares românticos 

Bobos como nós, de profundo visgo 


Amanhece o meu amor que reencontrei por descuido

Numa foto perdida no oceano das mídias

Logo vi que eras tu, beldade do abismo  

Que um dia foi embora com frieza de granizo


Choveram muitos anos até o apocalipse

E quando todos os sinais eram excessivos

Surgiste de repente sem nenhum aviso


Amanhece o meu amor, acorda já é dia

Diga que o sonho enfim se realiza

Aí posso sorrir o que jamais tinha esquecido


Nei Duclós

14 de dezembro de 2023

FORA DO CÂNONE

 Nei Duclós 


Descobrimos, tardios, que todos os ídolos

eram falsos e a História era outra

e que desperdiçamos fé e vidas em ideias

que não vingaram. E que ninguém tinha razão

pois em cada evento havia apenas osso,

pele e sobrevivência, e a sesta intercalada

pelos latidos das tardes sem sentido


E o mais trágico é que não soubemos

o que fazer com essa súbita revelação

e decidimos escolher o de sempre, a ilusão

de nos enxergar como criaturas lúcidas

quando nunca passamos de seres unicelulares

estimulados por luzes elétricas

em telas assistidas por monstros


Esquecemos que poderíamos virar o jogo

amarrando os sapatos das nuvens

beijando o vento, pintando flor de modo preciso

como fazem os técnicos quando erguem pontes

Poderíamos apenas amar nossos ofícios

e não debater jamais com ogros, e se definir

por rodas de verbos em sintonia, como no cosmo


Descobriríamos a chance de ignorar as armadilhas

e dar crédito a quem foi escolhido gênio

mas jamais é reconhecido, aquele professor maldito

o peão que sabia mecânica quântica sem decorar

as fórmulas, ou mesmo um menino, escritor

de versos em asas de borboletas e que usava o pólen

para inaugurar a perspectiva fora do cânone


Nei Duclós

10 de dezembro de 2023

IMPACTO

 Nei Duclós 


Amor não tem conversa

Não discute relação 

Amor é tiro e queda


Projeto de trem bala  

Trilha na cordilheira

Lavagem de vulcão 


Você diz corta essa

Quando falo do futuro

Amor nunca se importa


Impacto de gigante

Lixo da solidão 

É namorador de rua


Amor fica por fora

Vive só por um instante

Depois passa pelo espaço 


Nei Duclós

4 de dezembro de 2023

CAVALEIRO

 Nei Duclós 


Só ao amor presto juramento

Por ser sagrado e precisa tempo

Não que eu vá assinar um documento 

Basta o dever de segurança 

a quem ponho debaixo do braço 


Ando miudinho com passo arisco

Atento à princesa, quase rainha

Não sou príncipe, não tenho berço 

E ser consorte não me reserva o trono

Melhor assim, vivo de brisa

Qualquer poesia é o meu sustento


Por isso ela me quer, entre tantos

Porque não faço questão de promessas

Basta o amor, a quem dou o exemplo

Primeiro entre os pares, sou firme veterano

Cavaleiro de letras e romance

Dono de si, mas servo de quem amo


Nei Duclós

DESCOBERTA

Nei Duclós 


Segunda feira de febre na cidade vazia

Tarde de domingo sem ninguém por perto

A não ser tua presença no mesmo quarto


Cama de suor, corpo em desalinho

Memória de um tempo de calor extremo

Sou o verão que passa tremendo

de olho o tempo todo

em teus íntimos recatos


Maiô inocente, convite à vontade

Saída do banho, toalha molhada

Metro e meio de pernas no moço covarde 


Poço de mel na descoberta

Depois da tesão a cara mais séria 

Uma aula de tango apertando a cintura

Do que é feita a mulher, delicia e tortura?


Nei Duclós

1 de dezembro de 2023

MAJESTADE

 Nei Duclós 


Quando te conheci

Fui habitado por um anjo

Não cometi mais meus erros comuns

E minhas palavras abraçaram a virtude 


Rias de mim

E isso te conquistou 

Princesa de um reino inexistente

Já que o poder fugiu da tua família 

És herdeira de um trono de sonho

E eu o consorte temporão 


A corte está em pânico, mas sem motivos

Não há mais nada a roubar a não ser o prestígio

E esse defenderei sem usar uniforme

Apenas sendo teu, majestade 


Nei Duclós

ESTRELA

 Nei Duclós 


Há tempos não via uma estrela

Estrela é um

sinal depois das tormentas

Dessas que duram semanas e esquecemos

Do teu brilho firme que existe

Desde antes da invenção do fogo 


São poucas estrelas

porque ainda há nuvens

E pontificam em pontos extremos

Lá no poente, onde o céu se curva

para tocar a terra

Ou a pino

seguindo a rota dos aviões de carreira


Muito prazer, digo meio tonto

Sou aquele de cabeça baixa

Envolvido em pesadelos


Olho para cima e te vejo

Estás distante, mas nunca indiferente

Iluminas nosso corpo 

te devemos um presente 


Toma, um poema

Ora, direis

Essa arte eu conheço 


Nei Duclós

27 de novembro de 2023

AURORA

 Nei Duclós 


Fiz por amor e isso me basta

Mesmo que digam tudo ao contrário 

E eu vire mendigo nas ruas da praia

E seja esquecido no ardor literário 


Fiz porque quis, teimoso ordinário 

Contra o destino seguro dos pares

Cruzei o mar em canoa furada

Beijei a lona ao cair do trapézio 


Fiz para ver o que havia de sério 

Fingindo sorrir na brutal plateia

Sou aprendiz de velhas escolas

Estudei latim nas cadeiras de lata


Agora estou pronto para entrar no baile

Onde me esperas ansiosa e tão bela

Contando nos dedos os dias que faltam

Para eu inventar o momento da aurora 


Nei Duclós

SOMOS O TEMPO

 Nei Duclós 


O tempo somos nós, precários datados

Por um tempo acreditamos na eternidade

Até que o tempo girou a aldrava

E fomos confinados no tempo sem volta 


O tempo são os outros, presenças de glória

Arroubos de portentos, geniais boquirrotos

Nada os derruba em sua fome maleva

Nem mesmo o vento que sopra do polo


O tempo é a infância moleque de feira

Que cresce e vira gente, tirano de aldeia


Agora estou sem tempo para tanta história 

Dizem que me repito mas é moeda de troca

Falo o que o tempo me dá em memória 


Sou do tempo que existia o

jogo de bola

No terreno baldio das calçadas pobres


Nei Duclós 


CÉU DA TERRA

 Nei Duclós 


Ganhamos a vida para perdê-la 

Lutamos por ela até o osso

Nos afogamos com água no pescoço 

Não desistimos de viver por nada

Achamos ser eterno plantar no sal grosso

Falamos de amor então ficamos velhos

Surra de relho, bruto ferimento


Só tu, que veio da terra que o céu promete

Faz valer a pena esse fuzilamento 


No último amanhecer é que sabemos

Diante dos algozes o quanto somos firmes

No tempo que nos coube em guerras de extermínio


Nei Duclós

26 de novembro de 2023

TROVA

 Nei Duclós 


Guarde segredo

Num lugar seguro

O frágil  brinquedo

Desse amor tão  puro


A trova é uma forma

De fazer poesia

Que o povo aprova

Para que todos entendam


Disfarce perfeito

Para quando o perigo

Ronda as palavras

Com a lei da censura 


Parece inocente

A crítica dura

O verso chocante 

Fazendo firula


Fica divertido

Dizer no ouvido

Aquilo que grita

E que foi proibido


Nei Duclós

23 de novembro de 2023

GIGANTE

 Nei Duclós 


De repente comecei a crescer 

Não falo do menino que vira adulto 

Mas do idoso que dobra de tamanho 

E precisa mudar de casa

Sair do subúrbio para se esconder no ermo   


Assim mesmo me cercaram

Criaram o turismo do gigante 

Jogavam-me frutas que não me satisfaziam

Precisava de proteína para segurar a barra


E assim vivi, atração num zoo de meliantes

Até que me reduzi ao velho metro e oitenta


Ninguém entendeu nem explica

Esse fenômeno besta

Acho que foi excesso de poema


Nei Duclós

PODER DAS PALAVRAS

 Nei Duclós 


Jamais ponha palavras na boca das palavras

Elas se seguram por si próprias 

São o que dizem e não arriscam

Armadilhas do sexto sentido 


Não se dedicam a transes mediúnicos

A valsas nas entrelinhas

Falam sem inúteis conflitos

Sem falsas intenções ou mera filosofia


Palavras não prestam contas

A fóruns privilegiados

Nem se sujam pela popularidade


Também não fazem parte

De ágapes exclusivos

Não apostam nas finanças 

Ou perdem tempo com a idade 


As palavras são palavras

São feras ao relento

Mordem a lua e te prendem

Com seu poder de sementes


Nei Duclós

20 de novembro de 2023

VIAJANTE

 Nei Duclós 


Basta a minha palavra

Para evitar teus cuidados 

Tuas sinceras dúvidas

em estado de dicionário 


Meus sumiço por um tempo

Te deixa cheia de dedos

Traição, dizes, ou então 

Trabalhas na espionagem 


É o excesso de cinema

Que gera a imaginação 

Não participo da guerra

Nem faço filmes de ação


Sou um caixeiro viajante

Pelos confins do sertão

Vendo roupa de senhoras 

Sob a mira de facão


São maridos desconfiados

Como se eu fosse ladrão 

Não tenho culpa se atraio

Com as rendas da ilusão 


Peço que me compreendas

Trabalho em pleno calor 

Por ti eu guardo dinheiro

Para casar por amor.


Nei Duclós

18 de novembro de 2023

UTOPIA

 Nei Duclós 


De tudo me afastei, filho da tempestade

Obedeci a lei de quem criou o mundo

Varreu-me o vento fora da cidade

Em frente ao mar soltei minhas amarras


Não fui eu quem compôs as profecias

Nem guardei os textos em antigos jarros

Nas grutas do deserto por pastores de cabras 


Mas soube desde sempre ser predestinado

A esquecer o mundo perdido na utopia

Para repor a palavra da grave humanidade 

A mesma que acordou antes que fosse tarde


Sou o sujeito sem História 

Meu alimento é o grão e a pura água 

Escute se quiser, ainda há margem

Traga um coração, que está fazendo falta


Nei Duclós

16 de novembro de 2023

A HORA

 Nei Duclós 


Quando não sentir mais conforto em me deitar

E nenhuma fantasia me satisfizer 

E perder o sentido ao acordar 

Sem ter motivos no entardecer

E os dias repetidos em rotinas de dor


Saberei que chegou a hora, meu amor


Vou fazer as malas para te buscar 


Fique onde está,

Que eu chegarei,

gloriosa flor


Nei Duclós

12 de novembro de 2023

DESPERTAR

 Nei Duclós 


A Criação não é medida em dias da semana

Mas em rodízio de infinitos

De um tempo randômico desumano

Entre pedras, água, areia, luz, vento e bichos.


Manhã clara e cristalina

Convite ao convívio

Céu limpo, mudos ruídos

E a lua de dia transparente

Pingente, que assina

Um novo armistício


Novembro começa para valer 

Alma de menino


Nei Duclós

VERDADE

 Nei Duclós 


Contarão esta história mil vezes

Mas não da minha maneira

Que é a verdade à vontade verdadeira

Sagrada e secreta

Para ser lida agora, no futuro

 

Pode parecer mais uma mentira

Uma versão sem vez na arena

Mas é o que eu sei

Do final dos tempos


Ora, direis 

Ouvir profetas


Nei Duclós

PROMESSA

 Nei Duclós 


Nada pode o poema contra a bomba

O verso não impede a ação do fogo

Soneto não resgata a esperança 


Talento não cicatriza os pontos

A inspiração foi posta fora de alcance

Literatura não serve de consolo

Profecias são tragadas pelo incêndio 


Abaixo do chão, roemos as raízes

De uma danação de loucos testamentos 

Não faz falta a canção amiga

Só existe o show da indiferença 


Os anjos que sopravam poesia

No ouvido de quem acreditava

No poder da palavra ainda viva

Estão hoje todos ocupados  

Em salvar o que sobra do destino


Tudo queima, as cidades, a mata e o Atlântico 

O mar sofre a crise de confiança 

A justiça foi chutada para o lixo


Não me peça estrofes sorridentes

Nem me cobre por não fazer denúncia 

Sou da massa de sobreviventes

Guardo na memória um novo tempo


Promessa que não se realiza

Mas espera no ventre o que se cumpre


Nei Duclós

8 de novembro de 2023

BRINQUEDO

 Nei Duclós 


A palavra é meu brinquedo

Chocalho ainda no berço 

Trem andando no tapete

Futebol entre paredes


A palavra é meu coelho 

Cartola em circo mambembe

Gibi trocado em cinema

Revólver que mete medo


A palavra fica à margem

No caderno de poemas

Posso inventar as paisagens

Falsa história de mim mesmo


A palavra impressiona

Parece real e ter peso

Mas basta um gesto mais tenso

Para sumir para sempre


Fica um verso, um soneto

No ar como pluma ao vento

Para gerar nova gênese 

Feita por Deus, que é poeta


Nei Duclós

27 de outubro de 2023

DIZER

 Nei Duclós 


Digo por dizer

Porque a palavra é leve como a luz

E sai de nós como quem entra pela primeira vez


Digo sem pesar

Porque a palavra não cobra em dor

O que nos dá de coração


Digo para viver 

Pois é como respirar

Quando a palavra é ritmo e canção 


Digo por te amar 

Adorável princesa que virou mulher

E hoje reina em minha solidão 


Nei Duclós

21 de outubro de 2023

A VOCAÇÃO DO VERBO

 Nei Duclós 


Poeta era xingamento

Rima pobre no deboche

Olha, ele escreve versinhos

Diziam em cambalhotas


No dramalhão dos romances

Cravavam sua identidade 

Vida com morte precoce 

Ronda em rua dolorosa 


Longe do perfil épico 

Que fez a fama dos clássicos 

Poeta foi reduzido

A um fazedor de acrósticos 


Ficou pior, hoje na guerra

Amarga o anonimato 

Sem vocação de soldado 

Colecionador de perdas


Mundo feito de vitórias 

Não adota a antiga arte 

Ocuparam as palavras 

Com outro tipo de sorte


Doure a pílula, lhe dizem 

Batatinha quando nasce 

Sofre o mais profundo corte 


Mas me visto com as latas

E as trouxas de viagem

Aceito quando me trazem 

Os trastes de sua garagem


Mendigo num tempo bruto

Assisto com minha coragem

A derrocada de tudo

Derrubo a dor que me estraga


Sou o cantor de uma nova eternidade 


Nei Duclós

19 de outubro de 2023

NA RESERVA

 Nei Duclós 


Minha meta é ficar sozinho 

Morar com tua ausência, recusar companhia

Viver fora do tempo, fugir da fantasia


Já fui bom nisso

O de criar projetos, marcar presença 

Mas de tudo restou tua partida

Querias o mundo e o mundo eu não tinha


Agora desisti de fazer média 

Brigar por um lugar na arena lotada

Exerço o ascetismo, Marujo na reserva

Conservo teu retrato de rosto vermelho 


Ainda faço poemas, estão por toda parte

Minha arte é a palavra, que vence quando perde


Nei Duclós 



18 de outubro de 2023

SOBREMESA

 Nei Duclós 


Não é assim que o amor se manifesta 

Só a balada, o encontro, e onde fica a surpresa?

O tremor diante da criatura

O pavor de faltar o chão e ficar mudo

A sobremesa de repente repartida 

Quando todos foram embora?


Nei Duclós

10 de outubro de 2023

RADICAL

 Nei Duclós 


Ao adotar um poema você toma partido 

A favor da arte e contra seus inimigos

Não adianta as ideias ficarem ofendidas

Te chamarem de alienado ou inocente útil


Esquecem que há algo mais radical do que a política 

Chamam de morte onde tudo faz sentido

Você diante dela é apenas um gemido 

E não um palanque no mundo dividido 


Ao adotar um poema você fica comigo 

Palavras decisivas como balas perdidas

Alimento da paz, onde permaneço vivo


Nei Duclós

UM VERSO

 Nei Duclós 


Minha esperança é que você guarde algum verso meu

E viaje com ele quando todo mundo me esqueceu

Sobrevivente num tempo em que a poesia se perdeu

Talismã da sorte na paisagem mais hostil

Injustiça com a memória assassinada num desvio

Punhais de um futuro feito de terror

Rasgo no território sem nenhuma flor


Um verso apenas. Nem precisa ser inteiro

O poema que já subiu ao céu 

Basta o amor em teu exausto coração


Nei Duclós 

5 de outubro de 2023

TREMORES

Nei Duclós 


O amor são as tempestades

Mudanças bruscas no clima

Inundações, tornados 

Sufoco e roupa molhada

Sapatos cruzam o charco

A pele entregue aos termômetros 

O corpo todo enredado

E um beijo no meio das nuvens

Com tremores no teu quarto

O amor trai as estações

Inventa um novo calendário


Nei Duclós

2 de outubro de 2023

FRIO NA PRAIA

 Nei Duclós 


A beira do mar envelhece mais cedo o trabalhador da pesca 

Porque vento e areia e o peixe colhido com esforço

machucam as mãos e o rosto

E o corpo se quebra em escamas 


A praia de vidro fustiga a pele 

O tempo padrasto carrega os ombros

O pescador não entende os banhistas

Que procuram qualidade de vida 

torrando ao sol besuntados de oleo


Deixa estar que chega o inverno 

E eles somem


Nei Duclós

26 de setembro de 2023

O FRUTO PROIBIDO

Nei Duclós 


Sombras transitam pelo piso

Sem a presença normal de um corpo fisico

São sinais enviados por espiritos

De mundos onde vive um dos meus filhos


Se é que existe como dizem os escritos

Esse lugar de provação e sacrificio

Que a morte coleciona à revelia 

É certo que nos cerca onde existimos

Na véspera de partir, nosso destino


Faço orações entre meus pedidos

Para que haja paz lá onde habitam

As almas libertas de suas cruzes

Mas ainda ao redor da vida antiga 


Varro o chão coberto dessas pistas 

Espalho as cinzas que aqui se depositam

Sentimentos e memórias esquecidas 

Mas em vão, elas voltam noite e dia


Não há como escapar desse mistério 

Nem vamos decifrar o ocorrido 

Na árvore da ciência o fruto proibido

Não temos acesso nem razão e nem motivo


Nei Duclós

PALCO

 Nei Duclós 


Com cada amor fui um personagem

Estudante, migrante, desocupado

Mas em nenhum fui eu de fato

Porque fugi para um lugar seguro: minha identidade 

A que guardo a sete chaves

Que joguei no mar mais fundo


Foi assim que escapei do compromisso

Não me formei a tempo na mocidade

Permaneci onde devia ter partido

Trabalhei com fama de vagabundo


Foi o coração que gerou esse rodízio

Cinzelei o rosto no detalhe das conquistas

Sem levantar suspeitas adaptei-me

Conforme a paixão ditava as cartas


Desapeguei na hora certa

Não amo mais, desci do palco

Tirei a fantasia de palhaço  


Nei Duclós

24 de setembro de 2023

ARGONAUTAS

 Nei Duclós 


Distâncias estelares foram feitas de propósito

Para que habitantes de corpos celestes não se invadam

E permaneçam em suas órbitas conhecidas e próximas.


Para cruzar trilhões de espaços no cosmo

Seria preciso muitas vidas

Mesmo que existam rotas paralelas, cordas virtuais ou túneis quânticos 


Mas uma geração topou o desafio

E planejou a viagem impossível e infinita para  chegar aos remotos mundos habitáveis


Nenhum tripulante da origem aportou em qualquer destino planejado

Só na milésima descendência conseguiram descer em segurança


Descobriram então que estavam exatamente no mesmo ponto de partida


Nei Duclós

DISCURSO

 Nei Duclós 


De que adianta ter lido se não lembro mais?

Passei a vida perdido no que ficou para trás 

Livros, artigos, assuntos gerais

Fiquei de castigo entre estantes lotadas

Páginas inúteis prontas para o lixo


Foi tudo um exercício da mente vazia

Que se ocupa à toa com os prazeres da escrita

Nada ficará no rastro do ofício

Caronte desembarca chegamos ao destino 

O tempo não fala , bizarro paraninfo

Esqueceu o discurso nas dobras de uma nuvem


Nei Duclós

MOTORES

 Nei Duclós 


Clássicos foram escritos quando o mundo era moço

Fábulas humanas em presença de monstros

Deuses que dividiam mulheres

Portos de ciclopes


Hoje, milhares de anos depois, somos velhos habitantes

De uma Terra exausta de histórias 


Por isso nos dedicamos a reler os pergaminhos

Em busca do clima recém saído do Paraíso


Nem se compara nossa literatura

Urbana vetusta bruta

Com as viagens em mares ignotos

Ilhas de misteriosos povos


Sabemos lidar com motores 

Que engasgam na primeira curva


Nei Duclós

18 de setembro de 2023

FOT0S ANTIGAS

 Nei Duclós 


Ninguém sorri nas fotos antigas 

As imagens reais, que ninguém manipula

Não havia motivos

Vida dura demais

Sem nada para distrair 


Por isso parece que estão nos advertindo

Que aqui não é um passeio

E coisas graves estão por acontecer


São pessoas cobertas de fuligem 

Nas indústrias nascentes

Ou de terra nos campos de colheita

São famílias de população imensa

Homens taciturnos, mulheres imóveis, crianças tristes


Ou talvez sejam posturas e rostos de assombro

Diante da Fotografia

Arte misteriosa

Que os deixariam congelados

Em suas biografias 


Falo de fotos realmente antigas

Fotos sem moldura, como casas destruidas pela guerra


Nei Duclós

17 de setembro de 2023

LAVOURA

 Nei Duclós 


Acordamos cedo na roça do poema

Sitiantes da palavra à margem do latifúndio 

Lavradores de grãos de ancestral linhagem

Colhedores dos frutos de pequena monta

Morangos e amoras de ductil manejo


Suamos antes do sol e sua faina

Sob o testemunho de friorentas estrelas

O horizonte muge de excessivas tetas

O resto do mundo dorme desprezando

esporos

Enquanto continuamos no chão bruto deste ofício


Os anjos entendem 

E providenciam nosso lanche


Nei Duclós

CONFESSO

 Nei Duclós 


Eu não tenho conteúdo 

Sou apenas continente

Não tenho nada por dentro

Nem por fora, só em frente

Meus contornos são o mar

E rios de água corrente


Não me venham com política 

Esse comércio de gente

Nem com a fé que já não tenho

Essas almas sem sossego

Não me enquadrem em suas leis 

E seus planos de carreira 

Nem digam que sou autêntico 

De conflito permanente

Nem que sou flor que se cheire

Fiel homem confidente 


Em tudo sou desconfiança 

Não permito que me atentem

Com projetos ou dinheiro 

Consultor de empreendimento

Sou um tigre em mato adentro

Rosno na sala, imprudente

Invado o quintal e de quebra

Mordo o joelho dos gigantes


Nei Duclós

DESCOBERTA

 Nei Duclós 


O Brasil não existia

Era uma praia distante

Antes de ser consagrada

À Cruz diante da indiada

Vieram leis dos capitães

E navios presos na barra

O comércio junto às armas

Os padres e a mulherada

Com os bandidos de arrasto

Antes mesmo das Histórias

E as mentiras datadas

Antes do samba e a piada

E dos batuques escravos

Palácios de pau a pique

Plantações de cana brava 


O mundo recém criado

Por deuses presos nas fraldas

Não era o Brasil por certo

Que Caminha registrava

Ou Cabral com sua pressa

De sair da terra errada

Nem sequer havia a ideia 

De bandeiras desfraldadas

Em lutas da

Independência 

País com seus dois Reinados

O ideal republicano

Parlamento versus farda


Era uma ilha perdida

Pela cegueira dos mapas

Gritos de terra à vista

Monte acima das águas

Que permaneceu oculta

Pelo destino traçado 


Hoje ninguém mais enxerga

Seu real significado

Será uma nação bizarra?

Indío vestindo casaca?

Ou será só o meu sonho

Acordando de repente

Com o barulho de balas?


Nei Duclós

15 de setembro de 2023

CIRCO

 Nei Duclós 


Nenhum namoro te tira do conforto

Não abres mão das rotinas do corpo

Academias encontros eventos

Almoço executivo faustos jantares

Happy hour no belo apartamento


Seria muito desplante meu te convidar para um drink

Em barzinho da moda e depois uns amassos

É pequena a visão do meu horizonte 

Mas basta me chamar e eu saio correndo

Interrompo a reunião, bato a mão na mesa


Depois me dizem que eu dei espetáculo

Fomentado por ela, palhaça de circo

Sou o playground de sua indiferença 


Não fosse o amor que sinto de misteriosa fonte

Eu já teria parado de pensar em ti

Por cinco minutos


Nei Duclós

13 de setembro de 2023

ESGRIMA

 Nei Duclós 


Você esqueceu que estávamos quites

Cada um para um lado foi o que me disse

Mas deste uma volta rasgando o escrito 

Ao contrário de mim o amor não desiste


E agora o que faço com esse abuso explícito 

Já não tenho o que tive no tempo contigo

Desprovido de sonho só restou o castigo

Que é esquecer de viver e ainda ser vivo


Desperta o desejo esse lance de esgrima 

Em que finjo fugir do meu compromisso

De acatar o destino que é a dor do carinho

A dança que o mundo impede e permite


Para a flor que jogamos longe na onda

Guardo a lembrança de um doce convívio 

Mas tem a cicatriz impondo seu ritmo

Enquanto tentamos resgatar o perdido


Nei Duclós

VESTÍGIOS

 Nei Duclós 


Descubro versos ocultos

Na barra do teu vestido

Vestígios de inúmeros poemas 

Que te dedico da noite até o dia


Se fizessem parte do que eu finalizo

Mudariam o rumo da minha poesia


Não que sejam  lampejos de epifania

Mas por pertencerem a espécies extintas 

E ganham um ar de algo nunca dito

Só encontrado em oração ou profecia

Em rolos de papiro nos jarros das grutas 


São os versos que não  chegam ao teu ouvido

Por descuido ou talvez excesso de amor distraído 


Nei Duclós

12 de setembro de 2023

SEM FACÇÃO

 Nei Duclós 


Do Mal quero distância e do Bem sou complicado 

Não sou de nenhum lado e do Centro sem amigos

Não procuro uma bandeira, o ideal foi para o espaço 

Lutar por liberdade igualmente eu não faço

Nem assino manifesto para justificar o voto 


Não procuro o que não acho

Não sou omisso nem falso 


Sou o que não é 

Vivo sem paixão 

Não conte comigo

Faça inverno ou verão


Nei Duclós

TENTAÇÃO

 Nei Duclós 


Fico muito estranho quando me aproximo

É um arrancar de peças de seda e de linho 

O algodão manchado na altura do vinho

A respiração molhada enquanto capricho 

Tentação colhida em situação limite 


Não importa quem somos no amasso dos gritos

Se um dia perdemos o que nos complica

Esse vínculo, raiz por termos nascido


O que vale é teu corpo vibrando comigo

No encontro fortuito em lugar do castigo

De sermos distantes, amantes em círculo 


O passo tremido ao tropeçar no abismo

E cair para sempre no fundo infinito


Nei Duclós

8 de setembro de 2023

SOCORRO

 Nei Duclós 


Não há lugar seguro sobre a Terra

Há apenas dilúvio, incêndio, cataclisma

O rio inunda a rua

Um dragão invade a sala

A montanha despenca no abismo


Telhados não servem de refúgio 

Todos os navios se desviam

De nenhum porto te acenam

Corpos descem o morro


Um monstro despertou o vento

O tempo te jogou fora

Não tente fugir para Marte

Não peça mais socorro 

Você agora faz parte

da equipe de salvamento 


Não se preocupe, me disseram

Espere Deus voltar de viagem 


Nei Duclós

6 de setembro de 2023

 CONFLITOS 


Discordo, mas ninguém precisa saber

Poupo a amizade do amargo dizer 

Tudo é superado pelo bem querer


O mar é suficiente com sua carga de conflitos

Ondas gigantescas

Seres de outros ritmos

Discos voadores que pousam no luar

Por que forçar a barra em brigas de bar?


Conte aquela história da ilha deserta

Bravos em naufrágio, sereias que te levam

Acordas de ressaca mas cheio de garra

Lá vem os camaradas gritando à vista, terra!


Nei Duclós

4 de setembro de 2023

TÚNICA

 Nei Duclós 


Os pássaros piam pontos luminosos na  costura da manhã 

Túnica úmida que veste o final  da estação 


Desperta, primavera

meu antigo coração 

Irmão do sol, gigante, que bebe a última gota de orvalho

que a noite produziu na escuridão 


Nei Duclós

1 de setembro de 2023

DESPERDÍCIO

 Nei Duclós 


Saiste das redes sociais e eu nem tinha notado

Não foi por falta de sinais mas por força do hábito

Que me trava quando costumam me avisar


Vi o caminhão de mudança, tuas queixas 

Mas não liguei o recado aos fatos


Não é indiferença 

Simplesmente estou lotado

Me ocupo demais em ser tão solitário

Não vejo solução e o trem passa

Te levando para longe, flor que o amor não colhe


Nei Duclós

28 de agosto de 2023

ESQUECER

 Nei Duclós 


Esquecer é meu jeito de perdoar

Há apenas um culpado neste bar

Eu mesmo, imagem no espelho virtual

Muro do tempo irreal


Cicatrizes apontam o lugar  dos deslizes 

Decido fazer um pedido 

Ainda estou vivo, penso sem motivo

Aqui não vendem suco natural


É hora de fechar, lembro-me agora

Lá fora a ameaça de um ciclone

Um talismã, ainda coberto de pó 

Amor submerso que fica desperto dói 


Esquecer é meu jeito de sofrer


Nei Duclós

27 de agosto de 2023

A REVELAÇÃO

 Nei Duclós 


Eram muitos deuses porque o trabalho árduo

de vestir a terra de canais e monumentos

Mais os altares e as montanhas imitando templos

Com suas torres e terraços amplos

Precisava de mãos e da vontade dos gigantes


Eles então criaram a obra

Que hoje é só vestígio de ancestral espanto

Deixaram as pedras com formas ignotas

E rostos enormes de olho no horizonte


Tudo o que hoje pisamos é sagrado

Deuses provisórios se esforçaram

Para merecer a grandeza da primeira santa

E anunciar pela voz do arcanjo

a vinda de um Deus, síntese e convênio

Nascido de uma estrela de oriental comboio


A revelação é nossa epifania

Herdamos o eco de um Amor sem fundo

Não dá pé esse mar de corais extremos


Diante da criação somos todos mudos

a oração contrita expressa num mergulho

Deus está vendo e vive no comando

Aguarda o tom humano que resta neste mundo


Nei Duclós

VONTADE

 Nei Duclós 


Me acostumei a ficar do meu lado

Jamais avançar, mesmo com espaço 

Permanecer no que foi combinado

Nossa ruptura não desfez esse trato


No meio da noite acordo com vontade

O hábito me leva para estender o braço 

Mas o corpo se lembra e torna-se imóvel 


Talvez ainda estejamos grudados

Nenhuma distância nos mantém separados

O amor costura o que a razão esgarça

O sonho reforça o que a vida espedaça


Rolo no sentido contrário 

Em vez de você é no chão que eu caio 

Custo a levantar. Espero

Mas não te moves e finjo que não quero


Nei Duclós

24 de agosto de 2023

LEMBRANÇAS

 Nei Duclós 


Por que o universo não desanda 

E perca esse perfil de rede perfeita

Com leis de gravidade e galáxias gigantes

A exibir supernovas e cometas de gelo 


Por que mantém limpo  o céu de veraneio

Com estrelas cadentes e luas de espanto

E não choca todos os astros e destrói para sempre

Esse rodízio absurdo de viagens e sonho?


Só assim poderei ficar longe

Desse amor que consome toda vez que anoitece

E me deixa sozinho como  cachorro louco

Que fareja na rua os cacos de estrelas

Que são teus carinhos mulher sem abrigo

A raspar o vestido nas minhas lembranças 


Nei Duclós

23 de agosto de 2023

DESTINO

 Nei Duclós 


Você diz eu obedeço 

Mando um pouco no começo

Mas abro mão do desfecho

Tua palavra final, como sempre


Reconheço, sou soldado

Sentei praça na fronteira

Num quartel a céu aberto

Pampa e rios da natureza


Aprendi que o compromisso 

É a liberdade sem pressa

Aos poucos vemos vantagens 

Na vida além da aparência 


Descubro os mandamentos

Nos conflitos mais extremos

Defesa é a lei suprema

Do equilíbrio permanente


Se for preciso, me lanço 

No comando e na surpresa

O destino tão cioso

Da preciosa liderança 

Que tenha a santa paciência

Há tropas que não se dobram 


Nei Duclós

20 de agosto de 2023

TEMPLO

 Nei Duclós 


Deus é bondade

Cada pessoa da Trindade

A Proteção, a Comunhão, a Palavra.


O coração é a voz que o peito cala

Aprendo a ser bom, enluarado

A oração prepara o corpo

Exercício da alma 


Riem de nós, que o Tempo prepara


Somos o Templo de uma canção na marra


Nei Duclós

SURRA

 Nei Duclós 


Levei uma surra de realidade 

Não por desconhecê-la 

Mas por não saber mais me defender 


Desmoronou minha cidadela

Junto com as forças para reconstrui-la

Pisotearam meu jardim

E descubro o quanto fui pequeno


Cair fora não se cogita

Porque é tarde e perdi meus exércitos

Resistir é reconhecer o erro

E voltar a ser o anônimo coração que abandonaste 


Nei Duclós

11 de agosto de 2023

O LUGAR DA PALAVRA

 Nei Duclós 


A palavra é o lugar onde ela se situa

Não pertence à ideia que dizem ser sua

Se for 'mundo' é nesse chão que se resume

E não o que combinamos no andar de cima


Somos executivos de sentidos

Batizamos as coisas mesmo à revelia

E queremos submissão e não rebeldia


Por isso inventaram os cavalos marinhos

Com estribos de sal e perfis de mulas

Flutuando acima das barrigas

Para invocar os cientistas com seus relinchos

Provocando arranques de falsas borbulhas


Vê? São apenas subterfúgios

A palavra é livre como alguém que cai de costas

Para inaugurar o abismo


Nei Duclós

9 de agosto de 2023

MARCAS

 Nei Duclós 


Não encostei um dedo

Mesmo perto de ti

Não abusei nem me escondi

Mas nosso olhar cometeu o crime


E nem precisei confessar amor

Era óbvio que eu te pertencia


Sentir é pior que tocar

Deixa marcas profundas

Que não desaparecem

Jamais


Tua pele é  um coração ao sol

Por isso morro na praia 

Onde não estás


Nei Duclós


PARCEIRO DA LUA

 Nei Duclós 


Faz tempo

Eu era magro e tinha todos os dentes

Mas não dava importância

Eu queria viver o que diziam no rádio

Os jogos nos estádios

As manifestações 

Os espetáculos as viagens


Achava tudo natural

A toda hora saía para a rua

Pegava um ônibus

Viajava de carona


Eu era contemporâneo das nuvens 

Morava no imaginário das grandes paisagens

Percorria o país dos crepúsculos

Parceiro da lua, amante da poesia

Andava aos andrajos e sentava no chão da sala


Eu era insuportável 

Como um pássaro migrante que voava aos bandos

Pelo mundo impenetrável daquele tempo


Nunca tive dinheiro

Nunca me faltou um poema


Nei Duclós 



6 de agosto de 2023

SESSAO DE CINEMA

 Nei Duclós 


Sou romântico de filme antigo

Em que a estrela não chama tanta atenção 

E o cara não nota no primeiro instante

Depois se mata no amor tardio


Ele fica procurando o que já encontrou

Alheio à sorte de ser escolhido

Pela beldade de blusa e vestido

Comprados em ocultas lojas do subúrbio 

De olhar perdido de anônima doçura 


No fim da história é Ano Novo

E todos cantam bêbados em coro

Enquanto o cara enfim acorda

E sai correndo para dizer te amo


O sentimento custa a entender o embrulho

Precisa de um roteiro feito no capricho 

E um desfecho em noite festiva

Que a câmara mostra em cena colorida


Estou no papel do sujeito indeciso

A pedir tua mão, a noiva mais bonita

Por ti repicam todos os sinos

E um letreiro diz fim quando é o início

De uma vida nova de dias felizes

Que o filme não mostra mas o choro é livre


Emocionada pegas do meu braço 

E um beijo estala na sessão da tarde


Nei Duclós

CONCHA

Nei Duclós 


Todo dia você vem sorver açúcar 

Que eu distribuo deste acervo de amarguras

Como clássico cavaleiro da Triste Figura

Que exerce no deserto sua má conduta 

Fazendo galanteios do amor em ruinas


Mas ficas feliz e isso conta

Recolho-me à solidão, quarto de sombras

Escrevo para amanhã ter futuro

E não viver para si na mesma concha


Nei Duclós

EL DUENDE

 Nei Duclós 


No tengo duende para poner palabras en tu corazón

No soy poeta soy plantador


No tengo duende en la piedra cultivo

 un mar de flor 

Soy tu amor


No tengo duende para cantarte coplas

De inspiración

Soy mercador 


No tengo mas do que sentimiento

Y no talento

De cantador


Mire a mi que nada soy

Pero te quiero

Sin el duende

Soy solo un hombre sincero

Contigo soy


Nei Duclós

DIÁLOGO

 Nei Duclós 


Não escutas o que eu ainda não disse

E pedes para eu repetir

Mas não encontro as palavras que busco

Contestadas ainda por nascer


Não é mais um diálogo de surdos

É uma oposição por puro prazer

O que? me dizes

Enquanto permaneço mudo


Nei Duclós

31 de julho de 2023

EL PUENTE Y LA CUEVA

 Nei Duclós 


En el puente donde trabajas

Con tus flores para bodas

Paso yo, enamorado

Lejos de tus ojos y abrazos


Voy a la cueva del monte

Alla cultivo rosales

Soy jardinero morocho

Con esperanza muy rara


Quiero casarme contigo

Para que no sea tarde

Dar-te palavras de oro

Para un futuro milagre


Es muy poco, es como aire 

Pero tengo manos dulces

En mi vida tan amarga


Diga que si , mi serrana

Que en el puente trabaja

Las rosas que yo cultivo

Son de una cueva sagrada


Nei Duclós

HORIZONTE

 Nei Duclós 


Um pouco de amor distribuo ao redor

Há quem aceite na bela manhã de sol

Água corrente que nunca para de ser

Vida contente diante do azul do céu 


Pássaros vencem a distância maior

De um outro continente

Viajam sem espanto

Pelo gosto de viajar

Pousam na minha frente

Quando o poema se faz 


És inocente ao repartir tua voz

Dizem solenes os mandarins do poder 

Singelo, me acusam sem dó 


Mal sabem que o poema simples

Da pompa é o mais distante

De estar sempre por cima 

Dando as cartas sobre a mesa 

A que decreta duros mandamentos


Vestir o sonho numa esplêndida estação 

É obra de um espadachim

Venha te mostro o que está fora de mim

Esse horizonte feito de um só  coração 

Que a Deus pertence

Mas que é nosso treinamento

Para a vida eterna deste único monento


Nei Duclós

MILAGRE

 Nei Duclós 


Mulher é o milagre

Não busquem outros exemplos

Não por atender teus desejos 

Mas pela sua têmpera 

Plena de glória efêmera 

Força da Criação extrema


Rainha de um trono trêmulo 

Suspira quando convence 

Grita ao mover a espécie 

Chora para ensinar as pedras


Fugitiva de qualquer poema

Não se enreda em elogios de festa

Reage no excesso de vento

Ama quando ninguém está vendo


Mulher, nunca se rende

Noiva de quem a surpreende

Dança conforme a lenda

Passa, no lugar de sempre


Nei Duclós

CALADO

 Nei Duclós 


Por que será que eu me manifesto?

Em vez de ficar em silêncio, como as plantas

Que produzem seus frutos e depois secam?

Fico metendo o bestunto

Onde não sou chamado


Para me evitar se trancam, ficam de lado

Ou passam voando enquanto falo para o vento


Vivo onde não me querem

E ainda perguntam quando vou embora 


Pior que não me toco

E sempre dou um jeito de marcar presença

É quando me olham com vergonha alheia se entreolhando


Se tento chegar mais perguntam: tu por aqui?


Não me refiro à solidão 

Estou sempre acompanhado

Mas à falta de razão 

De existir, sem que me notem


Se reclamo caem em cima de mim, espantados

Egoísta, autocentrado, me dizem

Com todo mundo é assim  

Somos uma população de Invisíveis 

De gente errada


Então me calo

É o meu jeito de ser solidário 


Nei Duclós

28 de julho de 2023

TEMPO DE LUA

 Nei Duclós 


Demora a amanhecer, não pela minha insônia 

Mas porque o Tempo é  caprichoso e desaparece

Estrela dos momentos, fica fazendo hora

e se faz esperar

quando mais se apressam


Anda para trás nas tardes monótonas 

Passa voando se você for bem moço 

E se instala na varanda quando ficas velho


O Tempo é uma ilusão, dizem nas modinhas 

Enquanto passam cremes e chás de multiervas

Nos rostos tardios da pele sem remédio 


Não tenho mais Tempo, dizem sem critério 

Os viciados em compromisso e  sempre na véspera


Depois não entendem porque não amanhece

O Tempo obedece, dá um tempo por vingança

Vocês que esperem, diz com a língua de fora

que hoje é  lua cheia e o que mais quero

É que ela permaneça e nunca vá embora


Nei Duclós

ESTOQUE

 Nei Duclós 


Amor não economizo 

Nem estoco para o inverno

Para algum dia festivo

Em data a ser celebrada 

Não abro espaço no armário 

Ou na estante de livros 

Como história a ser contada


Vivo o amor no presente

Que no uso não se gasta 

Não fica para semente

Ou mesmo o próximo bloco

Amor não pode ser visto

Como cédula no cofre

Que se investe a futuro

Amor já é o próprio lucro

De capital garantido

Amanhã estará frito

Como chance em desperdício 


Melhor repartir agora

Para evitar recaída

Remorso por ter fugido

Do amor que ninguém se importa

Era só amor, todos dizem

Nenhum valor nos consola 


Nei Duclós

24 de julho de 2023

O SUSTENTO

 Nei Duclós 


O amor não cria raiz no vento

No que passa e não deixa rastro

Mas na terra adubada pelo tempo

A palavra que fica e dá sustento


O amor apaga a ilusão da balada

A festa provisória e seu remorso

E gera a planta que em teimosa pedra

Se alimenta


Não fale em nome do amor como confidente

Me dizem quando espalho no poema

Esse visgo em visita à eternidade


Posso falar mesmo sem decreto

Porque sobrevivi e estou desperto

Acho água no coração deserto

Navego onde falta mar e não há velas

Só o leme desta lucidez amarga

A seguir o sonho de existir para sempre


Nei Duclós

ADMIRAÇÃO

 Nei Duclós 


Não sou teu amigo mas sinto saudade

do teu jeito sincero sem intimidade

Escorraças pretendentes sendo rude

Com tua liberdade de amarga beldade


Gosto quando me tratas à distância

Sem rosnar, pois já sabes

que não invado e tenho jeitão nobre

apesar de pobre, escriba entre milhares


Poderia arriscar, te chamar às falas

e assim queimar as escassas reservas

Mas seria em vão, indiferente fada


Prefiro a solidão a ser excluído

Admiração que é puro sacrifício


Nei Duclós

PAIXAO

 Nei Duclós 


Não julgamos tua indiferença 

Somos o teu coração, estrela

Passas longe do que te oferecemos 

É só amor, mas parece outra coisa


A inveja diz que exercemos a obsessão 

E que queremos apenas chamar a atenção 

Sem notar que nessa relação tudo perdemos


Não nos interessa a fama

Forçar um encontro, como o Beijoqueiro

Sermos reduzidos a pura imitação 


Seríamos nessa visão meros delinquentes


Essa reação é porque nos apaixonamos

Pela artista que não nos pertence

E que nos transcende neste mundo cão 


Nei Duclós

POLEIRO

 Nei Duclós 


Fotografo pássaros

Só com a palavra

Porque eles escapam


Não entregam o segredo claro do voo

Se empoleiram

Por alguns segundos

E quando ouvem um clic

Dão por encerrada a sessão


Depois cobram cachê 

Em alpiste 


Nei Duclós


ADEUS

 Nei Duclós 


A alma parte para o outro mundo

Depois de, neste, permanecer oculta

Acreditam que exista, mas não muito

Preferem dizer que o corpo faz tudo 

Na forma do Acaso, o Deus insubmisso


Mas a alma independe da dúvida ou da fé 

Por isso parte quando se vê livre

Podemos seguir seu rastro no crepúsculo 


Nei Duclós

19 de julho de 2023

FLAMENCO

 Nei Duclós 


A dança do flamenco são gestos de ameaça

De corpos que giram e se retorcem

Como a buscar ou livrar-se de alguma coisa


E quando encontram jogam o rosto para cima

E quando perdem se atiram em abismos Invisíveis 

  

O ritmo metálico do sapateado é de um coração dentro e fora do compasso 

Os braços voam imitando os pássaros

E os dedos escolhem no ar pérolas amontoadas


De longe parece um surto 

não fosse a extrema beleza desta arte

Impulsionada por gritos e guitarras

E pontuada por vozes que se espicham até o delírio


Pois o destino da dança exercida em palcos, casas e praças 

é atingir o impossível para criaturas datadas

O êxtase, que fica preso num gesto fulminante

Num rompante que ilumina a cena humana

E só a palavra sem raízes, adventícia, estranha

Poderá abraçar além da conta


Nei Duclós


17 de julho de 2023

ESTRELA

 Nei Duclós 


Não gosto dessa rotina de estrela 

Que compartilhas com inúmeras plateias 

Fazendo propaganda de perfumes 

Em lojas virtuais de cinderelas

Assumindo papéis que não condizem

Com teu coração que para mim entregas 

E me deixas esperando até que a noite

Estenda seu tapete persa

Sobre meu corpo exausto de promessas


No fim desisto. É quando chegas

Cheia de gás acumulado em passarelas

Para me atear fogo enquanto durmo

E sonho com o amor que tu me negas


Nei Duclós

TESOURO

 Nei Duclós 


Qual a cor dos teus olhos?

Comparo à alvorada em campo aberto

Ou de uma praia de esplêndida memória

Comparo ao melhor momento de uma vida plena 

Como fiapos de nuvens ao redor de uma estrela

Solitaria que aparece mal morre o dia 


Cor de mel e rosa morena

Brilho fosco de milho maduro 

Roupa de cristal que reflete a primavera em flor no muro 


Cor de dentro, da alma presa a uma promessa

Teus olhos que costuram a túnica do amor

Nosso tesouro


Nei Duclós

16 de julho de 2023

MARGEM

 Nei Duclós 


Não se estrague nas perdas

Não se rasgue

Não se mate na margem seca

Não se acabe

Mantenha a forma

Mesmo frágil 


Não gaste o aço 

Da sua coragem

Preste homenagem ao que se foi

Sem baixar a guarda


Não perca a batalha


Nei Duclós

15 de julho de 2023

MAR ADENTRO

 Nei Duclós 


Lanço-me à  aventura no barco grosso

Feito de árvores no seu começo 

Arbustos frágeis mas é o que temos


 Foi-se o naufrágio, quase morremos

Somos teimosos, sobrevivemos

À chuva, o frio e as doenças 

E hoje a ilha já vai distante


Bem devagar nos aproximamos

De nossa crença de um novo tempo

E que há um Deus por trás de tudo

Jugo de amor apesar de bruto


Somos tão poucos mas vela e remos

Nos levam longe onde houver chance 

Quem sabe a Terra, Paris ou Londres

Quem sabe o sonho por mais estranho


Dependemos do vento e das estrelas

Dependemos da bússola

Feita de arame

Dependemos da sorte no mar adentro

Dependemos do corpo, rota suprema


Dependemos da vitória, que jamais chega

Cais da esperança onde pousamos

O rosto amargo no ar espesso


Nei Duclós

14 de julho de 2023

TRABALHO

 Nei Duclós 


Se digo que trabalho

Em todas as formas da palavra

Virando madrugada

Dedicando tempo para decifrar as obras

E  compondo livros que ficam estocados

E que não cobro pelo serviço 

E vivo de ações  solidárias 

E que por isso me submeto de graça 

À oferta de serviços 

Públicos 


Então me olham e dizem que isso não é trabalho

É coisa de aposentado


Nei Duclós

10 de julho de 2023

ADEUS À MOCIDADE

 Nei Duclós 


Leio assustado sobre o esforço que alguns bilionários fazem para rejuvenescer

Eles tem medo de ficar velhos


Eu ao contrário tenho medo de voltar a ser jovem

Incomodar os pais

Falar merda colocando pessoas próximas em risco

Ir a eventos exibindo com orgulho um aspecto deplorável

Fazer desaforo nos empregos que joguei fora

Fugir dos compromissos

Descuidar da própria literatura

Esnobar amizades verdadeiras

Deixar passar as oportunidades

Desperdiçar talento achando que é coragem


Por isso sem nenhum esforço 

Envelheço devagar com uma sensação de alívio

Não que esteja totalmente curado

A qualquer hora posso voltar a cometer uma bobagem

Esquecendo meu adeus à mocidade


Nei Duclós

8 de julho de 2023

CAMINHOS

Nei Duclós 


Fui levado pelas mãos 

Para as refeições, o colégio, as igrejas


Fui levado pelas mãos 

Para a capital, o emprego, as paixões 


Fui levado pelas mãos 

Para a comunhão, o amor, os filhos 


Nada fiz sozinho

Parentes, professores, amigos

Me deram as mãos 

Todos me cercaram de caminhos


Hoje vivo isolado na poesia

Para onde fui parar

Conduzido por autores de livros 

Os que escrevem com o coração 

Infinito


Nei Duclós

6 de julho de 2023

HÁBITO

 Nei Duclós 


Permaneço escondido, como de hábito 

Mostrando a cara, sem perder o costume

A poesia tornou-se um dos andares

Do edifício ao qual não tenho acesso 


Virei saltimbanco, sem ocupar o espaço 

Que também está loteado, o dos incompreendidos

Premiados pela pose de palhaços


Sou mendigo raiz, produzo sem fazer contatos

Não vou a eventos, prefiro os pássaros 

Que migram dando lições de liberdade 


Vire a lata do lixo, lá está o poema

Sangue em conta gotas, como de praxe

Teu coração aplaude sem som ou imagem

Tudo se repete na solidão da arte 


O tempo não registra, avesso a vaidades

De quem deveria existir mas só se afoga

Mar sem saída do anonimato


Nei Duclós

4 de julho de 2023

ESTRADA

 Nei Duclós 


Publico versos que eu esqueço 

Depois revisito, mas não mereço 

Esse dom que parece especial

E é só o preço 

Que pago por nascer escravo 

Último servo da guilda, o escriba

Torto cabedal de biblioteca


Arrasto os pés no roto piso

Estuário de livros abandonados

Tropeço em folhas em tom sépia 

Marcas do tempo onde calado

Escrevi na carne da promessa


Nada levo e deixo muito pouco 

Passei em vão a vida sobre a terra

Carrego o pão para comer na estrada


Nei Duclós

NUVENS

 Nei Duclós 


Fui herói, quando me enxergaste pela primeira vez 

Fora do meu perfil de ser precário 

Achaste o máximo ao me ver no palco

Depois foste embora quando perdi a mágica 


Agora és feliz nos aniversários

Em fotos sorridentes

Tiradas sem remorso

Enquanto eu continuo vivendo ao largo

Entre gaivotas e nuvens, que são as palavras

As mesmas que usei no meu tempo heróico

Quando tive sorte 

E por ti fui inventado


Tenho esperança 

De resgatar-me estátua 


Nei Duclós

3 de julho de 2023

MILAGRE

 Nei Duclós 


Ela se deixou tocar

Milagre de um encontro que no excesso se completa

Eu já estava deixando escapar

Sem noção do que ela tinha armado

Na conversa


Sou o último a saber quando me querem

SEMENTE

 Ela disse que não vai morrer

Que vai ficar para semente


Gostaria de plantá-la 

Assim nunca me faltaria amor


Nei Duclós 

2 de julho de 2023

IMPERDOÁVEL

 Nei Duclós 


Tomei todas as decisões erradas

Sai quando devia ficar

Fiquei na hora de sumir

Menti para me prejudicar  

Fui sincero e não precisava me expor

Rompi no momento de insistir 

Travei na urgência de acelerar

Lembrei o que para sempre esqueci

Comentei sem me aprofundar

Desisti por uma questão de princípio 

Recolhi o que joguei fora

Almejo o que nunca foi para mim

Sonhei em situações reais

Perdi o jogo antes da vitória certa

Achei o que jamais procurei


O pior é que em vez de sentir  remorso para ganhar tempo

Decidi abrir mão de todo arrependimento


Nei Duclós

28 de junho de 2023

APERTO

Nei Duclós 


Apertei seu corpo inteiro

Num encaixe perfeito

até o vulcão entrar em cena


Ficamos sem respiração

E o fogo atingiu suas têmporas

Enquanto as pernas bambas pediam socorro


Segurei o mais que pude

Sabendo quanta água o prazer providenciava

Em seus tecidos


Sim porque estávamos vestidos numa festa formal de conhecidos


Ela se sentiu culpada não pelo marido que já não via

Mas por ter cedido

Tão intensamente depois de nosso flerte consentido

Que nos aproximou até a erupção

Do que parecia ser só tesão 

E era uma bomba de mil megatons


Não vou mais suportar ficar sozinha depois disso

Apesar de ter me arrependido

Disse ela mais molhada do que a Lua quando mergulha na piscina


Nei Duclós

27 de junho de 2023

CANTEIRO

 Nei Duclós 


Vida conheço de memória 

Sei de cór e salteado

Da infância à meia idade

Do coração à glória 


Mulher que no plural aflora

Nos momentos decisivos da saudade

Faz parte dessa bruta história 

Roupa de linho, casaco de aniagem

Estou vestido para o tempo breve


Fiz vestibular para a coragem

Passei nos testes gerais da refrega

Tenho bagagem que jogo fora

Ponho teu corpo liberto da vergonha


Ao vivo não ofereço nada

Ando sem ser visto, canto sem acordes

Ofereço uma obra, canteiro selvagem 

Onde um dia perdeste tuas verdades


Nei Duclós

21 de junho de 2023

VIRTUOSE

 Nei Duclós 


Nunca estás sozinha

Nas fotos de família

Nenhuma imagem solo

Virtuose em sinfonia

Mas sumida entre violinos

Anônima, imperceptível


Queria te ver na moldura

Sobre a minha escrivaninha

Junto às folhas cobrindo a mesa

Canetas e livros como companhia


Não cabe no escritório

Essa vocação coletiva

Sobra gente na cintura do vestido

Prefiro esperar que um dia aconteça 

O flagrante mínimo com a pose espontânea

O rosto surpreso, o pezinho em falso

E o sorriso em teus cabelos

Que o vento, meu emissário invasivo

Improvisa, na pele da felina


Nei Duclós

20 de junho de 2023

ESTRELA GUIA

 Nei Duclós 

Perdi a chance porque mantive intacta

Minha teimosia feita de revanche

Não é lamento mas a inconstante

Mania de me colocar à parte


Prefiro, por motivos misteriosos

Passar ao largo do que o destino cobra 

A liberdade é um vício dos tratantes

Modo seguro de evitar vitórias 


Nem a metáfora mais radiante

O verso que coleciona joias 

Em poemas que somem no horizonte

E me deixa só na sanga e nas praias

Poderá mudar a decisão antiga


Desmaia em mim o som mais cativante

Desperto num tempo que desafia a sorte

Venha até meu ninho, estrela guia

Que a poesia insiste num galope

Trema meu peito, musa moça e fria

Mas não espere mais do que já tenho

Homem calado, sem identidade

Sou o folclore de um país datado


Nei Duclós

17 de junho de 2023

 Nei Duclós 


Não economizo poema

Para entregá-lo depois a prazo


Recolho a granel na rede de três panos

Embrulho do disperso verbo sem arrimo

Exponho como peixes pendurados pela rua

que pescadores pobres trocam por almoço 


No papel almaço onde ponho o pão 

Ponho o poema

Caderno pardo de improviso 

Que serve para forrar o chão 


Palavras que varrem o coração 


Nei Duclós

ARTE Y FUTURO

 Nei Duclós 


Que gran arquiteto es el viento 

Que esculpe puentes y monumentos

Y que artista hermosa es la lluvia

Con agua sagrada en el tiempo

A bordar las sierras de alturas

Que hoy cae en nuestra cabeza


Como creer que el acaso

Sea capaz de hacer eso? Olvidar los ancestrales gigantes

Obreros de tantas piramides?

Y reir de su sabedoria

Su fuerza en piernas y manos

Legado de humana conduta 

Dioses antediluvianos


Pero llaman de la naturaleza

La obra hecha de sangre 

Nosotros seremos lo mismo

Sepultados por hijos extranos?


O teremos la suerte de estatuas

Que sobreviven en distante futuro?

Seremos montanas

O el mar con la luna en sus cuestas?


Nei Duclós

16 de junho de 2023

CERCA DE TI

 Nei Duclós 


Quanto a mi si te equivocas

Es por um mal-entendido 

No quiero ser tu marido

Pero respeto tus  coplas


Solamente te admiro

Y mi deseo es el arte 

Yo soy un hombre de letras 

Y tu una melodia


Tu danza es la poesia

Mi guitarra un poema

Piel de la rosa morena

Rostro de mel y azucena


Asi nos pomos de acuerdo

El abrazo en tu cintura

El beso nuestra  cadena

El amor quando Dios quiera


Nei Duclós

VERTIGEM

 Nei Duclós 


É cedo demais, me falou o anjo

O sol ainda não teceu a aurora

A poesia dorme ao lado na tua cama

E o dia te reserva um doce estímulo 

O amor que você carrega e está escondido


O espírito é visto só na superficie

Engana os sentidos ocupados brutos

Enquanto medra em lugar profundo

O trigo cultivado num terreno antigo 


A manhã prepara em susto a epifania

Não o que esperas na óbvia planície

Mas na montanha onde algo habita

Deus concentrado em ventos e vertigem


Nei Duclós

PARTISANA

 Nei Duclós 


Yo quiero poner mis manos

Con amor de partisano

en la bela guerrillera


Luchamos en las montanas

Contra enemigos con ganas

Pero tenemos con fuerza

Todo lo que cultivamos

En tierras de nuestra Espana


Soy tu amor de primera

Terrible en la carretera

Mi sonoridad lorqueana

Metralla por la frontera


Somos el vino de sangre

El abrazo de esperanza

Nosotros los partisanos

Soldados de cuerpo y letra


Nei Duclós

VÉSPERA

 Nei Duclós 


Ficou nítido para mim o que estava misturado

Solar o que ficava oculto 

Presente o que se escondia

Próximo o que viajou para longe 


Temo que seja a espécie de melhora que antecede o desfecho

O ânimo na fase terminal da despedida

Tão necessário para os últimos retoques


Há ilusão de que voltamos no tempo

Já que as pernas obedecem e o olhar se ilumina

E a voz agora encontra o tom certo

Até arrisco uma canção inédita 

Que compus há tempos e pensei em jogar fora


Mas é apenas a vida que não te ignora

Quando tudo te abandona no apagar das luzes

É  para você se acostumar nesta véspera

A enxergar as estrelas na rua morta


Para lá vai teu coração cheio de gás 

Como a Lua Cheia retorna para a Nova


Nei Duclós

13 de junho de 2023

SILENCIO

Nei Duclós 


En la muerte hay silencio

Mismo que griten los muertos

En su destino sin suerte 

Silencio en su intestino

A trabajar limpiamente

Sin gotas de interferencia


Es un silencio de muerte 

De poesia de piedra

A decir es para siempre

Y no me grite o conteste

Que ella trae en su ventre

Luna venida de sombra


No se ve la pobre estrella

Moriendo en cielo supremo

Ella nunca esta pronta

Porque trabaja en silencio


Nei Duclós

10 de junho de 2023

FLAMENCA

 Nei Duclós 


Por estar muy lejos de ti

Linda lejana que en la ventana 

Me dice en poesia el olvido 

Que hay en el viento y en las ciudades de Espana 

Por estar lejana

Mucho mas te quiero patria mia 


Y no es solo la danza

Las guitarras Las voces y los vestidos

Y las manos que dan el ritmo a mi corazon despedazado en este exilio

No solo Madrid Sevilla o Andaluzia

O Granada donde Lorca lo mataran

Tanpoco el mar, Barcelona o la cordillera de Montserrat

Pero si las palavras de mi nido tierra mia

Cerca de los abuelos en las guerras y la miseria


Por eso te canto amor de la Iberia 

Para que vengas a mi por todos los siglos 

Mujer lejana 

Patria que no muere ni me abandona


Nei Duclós

6 de junho de 2023

ESCULTURA

 Nei Duclós 


Parece fácil com a obra pronta

Depois do suor de árduas horas

Em que o talento consegue a síntese 

Da sofisticação e simplicidade

E aguarda o reconhecimento 

Que só os deuses são capazes

Porque os humanos acham mole

E não se assombram como deveriam

Desprezando a relíquia mais sagrada


O ourives conhece esse destino

E por isso trabalha em liberdade 

Abraçado à criação, sua escultura


Nei Duclós

DISTÂNCIA

 Nei Duclós 


Amor que a distância mata

É como brasa dormida 

Que sem o fogo agoniza

No inverno em pura armadilha

Noite adentro se aprofunda

E acorda virado em cinza 


Amor que esquece sua origem

E vegeta sob a sombra

De um cenário impossível 

Roteiro que evita o filme

Coração preso em cadeia

Ninguém enxerga no exílio 


Amor fora do otimismo

Que se reduz muito cedo

E acaba sem alimento 

Flor de jardim suspenso

Joio sufocando o trigo

Ronco de gruta escondida 


Amor que só sobrevive

Se houver amor por si mesmo

Que do teu corpo independe

E vive no ar rarefeito

De montanhas de granito


Onde gigantes criaram 

Mistérios de megalitos

Ruínas inacessíveis 

Do amor que morto resiste


Nei Duclós

4 de junho de 2023

TEIMOSO

 Nei Duclós 


Aproxima-se o final do outono

Armas do inverno limpando o cano

Sonhos de verão por baixo do pano

Amor que vi morrer ainda pulsando

Vida sem razão em mais um ano

Corpo em reclusão fecha o balanço 

O vento ameaça vir de longe

Batem na porta com força de gigante 

Cruzarei este mar mesmo sem apoio 

Vim do levante, existo de teimoso


Nei Duclós

3 de junho de 2023

AVÓS

 Nei Duclós 


Os avós são pássaros Invisíveis

Que se ocultam nas nuvens

E de lá não saem


As vezes nem sabemos seus nomes

E nas fotos são rostos anônimos 

Nem um pouco parecidos conosco


Sem saber herdamos seus gestos

E cultivamos hábitos sem ter por onde


Arriscamos até um pigarro

Uma tosse que ressoa 

Quando dizem

Parece teu avô 

Herdeiro desnaturado


Vá visitá-lo, dizem

Revele o pássaro 


Nei Duclós

1 de junho de 2023

DESAPEGO

 Nei Duclós 


Não importa a palavra

Em forma de conversa ou poema

Zeramos o que nos fez humanos 

Montamos no

manso cavalo

Do desapego


O mundo bate o ponto. Hora de começar tudo do novo 

Sem nossa presença

Solidão de veteranos


Nei Duclós

26 de maio de 2023

HUMANO

 Nei Duclós 


De tudo o que é humano faço parte

Do épico ao mundano

Da grandeza e pequenez da espécie 

Da sua História e esquecimento


Não que eu sirva de síntese ou exemplo

E queira provar o que não tenho 

Ou exibir humildade para posar de estátua 

Ou fazer caridade para divulgar meu gesto


Mas por ser datado e fruto do esforço 

De manter-me à tona em precário barco

E desafiar o oceano com as lições que aprendo 

Nas ilhas do meu destino escasso


Por ser o último dos moicanos

O que fica na aldeia por estar caído 

Pela mulher que não parte com a tribo

E aguarda, exausta, bela

O amor que tarda em meu coração de palha


Nei Duclós

25 de maio de 2023

SOBRENATURAL

 Nei Duclós 


Tampas de remédios que colocss à vista por segundos e quando olhas para o lado elas somem.


Sombras que passam pela sala e vês na hora de dormir quando a porta do quarto está aberta.


Alguém invisivel se aproxima atrás de ti quando estás cozinhando.


Você perde os óculos e achas depois de dias no mesmo lugar onde sempre deixas.


Sonhas sempre com a mesma casa que custaste a vender e nela moraste por 20 anos.

DESFEITA

 Nei Duclós 


Me abasteci de lembranças 

Para dar de presente

Eram a joia da coroa

Verdadeiros brilhantes


Mas você recusou todas

E pediu novos versos 

Aqueles que eu escondia no bolso 


Cedi meio contrafeito

Esses eu guardava

Para o futuro


Mas o futuro já veio, disse ela

Adivinhando pensamento

Só esses eu aceito

Porque para mim foram feitos

E ninguém dirá ser a dona

Me fazendo desfeita


Guardei as lembranças 

Para um futuro distante


Nei Duclós

19 de maio de 2023

OUTRO MAR

 Nei Duclós 


Venha ao mar, dizem, convictos

mas o mar eu imagino


O mar mesmo, decisivo

não é o mar do meu estilo


Prefiro o mar de menino

que eu deixei sem arrimo


O monstro mar infinito

não o mar que está na esquina


Já vi o mar, não repito

a emoção de descobri-lo


Não quero o mar de rotina

previsível na notícia


Quero o mar que está comigo

como parceiro de briga


O mar que não me abandona

como um verdadeiro amigo


O mar que o poema inventa

para lhe fazer justiça


Nei Duclós

18 de maio de 2023

INDECISA

 Nei Duclós 


Quando me vês assim tão caído 

Depois de amargar o mais longo exílio 

Ermo de ti e do amor prometido

Servindo a Marinha na guerra das ilhas 


Ficas imóvel por estar dividida

Então era esse quem eu tanto esperava

Perguntas sofrida ao humilde uniforme 

Que não te encara por temer o destino


Sou eu, digo, jogando a mochila

De rosto roído e andar de mendigo

Voltei para viver junto contigo

A não ser que não queiras quem sonha acordado


Aguardo um milagre na porta bandida

Talvez uma seta do instável Cupido 

Que volte a atingir a bela indecisa


Nao basta sobreviver ao pior inimigo

Ainda é preciso a coragem mais forte

De esperar que percebas o heroísmo

Do soldado vencido que a batalha devolve


Nei Duclós

13 de maio de 2023

A LUA CAIU

 Nei Duclós 


A Lua caiu 

Não sabemos aonde

No fundo do mar

Onde agora se esconde

Ou talvez na montanha

Em grutas de bronze

No meio do mato

Escapando do fogo

Ou na grama do pampa 

Misturada aos rebanhos


A Lua caiu

Como fruta no outono

Seu perfume está pronto

Com açúcar e sangue

Quebrou-se no espelho

Que trazia na fronte

Rolou pelo abismo

Num quarto minguante

Era fase de Lua

Não tinha importância

Sequer fez barulho

Como bicho que tomba


A Lua caiu

Foi parar no meu bolso

Ninguém diz que viu

O estranho fenômeno 

Ou que ouviu

O rosnar da hecatombe

Guardei no meu canto

Lá escondo tesouros

Como estrelas cadentes

Colares de sonhos


Inventei novo céu

No ar do horizonte

Combino com flores 

Para quando voltares 

De lugares tão longe

Terás tua Lua

De brilho mais raro 

Caída de espanto

Grudada em teu rosto

Como gota de orvalho


Nei Duclós



11 de maio de 2023

CRIME

 Nei Duclós 


Não tenho perdão

Do amor fui desperdício 

Abandonei o que me pareceu abismo

Era planície, mas visto a distância 

Não fazia o sentido imaginado


E assim fui descendo, rio que despenca da montanha

Feito de chuva e pedras de vulcão 

Soltei a mão de quem me via firme

A frouxidão substituiu o arrimo


A poesia perdeu com isso o rumo

Não me perdoe, mulher não merecida

A solidão completa o ruído provocado pelo crime


Nei Duclós

MÊS DE MAIO

 Nei Duclós 


Maio, mês de Miguel

Filho, para sempre perdido

Com a sorte, de vê-lo nascido

E crescido, em sabedoria


Viver, foi muito dificil

Morrer, no minuto seguinte

Menino, de profundo espírito 


Maio, mês de Maria

Que o recebeu, rebento querido

Em sua graça, a melhor companhia


O luto, postado na esquina

Aguarda, quem se aproxima

Eu passo, arrependido

Perdão, por estar distraído 


Maio, quem sabe eu te ligo

Pai? ele atende solícito 

Saudade, é só o que lhe digo

Sofremos, a vontade divina


Nei Duclós

4 de maio de 2023

OUTRA ORDEM

 Nei Duclós 


Parece que se esgota em tanta obra

A criação que se repete pelo verbo

E acabamos vazios como no inverno

As ruas sem o povo são desertas


Mas o frio obedece a outra ordem 

O clima se amarra em calendário 

Já nós, autores sem resguardo

Até nas pedras encontramos nosso espaço 


Não desistimos de dizer e fazer arte

Porque para isso nascemos nessa esfera

Conforme o plano ancestral de rumo incerto 


Não sabemos, por isso reservamos

O tempo em ânforas de barro


Nei Duclós

IMPERFEIÇÃO

 Nei Duclós 


Você não sabe onde o cara está metido

Enquanto o consideram o tal, joia de um carisma


Entrevistem o cachorro da família

E o garçom que serve sua comida


O que diz de fato diante da mídia

Estaria em sintonia com o perfil público?


A imperfeição da estria em pele lisa

deve pincelar a estátua 

A covardia dá as cartas se não for assim


O crime assedia a homenagem

O granito cede à humanidade 

Não se iludam com a falsa majestade


Depois se surprendeem ou debocham

Quando emerge o terror na bela praia 

Mas estava escrito

Assim se consuma a profecia


Melhor se prevenir


Nei Duclós

ÁGUIA

 Nei Duclós 


Não perca o poema em seu esboço 

Ponha no bolso

Depois desenvolva


O recém  nascido que cai do ninho

E sobrevive aos corvos

Bem tratado um  dia alça voo


Eis a águia 

Dos ares soberana


Nei Duclós

1 de maio de 2023

VISÃO

 Nei Duclós 


Deuses antigos duraram mil anos 

Depois se foram 

em cataclismos vulcânicos  

Assim como teus olhos boneca de pano

Que insistem em me excluir

Mas tua vez vem chegando


Meu corpo ressuscita se fores espanto

Visão de um amante, sujeito estranho


Voltarei então com meu

rosto em pânico 

Verás que sou ainda um alguém  humano

Estátua de sal, verso sem dano


Nei Duclós

26 de abril de 2023

 RELATÓRIO DA VIAGEM EM MISSÃO DE PAZ 


Navegando no navio que me recolheu de um naufrágio 

E foi reformado depois de minha volta triunfal à terra sagrada

Fui recebido em todos os continentes

Fiz continência para tripulações diversas

E capitães de todas as cores

Sóbrio e abnegado em minha farda de oficial outorgada por meus pares

Sem o merecimento da guerra mas da sobrevivência

E desci em portos capitais e desconhecidos

Depositei flores em túmulos de heróis

Eternizados em bronze extraído de canhões

Que abrigam frases ensinadas pela vida 


 Não foi a apoteose de um guerreiro

Mas de um cidadão comum adotado pelo mar

E que no chão da sua Pátria exerce a sabedoria

Dos viajantes que somem no horizonte

E depois de muitos anos voltam para contar o que viram

Nas tempestades enviadas por Netuno

O pai das águas que engolem esquadras

E devolvem os aventureuros com o dom da profecia


Nei Duclós

DESFILE

 Nei Duclós 


Sonhar, lembrar, querer

Tens o dom de me despertar

Acordo em teu amanhecer

Tanto corpo nas alturas do céu


Não compensa perder-te no ar

Não há memória para o teu lugar 

Não abarco os limites do luar

O verbo se submete ao tirano amor 


Vens num andor, o meu olhar

Desfilas sem pudor na contra luz

Sou teu guarda de uniforme azul 

Trabalho na Marinha e na pressa vou partir


Nei Duclós

20 de abril de 2023

TEIA

Nei Duclós 


Desfolhei-te como a um livro

Que ao não ler linha por linha

Acabei breve no epílogo 

Sem saber como termina

Essa pressa em seres minha

Que nas margens se destina

A esconder-se toda tímida 


Dicionária fugitiva 

De conflituosa leitura

Neo-romancista tardia

Que me enreda em teia espúria 


Desconheço tuas letras

Para compor melodias


Nei Duclós

10 de abril de 2023

DA RELIGIÃO

 Nei Duclós 


Pessoas idosas tornam-se muito religiosas porque a soma das perdas ultrapassa a capacidade de suportar. Não há vida que caiba em tanta dor. A fé providencia o espaço necessário para continuar andando.


Mas a fé só se segura com o estudo da doutrina. Repetir orações e hábitos pode devolver os mais antigos ao ceticismo da mocidade. Ouvir o sacerdote preparado, ler sobre os mistérios fazem do conhecimento um antídoto contra os falsos profetas e os neo milionários da auto ajuda, que exploram a fé  coletiva sem as bases que sustentam a religiosidade.


A Bíblia traduzida para o idioma falado por todos ajudou a  construir uma civilização. A ética da espiritualidade iluminou o Direito e disciplinou a cidadania, segundo a visão weberiana da América. Em outras nações o peso da palavra revelada engessou sociedades e governos. E gerou alternativas que disseminam o obscurantismo.


O Apocalipse é presente em qualquer tempo. O medo desperta a busca da transcendência. Todo esforço de soterrar as religiões esbarra na vida humana datada. A utopia do materialismo é  sempre vencida pela realidade do sagrado.


Leva-se uma vida para abraçar o reforço da religiosidade. Costuma acontecer quando, longevos, enxergamos melhor o que a existência nos reserva.


Nei Duclós

7 de abril de 2023

URGÊNCIA

 Nei Duclós 


Faço poesia como quem procura água em campo aberto

Com a forquilha da intuição e o passo incerto

Preciso matar a sede do rebanho

Detalhes de uma arte que não tem tamanho

Só a sorte poderá apontar a direção exata

Onde encontrar o rio subterrâneo


Tenho urgência pois temo o domínio do deserto 

Fatídico desejo de quem já é dono da montanha

Hoje tomada de urzes quando antes era festa


Nei Duclós

SEXTA-FEIRA

 Nei Duclós 


Águas de abril inauguram o friO

 verão é passado, o inverno por um fio

O ano avança numa procissão de horror 

Deus crucificado, a prece sem remédio 


A compaixão no andor da misericórdia 

A mãe chora pedra na arte da Pietà 

A morte é completa na gruta da fé 


As três em ponto da tarde 

O linho abrigou o corpo sem sangue

Começou assim o manto redivivo

A dor gerou o sonho e o amor veio da água


Nei Duclós

DESTINO

 Nei Duclós 


Fui escolhido por tuas mãos de seda

Teu olhar profundo como um crepúsculo 

Enlaçado por pernas de mármore 

Impregnado pelo perfume de fêmea 


Fui aplicado como obra do destino

Impossível escapar desse abraço nobre

Não previ o alcance de tanto rodízio 

Espiral do amor e do prazer livre


Fui ensinado a ser refeição e abrigo 

Homem de verdade, grão de uma conquista

Lavoura sem conflito,  colheita além da vida


Virei criatura no tempo do convívio

Por teu rosto de flor amiga

Pela mulher madura, sal, pote de açúcar 

Era para me perder, mas por ti fui escolhido


Nei Duclós

5 de abril de 2023

VIDAS

Nei Duclós 


Vida normal, afora a fantasia

Onde vivo o que não devia

Viagens sem destino certo

Amores em situações limite


Vida brutal, afora a poesia

Palavras cerzidas em parede fria

Vantagens de um falso heroísmo


Vida mortal, afora a biografia

Minha estátua de barro em rua mendiga

Tempo terminal, mas sem fim do caminho


Nei Duclós

3 de abril de 2023

CORREDOR

 Nei Duclós 


Levam a sério quando sou farsante

Tratam como se eu fosse adulto pronto

Pleno de uma identidade aceita 


Mas nem eu mesmo sei que tipo represento

Migro do sonho para outro mistério 

Diga o que vês e eu acrescento

Não existo nestes exatos quadrantes


Fugi dos limites do cânone 

Depois de nele entrar, corredor sem fôlego

E viver atirado não faz nenhum sentido

Tenho um pé na nuvem, outro no centro

Vivo de favor no mundo intolerante


Nei Duclós

2 de abril de 2023

DIA DE DOMINGO

 Nei Duclós 


Ĺevamos os ramos para benzer na igreja

E depois colocar atrás do espelho

Para afastar tempestades

E nos proteger dos raios

Mantendo a fé no poder da divindade


A cidade era inundada pela multidão 

Todos eram católicos

E a infância agradecida voltava para casa

Cada um de nós  com o ramo sagrado


Deus tinha chegado


Nei Duclós

CLARIM

 Nei Duclós 


Chuto o balde, mas ele está vazio

Sem nada que pudesse repercutir

O som é  oco, eco do grito que abafei 


Cavei a solidão por ser assim

Letra de metais em roupa de algodão 

Clarim que evoca o silêncio numa procissão


Falta fechar esta voz de baque surdo

Com a palavra terminal da poesia 


 Nei Duclós

ARMADURA

Nei Duclós 


Tirei da poesia o que ela tinha

Para ver o que havia dentro dela

Objetos diversos, quinquilharias

Letras de forma sem formar sílabas

E um ruído de cosmo antes do início


Optei por recolher alguns vestígios

Da arte que até então eu conhecia

Mas não pude armar qualquer sentido

Perdi a embocadura, vi-me no limbo 

Costurando a linha de uma crise


O tonel do poema estava cheio

Deveria aguardar o acontecido

E não sofrer com a abstinência

Própria dos pobres arrivistas


Agarrei-me a um soneto bem antigo

Romântico, que trazias na bagagem

E assim recuperei a epifania

De continuar a partir do que Deus fia

E não romper o selo da armadura

Que a natureza em nós providencia


Nei Duclós

NA TRILHA

 Nei Duclós 


A imaginação torna-se fato pela poesia

Invento assim a realidade que me foi negada

E vivo nela, como pássaro no ninho


Quem dirá que não existe esse registro

Se sou eu que cruzo a ponte e pulo o muro?


No poema é a mesma coisa, todos buscam

Não a fuga, mas a cura, o fôlego justo

Onde se possa respirar um ar mais puro


Alienação! me acusam com virtudes

Mas sigo em frente abrindo bruto

Espaços na trilha selvagem e obscura


Nei Duclós

1 de abril de 2023

CRIME

 Nei Duclós 


Não tenho onde guardar tanto livro 

Eles despencam, não lidos

Se escondem, tímidos

Somem, fugitivos


Nos armários assumem bizarras serventias

São escoras de louças finas

Sustentam pacotes de farinha

Se espalham por quarto e cozinha


Joga fora, me dizem

Não posso, alguns foram escritos por mim

Só que não localizo mais

O ponto exato do crime 


Nei Duclós

MAQUIAGEM

 Nei Duclós 


Sem dar bandeira  você gosta do poema

Encontras nele pistas dos teus segredos

Podes posar direita em salas  cheias

Mas dentro de ti arde o que te escrevo

Na íntima solidão do teu desejo


Bastaria dizer-me o que eu já adivinho

Fantasia de amasso sem que ninguém veja

Consertas no espelho a maquiagem desfeita

E voltas para as tuas conversas


Alguém nota algo na sobrancelha

Disfarças dizendo que não é nada

De longe observo tua falta de jeito 

Fêmea em fogo, comprometida até o osso


Nei Duclós

29 de março de 2023

SOBERANO

 Nei Duclós 


Ainda está escuro quando os passarinhos começam a se manifestar

Acendendo pequenas fogueiras de pios nas árvores da beira mar

Sentem a proximidade do sol, soberano

Com seu plano de despertar na noite

O poderoso incêndio do seu corpo, monstro misterioso


O canto tímido emplumado sabe o seu lugar

Anuncia por vocação o dia que está por chegar

Tomado pelo movimento de um gigante de fogo

Que por misericórdia é brando

Depois da surra que deu na terra no começo do ano 


Até quando será bom a inventar a vida?

Junto com as aves rezo na vigilia. 

Piedade, Senhor

MADELEINE

 Nei Duclós 


Amamos de memória

No mapa dos corpos isolados

O sabor da madeleine

O doce cheiro que foi embora

Marcas do toque em tua flora

Trilhas jamais repetidas

Namoros que viraram pó


A brisa em tua penugem.

Cabelos que descem aos pés, ninfa gloriosa

E a falta que faz teu rosto proximo

Em minha inútil obra


Nei Duclós

DOCUMENTO

 Nei Duclós 


Eu já fui uma pessoa

Hoje sou tombo de Outono

Poema escrito no joelho

E publicado à toa

Antologia de riscos

Rosto de rua tardia


Eu já fui e hoje sou

Folha do vento morno

Enquanto segue no arranque

De uma estação esquecida

Do verão que a antecede


Não serei mais o verbo

Que inaugurou novo espaço 

Ocupo o centro do drama 

Vivo de alegorias

Animo o fim e uma festa


Sou pessoa na essência 

Não tenho o que identifica

Veja no docunento

As sobras da poesia


Nei Duclós

26 de março de 2023

SORTE

 Nei Duclós 


Você fala por flores

Não importa nome, cor ou perfume

Você fala por flores


Amor no lugar do ciúme 

Gesto em vez de palavra

Na entrega e não na conquista

Força do abraço suave


Você fala por flores

Guardas a dor e o teu luto

Queres viver sem ter medo

Sem trair o sentimento

De perda e corpo em conflito


Você fala por flores

Modo alto da alegria 

Todos entendem

Não precisas do discurso 


Já preparei o jarro

Já revolvi o canteiro

Adubei com a esperança 

Reguei com água de cheiro


Você fala por flores

Que sorte, Deus, que eu tenho


Nei Duclós

25 de março de 2023

OUTONO

Nei Duclós 


Outono chega, mesmo que o verão, irmão mais moço 

Espiche a estação do sufoco 

E torne tardio o clima doce

O frio que nos liberta do calorão em pele e osso


Outono é o coração do ano

Sua pulsação, seu abandono

Encontro que vira adeus

Janela de trem em cais do porto 


É quando vens, no colo do sonho

Braço de mim, saída de banho

A dormir comigo, depois do tombo

Da fruta que cai ao desistir da planta que a sustenta

E se aninha em fogo brando 


Nei Duclós

ESFORÇO

 Nei Duclós 


Você chega lá, mas a que custo

E nem usufrui os frutos 

que são teus

E somem em mãos alheias


O semeador anônimo 

Só tem Deus por testemunha

Do cultivo feito por vocação e sem retorno

A não ser ver que seu esforço 

É caroço em ti e polpa em outro sitio 


Nei Duclós

TRÊS PRINCESAS

 Nei Duclós 


Três princesas prisioneiras

Em idade para casar

Tem um pai que é uma fera

Que se chama Valdemar


Marina, Flor e Teresa

Não conseguem namorar 

Cuidado quem por lá chega

Com intenções de pousar


Não bula com meu sossego

Diz o guardião do solar

Não importa que as morenas

Estejam cheias de gás 


Três princesas prisioneiras

Abertas de par em par

Aguardam dias de festa

Enquanto estão a rezar


Nei Duclós