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26 de abril de 2008

CENAS INESQUECÍVEIS


Nei Duclós (*)

Na multidão do metrô, alguém me cumprimenta com entusiasmo. O rosto é familiar, mas não atino quem seja. Retribuo, meio sem jeito, o que é imediatamente percebido. No dia seguinte, quando vejo a mesma pessoa me dando o troco do cafezinho, que costumo tomar sempre no mesmo lugar, vislumbro o tamanho da gafe.

Eu identificava o caixa com o ambiente onde ele se situava, e quando encontrei o mesmo sorriso num espaço urbano diferente, deslocado da minha percepção habitual, não reconheci. A sorte é que não houve ressentimento. O amigo da cafeteria entendeu perfeitamente. Não por gentileza profissional, mas pelo esforço de tornar prazeroso o momento em que costumávamos encerrar o intervalo do dia. Por distração ou por força de hábito, eu perdia a chance de me comportar à altura da qualidade pessoal que me cercava.

Esse crime tem uma causa. Atulhadas de imagens, nossas mentes selecionam o básico para a sobrevivência. Formatamos uma rotina compatível com nossas condições cardiovasculares. O olho é traiçoeiro e só enxerga o que está acostumado a ver. É por isso que alguns cineastas, sabedores desse vício, conseguiram criar imagens de impacto usando uma cena familiar instalada num entorno diferente. É clássica a imagem da Estátua da Liberdade semi-enterrada na areia, no primeiro “Planeta dos Macacos”.

É impossível esquecer Charlton Heston, que se foi recentemente, levando consigo o segredo de encarnar personalidades históricas à altura da grandeza com que são lembradas. Ao se ajoelhar diante do símbolo de uma civilização que se auto-destruiu, o ator inesquecível nos transportou para o horror do remorso. As ruínas de algo muito próximo, que se misturam à paisagem de uma praia perdida, assombram a cultura visual da nossa época. É assim com inúmeros outros exemplos.

O assassinato de Janeth Leigh no momento do banho em “Psicose” se transformou num paradigma. Nada mais trivial do que uma ducha, um corpo visto por detrás da cortina, cabelos molhados, gotas escorrendo pelo corpo. A ação do assassino que ninguém vê, a montagem que retalha a mulher junto com a faca, os gritos, a música, intensificam até a demência o que deveria ser corriqueiro. Depois dessa cena, o suspense e o terror jamais foram os mesmos. Hitchcock e sua equipe nos assustaram ao mudar a natureza do olhar. Espiar mulher no chuveiro deixou de ser um expediente meramente erótico. Virou atentado.

Mas não só de sustos vivem as imagens poderosas. Marlene Dietrich sentada no banquinho em “O anjo azul”, ou Marilyn Monroe esvoaçando sua saia branca no vento encanado do metrô em “O pecado mora ao lado”, participam desse deslocamento do familiar para o insólito. O truque é fazer com o que o ato banal de sentar aconteça no palco de um cabaré, com a protagonista usando uma roupa que despe o olhar dos espectadores. Ou usar a obviedade do vento gerado pelo movimento dos vagões para arejar o desejo exposto da diva.

Não só o cinema cria impacto visual. O jornalismo também deixa suas marcas, que definem nossa época. Os aviões mergulhando na presença “natural” das Torres Gêmeas, a forma corriqueira do cogumelo identificando o pesadelo nuclear, as feridas de napalm na infância vietnamita em pânico, são imagens que encheram nossas retinas de assombro. Serão lembradas muito tempo depois que formos embora.

Poderão perguntar o que não conseguimos esquecer fora dessa indústria visual que nos cerca. Eu selecionaria algumas lembranças: Porto Alegre vista no crepúsculo quando eu voltava do pampa para decidir o rumo da minha vida; a mãe fingindo que varria a calçada quando eu chegava de viagem para avisá-la que abraçaria o jornalismo; o pai, que daria um pulo na cidade, depositando um revólver 38 em cima da mesinha de madeira do acampamento, e recomendando que mandasse bala em quem invadisse nossos redutos sem convite; São Paulo em abril, vestida de ouro da luz da tarde quando lá estive pela primeira vez; o mar visto da saída do túnel no Rio de Janeiro; as gaivotas sobrevoando o centro de Florianópolis antes do aterro.

Tudo isso faz parte de um acervo pessoal de impacto, em que momentos muito próximos e banais se transformam na síntese de mistérios: a vida como um presente, a memória como um sonho eterno.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste fim-se-semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: todo mundo conhece. O bom para o mito Marilyn (não para a pessoa) é que bateram nela muito cedo. Com o tempo, ficou imune aos ataques. A diva está, portanto, acima da atual tendência de desmoralizar o talento. Ela cresce a cada ano que passa. 3. E você, qual sua cena inesquecível?

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