Nei Duclós
Certa vez, Delmar Marques me contou como escapou de um atentado. Ele estava de moto e parou num sinal. Viu que ao seu lado tinha um volkswagen com dois sujeitos dentro. O motorista afastou a cabeça para que seu comparsa apontasse o revólver. Delmar deu praticamente um cavalo de pau ao acelerar bruscamente e virar 180 graus, fazendo a curva em direção contrária em que embicava a moto. Refugiou-se num condomínio de apartamento, onde um militar aposentado, de pijama, salvou sua vida. Quem o perseguia eram assassinos contratados. Estava sendo ameaçado depois de uma série de denúncias que tinha feito sobre grossa falcatrua em Porto Alegre.
Vivia perigosamente porque era um jornalista de verdade. Mas não se confinou aos limites impostos nas redações. Quando tinha coluna, fazia grandes reportagens. Quando cobria eventos corporativos, ia atrás de informações que expunha as vísceras do mundo empresarial. Escrevia fluvialmente: peças de teatro, poesia, romances, ensaios. Conversou com todas as grandes personalidades do Brasil que ele viu morrer ao seu redor.
Um belo dia, recém convidado por mim para trabalhar numa revista, chegou no almoço dedicado à imprensa vestindo vistoso terno branco, contrastando com as cores pretas de todos os convivas. Sentou-se na mesa principal, completamente à vontade, ao lado de tubarões, monarcas, capitães do mato. Dava a eles o privilégio de serem tratados como seus pares.
“Aqui é o Delmar Marques!” dizia, pleno de si, ao telefone, quando brigava por informação. Eu implicava, dizendo que era excessivamente auto-centrado. Tamanha obviedade arrancava dele gargalhadas. Claro que era, o mundo girava ao seu redor. Fazia o que bem entendia, porque encarava a sério a palavra liberdade. Nos últimos anos, dedicou-se a desvendar o mistério do desaparecimento dos índios minuanos. Ou melhor, de como os minuanos ajudaram a formar o povo riograndense e como hoje todos esqueceram essas origens. Sonhava emn resgatar as sociedades matriarcais míticas, ancestrais, numa linhagem oswaldiana legítima e fora do circuito dos incentivos culturais.
Lutava pela dignidade da profissão de jornalista, criando uma barreira entre o marketing das relações públicas e as redações. Foi voto vencido, já que a profissão acabou. Foi-se o amigo e um homem de coragem. É cedo para avaliar sua trajetória. Ainda estamos próximos demais para entender sua luta. Tudo nos escapa em Delmar, coração exposto na tormenta. Nenhuma palavra o define, nenhuma lembrança o resgata. Jogou-se ao mar sem o socorro de amarras.
Não devolveram seu coração em farrapos, que gastou de tanto uso. Veio de longe, do miolo do pampa, terra de guerreiros. Quiseram matá-lo cedo, mas ele não permitiu essa chance aos inimigos. Escolheu o momento, sabendo que não tinha mais tempo. O que poderemos dizer de alguém que caminha consciente para o desenlace, porque não quis perder um só minuto de vida? Melhor deixar que fale por si, que caia sua avalanche sobre todos, enquanto calamos em sinal de respeito. Reportagem, poesia, romance, história: por todas as artes sopra seu vento, minuano de nascença, eterno por destino. Delmar Marques se retira, e não sabemos ainda o que perdemos.
RETORNO - Imagem de hoje: Delmar Marques, nascido em Rio Grande há 60 anos, no Rio Grande do Sul, morreu no Hospital das Clínicas, à espera de um coração para o transplante. Fui seu amigo por mais de uma vida, desde que éramos muito garotos. Sempre fomos muito próximos e muito afastados um do outro. Opostos e iguais como dois irmãos.
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