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20 de dezembro de 2003

AVENTURA COM FINAL FELIZ


A libertação de Trolé desencadeou uma série de acontecimentos que culminaram com uma tropa de blogueiros invadindo a cobertura de Mr. Toth e seu fiel Radoc. O final dessa história de Natal, que me foi soprada via e-mail pelo Editor da Fronteira, encerra a segunda fase do Diário da Fonte. Podemos voltar a qualquer instante.

CERCO E INVASÃO - “Gim Tones tinha me informado que descobrira um furo na aparente carcaça de Mr. Toth: ele se deixava dominar pelas imagens. Era um vício, não conseguia se desprender delas. Por isso tinha inventado um clone, para fazer o serviço sujo, enquanto babava em frente das reproduções gigantescas de fotos do Hélcio. Adelino Nazario, que é do ramo, propôs que se fizesse imediatamente uma invasão na cobertura, inundando o cientista maluco com as mais variadas fotos de São Paulo e do povo brasileiro, pois ele fatalmente iria sucumbir diante da imensidão daquelas imagens cheias de luz. Pois Mr. Toth odiava cores, gostava mesmo era do sépia, nem o preto e branco suportava. Por isso mantinha Radoc grudado na parede, assim as fotos de Helcio ganhavam um tom amarronzado insuportável.
Decidimos pegar carona até o prédio sinistro no carro de Ms. Agrella, que dera falta de Hélcio e não entendia porque não respondia aos seus telefonemas. Sabedora da tragédia, encheu o bagageiro com suas fotos fantásticas de Sampa e das estradas por onde andou. Nazario levou sua seqüência sobre o Copan. Eu decidi levar algumas fotos clássicas de Marcelo Min, pois imaginava que poderia atrair o grande fotógrafo de dentro da criatura do Mal com suas próprias imagens. Chegamos lá e vimos o prédio todo coberto de luzes em cores que variava do azeite escuro ao roxo vivo. Radoc!, pensei, pois sabia que aquilo era manifestação do Inominável. Ele estava brincando de Papai Noel, talvez para obedecer Mr. Toth e atrair gente para o covil, se bem que essa não fosse sua verdadeira natureza. Tiramos a muamba fotográfica de dentro do carro e subimos as escadas, que despencavam corrimões e degraus com aquele tropel de gente. A porta, como sempre estava aberta. Ms. Agrella desenrolou logo sua foto sobre o centro de Sampa, onde prédios antigos pontificavam sobre um céu azul, além de fotos de parques e de gente e foi jogando em cima da criatura. Mas essa era um clone e não atendia a estímulos externos. Adelino não teve dúvida e desferiu uma porrada no falso cientista, que ainda estava debruçado sobre a perna indecifrável de um inseto. Era o que pensava: o clone era apenas de papelão e tinha sido posto lá para impressionar os visitantes. Mr. Toth não tinha poder de clonar nada nem ninguém. Descobriram o covarde dentro do armário, já cobrindo os olhos com a luz que vinha das reproduções coloridas de Adelino e Agrella.
- Sai daí, peste, gritou Adelino, dando-lhe um safanão.
Radoc interviu transformando-se numa gosma e atirou-se às fotos para que elas perdessem o brilho. Era o fim? Gim Tones então lembrou-se que outra coisa insuportável para Mr. Toth era a literatura. Começou a recitar suas Memórias Póstumas aos gritos, e quanto mais avançava no ritmo, mais Mr. Toth se desmanchava. E ele parecia sumir numa fumaça escura, de onde vislumbravam-se duas silhuetas bastante conhecidas.
Eram Hélcio e Min, exaustos de ficarem naquele calabouço. Gim deu um safanão e tirou Min da fumaça, mas não se cumprimentaram. Algo havia entre eles. Hélcio caiu nos braços de Mrs. Agrella. Ouviu-se então um estrondo e todos saíram correndo escada abaixo. Lá fora, um grupo de demolidores preparavam-se para a ação:
- Vamos explodir essa porra, disse o chefe dos operários.
- Por quê? perguntou o incansável repórter Gim.
- Porque é Natal, caralho!
Antes da bomba explodir, chegou Trolé com Anabela na garupa. E mais o trio de especialistas, Daniduc, Pablo e RBP.
- Uma coisa eu não entendi, perguntou Gim. Se Mr. Toth sabia que a Internet tinha fim, porque ficou perdido quando vocês colocaram a moto lá?
- Ele sabia e queria usar isso para fazer sua maluquice, colocar todo o conteúdo da Internet na cabeça de um alfinete, numa espécie de anti-big-bang, explicou Pablo. Mas é um covarde e não chegava lá nunca, porque também sabia que não poderia dominar nada num lugar como esse, que parece plausível, mas é uma bobagem, pois nenhum site é um beco sem saída. Internet é a liberdade.
O trio bateu mutuamente as mãos espalmadas, contentes com a resposta de Pablo. Gim olhou desconfiado:
- Acho que vou moer vocês com novas perguntas.
- Pelo ICQ, disse RBP. Pelo ICQ.
O prédio então explodiu e uma grande fumaça de todas as cores levantou vôo na noite gloriosa de dezembro. Ouvia-se ao longe o segundo movimento da Sétima Sinfonia de Beethoven. Era a audição especial de Natal no Pátio do Colégio capitaneada pelo DJ Cabeça, que na seqüência colocaria o rock dos rocks, Satisfaction.
E foi com essa trilha sonora que Hélcio Toth pegou a magrela, acompanhando o carro de Mrs. Agrella, com quem trocava gentilezas:
- Não vai fotografar melhor do que eu, hem!
- Isso vamos ver, dizia ela, rindo.
Era o amor. Ainda pude ver a cena maravilhosa em que os três especialistas entregaram um lap-top para Trolé presentear sua namorada no Natal:
- Estava sobrando lá no reduto de Mr. Speed. Pega aí.
Trolé roncou a moto e fez continência para todos. Tinha uma ceia a cumprir.
Ainda fiquei por ali, escutando o som do DJ Cabeça. Amava aquela cidade para caralho. São 450 anos de vida! E os amigos eram o oásis do real.
Depois me dirigi para o aeroporto. Vou pegar um avião e um ônibus para Uruguaiana, pois tenho um churrasco marcado no Bar do Funcho.”

RETORNO - E assim termina nossa história de Natal. Quem souber que conte outra. Boas festas para todos.
Notas importantes: Gim Tones e Adelino Nazario fazem parte dos redutos sagrados de Fabio Murakawa (http://gimtones.blogger.com.br/). Aparecem aqui sem cerimônia porque esta é uma homenagem aos amigos; o site Espinha continua firme e forte, assim como o Fotogarrafa; Regina Agrella é a responsável pelo Fotoblog; o Gulib é um grupo que atua no Cybershark; já Trolé ainda não tem blog, mas pelo andar da carruagem, logo logo vai ter um; e Anabel gostou de ser rebatizada de Anabela, um erro de digitação do Editor da Fronteira que acabou dando certo.
Gulib informa: "Li agora o relato do resgate de Trolé conforme visto pelo El Gran Terceirizador e como testemunha-participante tenho que dizer que as coisas foram mais ou menos desse jeito mesmo, embora tenha que realizar algumas explanações orientadas pra os tecno-geeks, ja que El Gran, mais afeito as artes literárias passou bem a emoção da perigosa situação, porém talvez os escovadores de bits apreciem alguns apartes. errêbepe, também conhecido como el coordenador devido ao seu duvidoso passado na temivel "FIRMA" que a principio se passava por bondosa organização pró linux e no final se revelou apenas outro plano de dominação (fonte para toda uma nova história) lembraria, embora não me tenha dito nada, que seu login não é grafado em caixa alta (RBP) e sim em letras minúsculas (rbp), ja que na matriz-linux as maiúsculas se diferenciam das minúsculas. Quem diria que habitamos um lugar onde A não é a. Apenas como curiosidade, o contato se deu com El Gran Editor de la Frontera via ICQ para ele, mas nós gulibenhos usávamos na verdade o transporte jabber para ICQ, evidamente encriptado com GPG, já que o segredo era naquele momento vital para o sucesso da missão!Aproveito para contar para os preocupados que não só não cumprimos o prometido de fazer upload dos milhares de endereços de possíveis infelizes de presunto enlatado (SPAM é também presunto enlatado, sabia não? http://www.spam.com/>) como ainda por cima deixamos como despedida para a horde de provedores-bots uma instância de bogofilter. rere, isso deve atrasá-los um pouco. De resto, que mais? Foi bem assim mesmo que se deu a coisa, e estou muito feliz que a historia tenha sido relatada tão fielmente. Espero ansioso a oportunidade para novamente dizer "tu por aqui?"Grande abraço. daniduc "

MOTO NO FIM DA INTERNET



Neste capítulo, onde reproduzo mais mensagens do Editor, descobrimos os verdadeiros motivos de Trolé estar dentro do gafanhoto mutante Pimple. Tudo graças aos repórteres policiais que, de início, não quiseram colaborar, mas colocaram suas antenas a funcionar e ajudaram a descobrir uma aventura completamente ensandecida, nas estradas virtuais da rede infinita (infinita?)

LINKS – “Ok, disse Gim Tones batendo o copo, vamos imaginar que tua história seja verdadeira. O que não me impressiona é esse motoqueiro ser colocado dentro do bucho do superblog, sem nenhum motivo aparente. Que prova é essa que Mr. Toth disse que está fazendo? Para que serve um pobre coitado lá dentro da invenção miserável dele?
O repórter fazia as perguntas certas. Dei de ombros. Realmente eu não sabia. Tinha fugido apavorado da cobertura antes de saber da explicação. O mistério despertou a gana dos dois jornalistas.
- Vamos até lá, disse Gim a Adelino, que prontamente já estava na porta, fazendo um gesto de pindura para o dono do bar, que olhou feio.
Gim depois me contou a história que ouviu de Mr. Toth, graças à sua ousadia de chegar no pedaço sem nada a temer, como sempre foi seu estilo:
- O cientista me disse que o entregador de pizza é o exemplo mais bem acabado da Lógica Elementar num mundo em transformação e movimento. Ele está sempre se arriscando, dia e noite, e precisa seguir um encadeamento perfeito para não decepcionar os fregueses. Os primeiros a pedir são os primeiros a serem atendidos. O timing é fundamental. Há um momento de começar a entregar a mercadoria, e outra de fechar o expediente, tudo isso feito em duas rodas. Não pode haver outra criatura que precise saber tanto de lógica para poder driblar carros, acertar endereços, ser simpático, ver o troco direitinho, entre outras modalidades. Por isso o pesquisador resolveu colocá-lo lá, para poder calibrar sua invenção. Pimple era gigantesco demais e estava perdido. Mas Mr. Toth não contava com o pânico do motoqueiro. Fez a operação de maneira muito rápida, pois contou com a ajuda de Radoc, o Inominável. (não seria o Abominável? copidescou Gim, atento ao fato de que o codinome queria dizer aquele que não pode ser nomeado, o que era uma contradição difícil de ser engolida por qualquer editor). Além disso, Trolé conseguiu se comunicar lá dentro, o que não estava previsto. Agora ele conseguiu imobilizá-lo, mas precisa que Trolé se movimente, pois senão a experiência vai fracassar.
- Ele lhe contou tudo isso?
- Mr. Toth é louco para aparecer. Ainda mais na Verdade Sangrenta. Ele lê aquele jornal todos os dias.
De repente, o ,meu celular tocou. Era Daniduc transmitindo providências:
- Mr. Toth conseguiu colocar a moto lá dentro, disse o especialista. Vai fazer com que Trolé monte sem capacete para desenvolver algumas experiências - de cabeça descoberta, o pobre rapaz fica ainda mais à mercê daquele louco. Nossa idéia é tomar o comando e levá-lo para um lugar seguro. Lá, abriremos uma porta para ele sair.
- E que lugar seguro é esse? perguntei, suando frio.
- O Fim da Internet, disse Daniduc, e ficou esperando minha reação.
- Como assim, a Internet é não é infinita?
- Não, e Mr. Toth sabe disso. Ele quer colocar não apenas os blogs, mas os sites e portais dentro do gafanhoto e transformar tudo num chip do tamanho da cabeça de um alfinete. Assim, ele poderá dominar a rede, que entende por invenção do Mal, da Liberdade Absoluta e da falta de Lógica.
- Então ele me mentiu! Disse que só queria devorar blogs!
Daniduc riu da minha ingenuidade.
- Ele mente o tempo todo. Bem, vamos arriscar, já que os Provedores estão aqui no nosso pé. Só conseguimos neutralizá-los porque prometemos repassar um milhão de endereços para eles enviarem spams.
- E eles acreditaram nisso? Insisti.
Daniduc riu. O três especialistas, então, cada um conectado numa máquina, me colocaram on-line pelo ICQ descrevendo o que estava ocorrendo naquela delicada operação de guerra. Transcrevo a síntese das mensagens:
- Guiamos agora Trolé pela estrada virtual do Google, que é a mesma usada por Mr. Toth. Nessa avenida, milhares de cidades-sites se aglomeram em grandes portais, tudo rodeado de blogs favelas. Para conseguir o controle total da moto, abrimos uma estrada vicinal, que é montanhosa e rude, parece uma trilha. Mas Trolé está acostumado e consegue agüentar bem a viagem. O problema é chegar agora ao fim da Internet. Vamos ver. Escolhemos um dos sites com esse nome, que diz não ter link para lugar nenhum, então não há como voltar. Mr. Toth é muito lógico para agüentar essa barra e vai ficar perdido e deixar por alguns minutos de nos perseguir com aquelas caratonhas terríveis que criou para assustar os moradores do prédio sinistro. Essas máscaras tem poder e estão atrapalhando as manobras. Agora sim. Trolé está num beco sem saída. Aparentemente...Vai Trolé! Dá uma ré, porra. Não contavam com a ré. Ré total! Faça um cavalo de pau, vamos abrir uma porta para você sair! Vamos Trolé, firmeza, usa tudo o que tu sabe. Não conseguimos daqui ter plenos poderes para te tirar daí. Boa Trolé, é essa mesma, a porta do Cybershark.net. Vai, cara, anda.
- Iahuuuu, gritaram os três especialistas no meio da Sala de Máquinas e Ferramentas. E seguiu-se silêncio mortal. Mr. Speed veio ver o que se passava,. Descobriu tudo e expulsou-os de lá, ordenando que se desfizessem todas as ações desencadeadas pelo trio.
Mas era tarde demais. Como um pássaro, um avião, um foguete, Trolé irrompeu pela porta do Cybershark foi cair de cara num grupo de ambulantes da 25 de Março. Foi um estrago danado.”

RETORNO – Uau! Essa foi forte. O que será que Trolé, agora livre, vai fazer? Vai ver a namorada? Enfrentar Mr. Toth? Mais informações no próximo capítulo.

ANABELA ENTREGA TUDO

Recebo mais uma mensagem do Editor Fronteira, me contando sobre os desdobramentos desta história contada pelo avesso. Vejam que delicadeza de pensamentos, e o que se arma logo depois do final da conversa, quando El Gran Tercerizador encontra-se com um grupo poderoso de especialistas e mais tarde vai acabar num bar oculto perto do Copan, onde faz um apelo para uma dupla de misteriosos repórteres policiais que tudo sabem e tudo acham uma grande bobagem.

CEIA PERDIDA – “Depois que saí correndo do prédio sinistro, sentindo ainda o hálito podre de Radoc, corri para a pizzaria de Trolé para me atualizar sobre os últimos acontecimentos. Lá encontrei, aos prantos, a namorada do garoto, que lamentava principalmente a perda da perspectiva de uma ceia, onde ela seria o prato principal.
- Estou sabendo de tudo, Anabela, e vim aqui para ajudar.
- Mas como poderia o senhor ajudar? disse a menina, enxugando as lágrimas. Recebi a última mensagem de Trolé toda truncada, pois parece que Pimple conseguiu neutralizar o meu amor, que agora está todo imobilizado por bits e bytes.
- Mas o que dizia a mensagem? perguntei.
- Não entendi quase nada. Só vi que no meio dos gritos de socorro ele implorou para eu pedir a intervenção dos maiores especialistas em informática do Brasil, o pessoal de um tal Gulib.
Minha mente tomou-se de assalto pela imagem dos garotos bambas do Gulib. Conheci-os de uma festa em Perdizes, onde falavam linguagem cifrada, que eu tentava interromper com piadas gastas, onde se destacam palavras ridículas como buffer e plus. Os garotos me olhavam com uma certa simpatia, já que não eram arrogantes, faziam parte do Grande Movimento Pró-Linux, adversário fatal dos donos da rede.
- Deixa comigo, Anabela, você me deu uma luz. Vou procurar esse pessoal.
- Mas o senhor conhece eles? Por favor, diga para tirar meu Trolé de lá. Eu não vivo sem ele. E juro que nunca mais penso em comprar um computador. Ele está trabalhando demais porque quer me presentear no Natal com um lap-top. Custa quatro mil reais, como ele vai conseguir? Foi por isso que se meteu nessa encrenca. Me sinto tão culpada!
E desatou novamente a chorar. Consolei-a o que pude e fui até um apartamento em Perdizes, onde encontrei, em alegre confraternização, três elementos poderosos do Gulib: Daniduc, Pablo e RBP.
- Tu, por aqui? pilherou Daniduc, devolvendo um velho cumprimento entre os dois.
- Preciso da ajuda de vocês, disse.
E contei tudo. Eles imediatamente se prontificaram a tomar providências e foi cada um para seu computador. Mas voltaram em pouco tempo dizendo:
- Esse Mr. Toth amarrou direitinho as coisas, disse Pablo. Precisamos intervir na fonte, senão Trolé está perdido.
- E o que vem a ser a fonte? perguntei, já exausto de tanta ansiedade.
Eles se entreolharam. Eu não sabia mesmo nada. Perdi toda credibilidade quando confundi servidor com provedor.
- Precisamos ir até o reduto de Mr. Speed e seus cruéis Provedores, disse RBP. Pois Mr. Toth não apenas aprisionou o entregador de pizzas e o teu frila Hélcio. Eles fizeram coisa pior.
Lembrei os olhos quase orientais de Mr. Toth. Era isso! O pesquisador de gafanhotos tinha também abocanhado Marcelo Min , com Fotogarrafa e tudo.
- Mr. Toth seqüestrou Min a pedido de Mr. Speed, disse RBP.
- Vamos até lá, argumentei.
Concordaram, depois de se espreguiçarem bastante. Essa vida de computador é mesmo um porre. Em vez de ir para a praia, depois de fazerem milhões de migrações e quê sei eu mais, eles ainda estavam se prontificando a entrar numa encrenca sem tamanho.
- É importante para nós, atalhou Daniduc. Acho que a ditadura dos Provedores está por demais. Com Mr. Speed, a gente se entende.
Fui com eles até um escritório gigantesco no centro, coberto de paredes de vidro, onde Mr. Speed, cognominado de O Arquiteto (depois que todos viram Matrix Reload) mandava e desmandava, mas sempre aconselhado pelos Provedores. Para surpresa geral, fomos recebidos na sala do chefe. O problema é que ele estava rodeado de Provedores, autômatos parecidos com Mr. Smith, de Matrix, que faziam mecanicamente o gesto de entregar cartões e dizer a frase “assine o nosso, assine o nosso”.
- Ora, ora, ora, disse Mr. Speed, todo vestido de branco, para imitar o Arquiteto. Os gênios do Gulib. O que vocês estão pretendendo com esta visita?
Eles começaram a dialogar o que jamais entenderei. Mas descobri que as coisas iam bem, pois os três se dirigiram à Sala das Máquinas e Ferramentas.
- O que aconteceu? perguntei.
- Shhh, advertiu Pablo. Enganamos eles. Dissemos que íamos ajudá-los num trabalho complicado aqui, mas no fundo queremos é desativar Pimple.
Suspirei de alívio e saí de lá, pois só poderia atrapalhar. Acabei chegando no centro da cidade, perto do edifício Copan. Lembrei que Gim Tomes e o fotógrafo Adelino Nazario costumavam ficar por perto, tomando cerveja em algum bar. Não custei muito a descobrir. Me receberam geladamente, pois sabiam que eu estava sempre querendo propor projetos, e eles estava eram a fim de uma grana da mega-sena.
- Senta aí, disse Gim, e continuou a conversa.
A certa altura, interrompi. Eles ficaram em silêncio. Depois começaram a rir baixinho.
- Deixa de delírio, fronteirista. Isso tudo é armação entre você e aquele coreano Min, disse Adelino.
- O Min brigou com Mr. Speed e travou o Fotogarrafa, disse Gim. Agora é com ele. E o Toth deve estar por aí, magrelando.
Não acreditaram em mim. O que fazer para convencê-los?"

RETORNO - Não me pergunte, sr. Editor. Sou apenas mídia. Só retransmito mensagens. Nada tenho a ver com isso. Virem-se. Fico então aguardando os desdobramentos dessa história terripilante de Natal. Onde tudo isso vai acabar?

UMA VISITA A MR. TOTH

O Editor da Fronteira, El Gran Tercerizador, combinou uma trégua com o maquiavélico Mr. Toth, o pesquisador de gafanhotos. Conseguiu convencê-lo a deixar preso Radoc, o que conseguiu em parte, mas o argumento definitivo é que não havia mais ninguém na cidade e uma visita cordial para resolver o problema de Trolé seria uma boa pedida. Ele sabia que o cientista maluco queria platéia e alguém prestando atenção em suas teorias seria uma forma de passar o tempo na cidade morta Sampa 2003. Damos agora a palavra ao El Gran.

O AVESSO DO AVESSO – “Cheguei no prédio e a porta estava aberta. Entrei na recepção coberta de teias de aranha, onde não havia ninguém para me receber. Olhei o elevador, quebrado. Vi as escadas imundas, cobertas por um sebo grosso, e me arrisquei. O mais difícil foi pisar cada degrau como se estivesse atravessando a ponte pênsil de Macchu Picchu. Ouvia barulhos estranhos. Insetos, ratos. Algo terrível me esperava no último andar. Bati na porta e ela se abriu com a força do meu muque (e isso que bati de leve). Lá estava de avental branco e debruçado sobre a perna desarticulada de algo indecifrável o louco desenvolvedor de monstros. Toquei no ombro dele e não se mexeu. Ouvi uma voz atrás de mim:
- Esse é meu clone. Ele nunca atende a estímulos externos, a não ser os meus.
Senti uma sombra escorregando pelas paredes cobertas com fotos da 25 de março. Era um líquido viscoso, fino como pele, que escorregava mudando de cor, de azeite escuro para roxo vivo. Radoc! murmurei, apavorado.
- Hoje ele está de recesso. Dei-lhe uma dose extra de suco de asa de morcego, incrementado com Natu Nobilis.
Mr. Toth aproximou-se de mim e me olhou com olhos minúsculos, quase orientais, por detrás de suas lentes adornadas por aros redondos foscos.
- O que vem fazer aqui em plena véspera de Natal, sr. Editor?
- Você sabe porque estou aqui, Excelência. Quero libertar Trolé.
Ouvi então um baque surdo no sótão. O entregador de pizzas não se dava por vencido.
- Mas ele está bem lá, senhor. Eu precisava de uma cobaia para testar meu novo invento. Pimple, o gafanhoto mutante, é o blog dos blogs, e a tudo devora. Pois eu tinha um problema.
- E qual é esse problema, Excelência? (precisava tratar bem o maluco, pois eu poderia cair nas garras de suas invenções).
- É que todo blog contraria a lógica. Não dá para contar uma história de trás para diante. O leitor lê o final antes do início.
- Mas esse é o charme do blog, respondi, escudado nas lições magistrais de dois gênios, Marcelo Min e Gim Tones, que a esta altura deveriam estar cada um numa praia distante (ou talvez não, ou talvez não). O blog é uma revolução cultural e não precisa desse encadeamento linear que temos na literatura tradicional.
- É aí que você se engana, disse Mr. Toth. É possível reverter essa situação. Pimple vai devorar todos os blogs e depois vai dar um comando, que eu já programei,. E colocará tudo na ordem certa, começando pelo começo. Quem quiser acompanhar é só ir até o final do blog, lá estará a seqüência. Pois o que eu gosto é da Lógica, meu caro, da Lógica Matemática, de tudo nos conformes. Para que isso aconteça, invento qualquer coisa. Faço e aconteço.
Eu sabia que conhecia aquele sujeito. Tinha dado uns frilas para alguém parecido com ele. Olhei novamente ao redor e, surpresa! as fotos da cidade morta Sampa 2003 eram todas daquela frila louco, o Hélcio. Será que Helcio, de tanto pedalar a magrelinha pela cidade, tinha se transformado no cientista louco?
Mr. Toth desconfiou que eu estava pesquisando seus segredos e decidiu fazer um gesto brusco. Atirou-se à janela, que se abriu para um paisagem inacreditável. Sabem, aquele deserto do real de Matrix? Era pior.
- O que é isso, balbuciei? enquanto ouvia o som gutural de Radoc gaguejando seu clássico “nããão hááá vaaagas...
- Benvindo ao imaginário da cidade. Ela é assim, mas só os blogs tornam essa catástrofe um lugar humano. Por isso estou pesquisando essa criação infantil que é o blog, diário de adolescentes. Revolução cultural...bah
- Mr. Toth, disse ( avancei um passo). O que o sr. fez com fotógrafo Hélcio?
- Aquele tonto? Vivia dando bandeira na cidade que tinha inventado para si e seus amigos no seu blog Espinha. Por isso incorporei nele para poder ter uma apresentação física real neste mundo de fantasmagorias.
Tive mais um calafrio. Estava tudo perdido. Eu nas garras do pesquisador de gafanhotos, sentindo já o bafo de visky barato com gengibre pelo ar.
- Se o blog é o avesso, sou o avesso do avesso, recitou Mr. Toth, abrindo um sorrisinho enigmático. Tudo voltará ao normal. Olhe lá para fora. Veja essa passeata.
Era uma multidão que ensaiavam passos de uma parada, como se fossem um exército sem nome a vagar pelo deserto de real.
- São os Escritores Marginalizados, meu caro. Eles ficam fazendo passeatas pela cidade para chamar a atenção. Como ninguém dá pelota, eles acabam sempre no bucho de um blog. Se tudo der certo, no mais gigantesco dos blogs, o Pimple, o gafanhoto mutante. Quanto mais colocam palavras e fotos nele, mais cresce.
Os Escritores Marginalizados davam passos de ganso e dobravam os cotovelos, colocando as mãos na altura do peito, empinando o nariz.
- Eles não servem para nada, disse Mr. Toth. O mundo é das imagens, não das palavras. Eles não conseguem se desvencilhar da sua maldição, pois o final das suas histórias estão sempre no começo.
E aproximando-se novamente do meu rosto, gritou:
- Ninguém LÊ!
Saí correndo. Era demais para mim. Quando passei pela recepção, ainda ouvia os baques surdos de Trolé no sótão. Fiquei aliviado pois na rua não tinha passeata nenhuma. Apenas o corriqueiro: uma cidade enfeitada para o Natal, com pessoas cheias de sacolas andando apressadas e rindo. “Não sabem o perigo que correm, pensei.”

RETORNO – Vejo que, seguindo a maldição dos blogs, ninguém dá bola para esses acontecimentos. Ainda mais agora que todo mundo foi embora. Mas na próxima edição, El Gran Tercerizador fará uma entrevista com a mocinha abandonada. Anabela (para saber quem é, percorra o sentido inverso da história, descendo mouse abaixo). Foi o que ele me prometeu. Aguardem.

TROLÉ E O GAFANHOTO MUTANTE


Um pedido de socorro do entregador de pizza Trolé me convocou para uma ação entre amigos. Vamos retirá-lo do bucho de Pimple, o inseto-monstro desenvolvido pelo cruel Mr. Toth, o pesquisador de gafanhotos que conseguir domar Radoc, o Inominável. Os dois bandidos moram numa cobertura de um prédio sinistro. Sigam essa história de suspense, que retirei do blog Espinha (link ao lado)

INÍCIO DO PESADELO – Um anúncio no Espinha dizia, embaixo de uma foto do lugar terrível: “Esse prédio tem apartamentos de 4 quartos para alugar, não tem garagem e o aluguel gira em torno de $ 750, 00. Fica perto do Mercado Municipal. Tô fora, deve ter fantasmas e ratos nos corredores”. Pois logo nos comentários soubemos que alguém sabia de tudo o que se passava nos corredores. É o depoimento de alguém chamado Trolé:
“Lá mora Radoc, o Inominável. Passa de um apartamento a outro pelas frestas das paredes. É fino como navalha, horrendo como o pânico de avestruz diante de um vampiro. Radoc é a própria sombra e costuma puxar o brinco dos garotos cools que chegam para instalar algum estúdio para suas bandas fantasmas. Radoc emperra as fechaduras e limpa as poucas geladeiras que restaram de velhos moradores. Disfarça-se de porteiro e recebe os recém chegados com sua famosa frase, dita num som gutural-horripilante:
- Não háááá vaagas.
O único que teve coragem de morar lá, numa cobertura (adornada com fotos da cidade morta Sampa-2003), foi o cientista Mr. Toth, o pesquisador de gafanhotos. Mr. Toth conquistou Radoc ao dar-lhe, todos os dias, um suco de asas de morcego que tirou de seus inumeráveis potes de vidro. Mr. Toth substitui às vezes Radoc na recepção aos recém chegados. Ao casalzinho maneiro que pretende se mudar, diz:
- Aqui é jóia, pode subir. Depois ri, sacudindo os ombros.
Radoc e Mr. Toth, os reis da Mêda.”

PIZZA À MEIA-NOITE – Logo em seguida, descobrimos quem é Trolé e o que o atrai para o lugar sinistro: “Sou entregador de pizza. Tenho uma encomenda para o Natal: levar, à meia-noite, uma redonda para Mr. Toth dividir com Radoc. Brrrr. Não gosto de ir lá. O gafanhoto mutante, que está preso no sótão da cobertura, e atende pelo nome de Pimple, pode já estar pronto para o primeiro salto. Dizem que ele devora motoqueiros. Quem vai comigo? “ Apesar dos seus apelo, ele acabou caindo na armadilha, pois compareceu ao lugar sem acompanhamento de ninguém. Vejam o que aconteceu:
“Estou agora no estômago de Pimple, o gafanhoto mutante. Quando fui lá pessoalmente combinar a entrega da pizza no Natal, Mr. Toth apareceu com seus oclinhos redondos parecidos com os do John Lennon, avental branco de cientista maluco, cabelo espinhento e sorriso maroto. Mandou Radoc me pegar e me jogaram no sótão. Mas eu não sabia que Pimple funciona como um blog. Está até conectado com a Internet. Descobri a manha aqui de de enviar mensagens e a minha é: socooorrro! Como vou convidar minha namorada Anabel para a ceia do Natal, ainda mais que este ano ela seria a ceia? Mr. Toth, tenha piedade, eu juro que não conto mais nada, especialmente sua coleção de urânio enriquecido que o Sadam mandou para o sr. Mande o Radoc passear que eu preciso sair ...Socooorrro...Só espero que Pimple não devore minha motoca...ei, pensando bem, se eu tiver uma moto aqui posso ligar e sair em disparada. Má hora quando fui entrar naquele prédio! O duro é guentar essas caratonhas. Socorro, Gim, Karen, Min, todos vocês... “

O QUE VAI ACONTECER? - As caratonhas que ele fala são criações do terrível Mr. Toth. Quem vai ajudar o pobre rapaz? Como ficará a indefesa Anabela? Estará Radoc querendo aumentar sua influência e também raptar a mocinha? Ou Radoc só pode sobreviver no ar mofado daqueles prédios? Se a moto for devorada, vai funcionar dentro do Pimple? Meu Deus, que situação complicada. Ninguém se habilita?

RETORNO – Lu Felix me manda um cartão pelo correio que é uma graça, desejando felicidades este fim de ano para mim e minha família. Retomo contato com Júlia Zillig, brilhante repórter com quem trabalhei na revista da Fiesp. Rubens Montardo Junior promete declamar o poema Reencontro no próximo churrasco no Bar do Funcho, a poucos metros do rio Uruguai. Miguel Ramos, por favor separe para mim um pedaço “da diretoria”. Aquela porção não foi suficiente!

18 de dezembro de 2003

DOIS MESTRES DA PESADA



Hoje convoco os poemas favoritos do primeiro time. Um trecho do poema de Drummond e um soneto de Shakespeare.

PROCURA DA POESIA

Carlos Drummond de Andrade

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
Há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
Como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sobre a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram da noite as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo


A UM DIA DE VERÃO COMO HEI DE COMPARAR-TE?

William Shakespeare

A um dia de verão como hei de comparar-te ?
Vencendo-o em equilíbrio, és sempre mais amável!
Em maio o vendaval em ternos botões disparte
E o estio se consome em prazo não durável.

Às vezes, muito quente, o olho de céu fulgura,
Outras vezes se ofusca com a sua tez dourada;
Decai da formosura, é certo, a formosura,
Pelo tempo ou o acaso é enfim desadornada:

Mas teu verão é eterno, e não desmaiará,
Nem hás de a possessão perder tua beleza,
Vagando em sua sombra, o fim não te verá,

Pois neste verso eterno ao tempo, tu te igualas:
Enquanto o homem respire, e os olhos possam ver,
Meu canto existirá, e nele hás de viver.

A MUSA ANTES DA PALAVRA



Nei Duclós

A palavra dorme numa cama voltada para o nascente.
Ainda nem é palavra, nem som, nem nada.
Apenas existe esquecida de si mesma.
Mas toda a criatura tem o privilégio da alvorada.

Naquele despertar gostoso, antes de alcançar totalmente a lucidez diurna,
ela faz um barulho na boca como que gozando o sono
e a vontade de continuar na cama.
É quando ela sonha acordada nessa porta entre mundos,
nesse crepúsculo ao avesso,
nessa estrela antes de ser sol.

A palavra nem sempre gosta de tornar-se límpida, de banho tomado,
café posto na mesa.
Prefere muitas vezes o espreguiçar-se, a lenta mansidão dos braços
que evoluem em forma de blues,
quando ouve galos folk dylan guthries, guitarras perdidas
antes do heavy metal,
baterias que solam nossos corações que foram felizes,
trumpetes inimagináveis,
camas de gato da última sílaba de pink floyds
uivando para as ruinas.

A palavra, antes de acordar, vira sonata, piano, tambor e corda,
caixa de ressonância.
Aí levanta e algum treco horrendo martela no som do vizinho.

Por isso ela pensa sempre no dia seguinte, quando voltará
a ter esperança de um renascimento.
O único jeito é muddy waters e count basie misturados às frutas da manhã.
Quem sabe uma criança anuncia uma nova banda,
que nos faça esquecer o passado,
já que pode tocá-lo por inteiro sem despertar saudade.
Pode ser um joão gilberto no bar do Arantes, na praia do Pântano.
Um Walter Franco resgatando o mantra.
Um espesso rolling stones no céu de diamantes.
Um penny lane de carruagens.
Algo ainda perto, mas perdido. Algo, enfim, sem nome.

Por enquanto, para reverter o barulho, a palavra pia o gesto
que o artista descobre em cada traço, em cada curva do sonho.

RETORNO - Este é um poema feito sobre ilustração do artista Ricky Bols

16 de dezembro de 2003

O RIO NÃO MORRE


“ También se muere el mar” (Garcia Lorca)
“Aquele rio era um cão sem plumas” (João Cabral de Melo Neto)


Nei Duclós

Não se mata um rio
como não se enterra
um morro
Como a fogueira
não se põe no bolso
Como um leão
não pede socorro

Um rio terminal
é a soma da baba
do rebanho
viscoso no que tem
de sono
aéreo no que tem
de sonho

O mar recebe o rio
feito de escombros
O mar pode morrer
(Netuno exangue)
Não por obra do rio
que guarda o sopro
Envenenado talvez,
mas nunca morto

Um rio sobrevive
sem suas vertentes
Um rio pode seguir
sem ser corrente
Um rio não é a escama
de nenhum peixe

Ele será sempre o rio
da minha infância
O Uruguai antes
do saque
touro frente à lua
surra de gigante

Nesse rio sem fim
mora meu povo
Cobre de minuano ao frio
Charrua de invencível
lança

Não se mata um rio
O sol não cabe
numa estante
A eternidade acampou
e faz a ronda


REENCONTRO

Nei Duclós

Te reencontrei, cidade
E estavas à minha espera
como um pássaro sagrado

Tuas ruas abertas como asas
Calçadas varridas de memória
Anjos da minha guarda

Tuas mãos gastas pela demora
Teu rosto sem lágrima
Teus rios de eterna água

Te reencontrei, cidade
Como um filho tardio
o último que retorna

Estavas pronta, mãe que sabe a hora
Estavas forte, perfil de flor teimosa
Estavas maior, amor que não se dobra

RETORNO - O poema Reencontro está muito bem acompanhado na seção Cantinho do Poeta, no endereço eletrônico www.portaluruguaiana.com.br , graças a Anderson Petroceli, o criador cultural responsável pelo site e fotógrafo maior, profissional que sabe como ninguém revelar a dimensão mágica da geografia natural e urbana de Uruguaiana.

14 de dezembro de 2003

COMO SERÁ O ANO DO LIVRO


Não se trata de marketing, que disso estamos cheios. Nem de divulgar um ramo que agora estou metido até o osso. Falo daquele Ítalo Calvino estocado e ainda não lido, aquele Dom Quixote que te emprestei e não devolveste, aquele Proust interrompido no segundo volume, aquela capa dura que precisa colocar no seu velho Lord Jim. Falo de leitura, de companhia. Nada há para ler, a não ser livros. Basta olhar os jornalões dominicais.

MARIA RITA - Maria Rita chega, Elis se despede. Dois lados da mesma viagem, com diferentes caligrafias. No CD de Maria Rita, a intérprete que revela e inventa compositores, destaca-se uma obra-prima: “Veja bem, meu bem”, de Marcelo Camelo. O vai-e-vem, o leva-e-traz carrega Elis enfim para o Outro Lado – de sua mudez nunca nos conformamos – e nos aporta a filha que chega madura, despertando o milagre: eis que nos pegamos cantando, novamente.Maria Rita chega e todos a inundam de saudade, e não pode ser assim. O certo é recebê-la como um milagre e descobrir com ela o quanto temos ainda intacta a fonte da cultura brasileira, a mesma que resiste e tem uma continuidade alimentada pela grandeza. A chave do cd é “Encontros e Despedidas”, de Milton Nascimento e Fernando Brandt: “São dois lados da mesma viagem/ o trem que chega/ é o mesmo trem da partida/ a hora do encontro/ é também despedida. “ Quando Elis se foi, ficamos na plataforma, tontos de espera. Não houve tempo para despedidas. A chegada da filha significa o adeus de quem nos carregou para dentro da forja divina da canção. É a vez de enfim tirarmos o luto e ter fé, apesar dos problemas.

DA GUERRA - Leio enfim Clausewitz e descubro o óbvio: a guerra, diz ele no início do século 19 (1824) é a ampliação de um duelo, é impor a sua vontade contra a vontade do adversário, e para isso é preciso desarmá-lo. Costumam dizer a bobagem de que no Brasil nunca houve guerra. Parece que o mundo chegou com oito milhões e meio de quilômetros quadrados e disse para o brasileiro: “tó, porque tu é bunitim” . O território foi disputado cada milímetro, contra piratas, potências estrangeiras, traidores de todos os níveis, a ferro, facão, tiro e sangue. Os primeiros donatários, os caras que vieram fazer açúcar nos engenhos, eram obrigados por lei a ter pólvora, armas e chumbo estocados, como nos ensina a professora doutora Nanci Leonzo, da USP, no seu clássico oculto "Forças Armadas na América Portuguesa". A guerra da Independência do Brasil durou dois anos, de 1821 a 1823, com batalhas da Bahia até o Piauí, algumas com mais de 400 mortos, como nos ensina José Honório Rodrigues na sua vasta obra (cinco volumes) sobre a Independência. Há um longo histórico de cidades brasileiras bombardeadas, como Manaus, Salvador e São Paulo, esta em julho de 1924, quando canhões poderosos de 105 mm destruíram bairros operários, hospitais e fábricas. Houve saques por toda a cidade. Metade da população conseguiu fugir. A outra metade se refugiou nas casas e enterrou seus mortos no quintal. Paulo Vanzolini lembra que os portugueses tinham a expressão “limpar o rio”, que era matar índios para a região ser tomada. O Pantanal foi disputado palmo a palmo com a “hispanidad”, los hermanitos tão simpáticos. No Rio Grande do Sul, então, foi bala para todo lado. Quando falo em guerra no Brasil, todo mundo toca na mesma tecla, Canudos. Isso é lembrado porque houve um Euclides da Cunha, assim como a Revolução Francesa teve Michelet (que inventou a mística da revolução 40 anos depois da queda da Bastilha). Há uma dívida histórica no Brasil: o estudo profundo das Forças Armadas. Há muita coisa boa e muita divisão nessa área. Mas falta mais, além de uma disseminação da história da guerra no Brasil, para entendermos porque somos tão belicosos, porque um país tão grande, porque salteadores de estrada nos governam, porque nossos heróis (como os combatentes de Monte Castelo) são desconhecidos e porque até hoje costuma-se sepultar a História, como aconteceu recentemente, quando o aeroporto de Salvador teve seu nome, a data histórica do fim da Guerra da Independência na Bahia, 2 de julho de 1823, substituído por Luis Eduardo Magalhães.

RETORNO - Em 2004, leia livros. Pois 2004 será o Ano do Livro. Se assim sonhamos, assim será.

13 de dezembro de 2003

SOLDADO, LAVRADOR, POETA


Nei Duclós

O texto exausto se recolhe e no seu sono esquece a porta aberta, por onde entra a poesia. O poema pode ser noturno, ou assombrar a sesta antes das duas. É quando a palavra se supera, e não se explica. Quando se prosta, o beija-mão da prosa aprende que o verso é criação divina. O autor apenas sonha, de janela escancarada para o dia.

Ninguém gosta de partir sem deixar marca
Coloquei ferro no gado e azeitei armas
Parti menino com um canhão no ombro
Vi generais fugirem a cavalo pelo barro
E soldados trocarem de farda em plena luta
Vi bandeiras demais e a gritaria me cansou
Voltei para ver minha mãe que lá estava
Cuidando das crianças e da terra
Apareci com barba ainda rala, mas antigo
E decidi ficar para consertar a cerca

Ninguém gosta de ficar sem uma bala
À noite eu perdi o sono ouvindo passos
Eram javalis de palha, roendo aldravas
As palavras me escapavam como a água
Percebi que havia um morro derrubado
E fui tirar satisfações no povoado
Fui então atirado numa vala, porque bebi
E não sabia distinguir mais nada

Voltei a pé, contando os passos
Recebeu-me Luiza, aquela que não fala
Levou-me ao catre e interrompeu a faina
Só para me colocar o corpo enxuto e claro
Casei por um motivo nobre, o amor veio depois
Quando ela me deu filhos e pude então ver Deus

Só fiquei intrigado um dia quando uma tropa
que eu vi morrer voltou cruzando o túnel
Os fuzileiros vieram morder meus calcanhares
Mas eu não dei a ordem que os levou para a tumba
Um cão me farejava, quis rasgar minha alma
Fui para dentro de casa e pela primeira vez rezei
Na manhã seguinte a chuva inundou a colheita
E vi-me pobre novamente

Agora vou de novo para a guerra
Nenhum general vai fugir, não vou deixar
Voltarei com espólio, voltarei com prata
Quero semear o trigo onde hoje há pedra
Venham me dizer que não devo partir
Ninguém gosta de viver sem cravar a lança
E fazer um sulco na província morta

Sou soldado, lavrador, poeta
Tentem me tirar o sono, estarei alerta
Ainda parto em dois essa quimera
que fustiga a janela feito musa
Sou o duro amor que peita o inverno
Não faço flor nem fruto, faço trigo
Vendo no mercado o que liberta

RETORNO - Fiz este poema em parte inspirado em Sonhos, de Akira Kurosawa.

12 de dezembro de 2003

RELAÇÕES HUMANAS NO DESERTO



Este 2003, o ano da virada, foi de retomada, aprofundamento e invenção de amizades, uma palavra que está em desuso no que tem de sincero, e moeda corrente nas convenções sociais – e o espaço social hoje é a mídia, especialmente a mídia das mídias, a Internet. Meu testemunho passa por uma larga varanda de pessoas, onde procuro prestar atenção também no que deixo de fazer, por hábito do longo isolamento a que nos acostumamos.

RESGATE – Um vizinho da minha infância, Caio Saldanha, aos 59 anos me escreve de Porto Alegre resgatando aquela convivência dos anos 50, quando éramos pequenos – eu, menor do que ele – numa rua cheia de vida e brigas e festas e conversas e sonhos e discussões e confraternizações. Aquela rua Bento Martins que revisitei recentemente e vi as casas no mesmo lugar, algumas abandonadas, e outras ainda ativas, como a minha, com as mesmas coisas: o galpão nos fundos, que hoje é oficina e até mesmo (essa o Anderson Petroceli, que estava no local, não agüentou) o mesmo tonel cortado ao meio transformado em lixo. “Mas, tchê, é o mesmo latão”, dizia eu, sério. “Estavas indo bem até agora com tuas lembranças, mas essa foi forte”, reclamou nosso grande fotógrafo da fronteira. Apontei o latão de lixo antiquissimo e disse que era uma solução tão boa que dura até hoje. Fui olhado assim meio de lado, mas nosso amigo das imagens é um cara compreensivo e deixou para lá. Pois este ano tive o prazer de conhecer Anderson pessoalmente, assim como rever amigos que por lá ficaram, como Fernando Pereira da Silva, escritor que mistura memórias e histórias da cidade, que me confidenciava: “Sou árvore, fiquei por aqui”. Lá também revi Pedro Gomes, muito atento a mim e minha poesia, que me trata com a maior consideração, e que é pai agora de grande poeta – tive uma amostra belíssima num papel que ele me entregou, emocionado e orgulhoso como todo pai. E descubro que a uruguaianense Vera Ione Molina da Silva é escritora de livros premiados, alguns ambientados naquelas paragens eternas do pampa e da cidade que hoje habita a memória. Sem falar na visita ao poeta maior, J.A. Pio de Almeida. E tantos outros, que já citei aqui.

CONTINUIDADE – Destaco minha amizade com Leontino Filho, sensível poeta e cidadão de primeira água, que sempre me escreve cartas maravilhosas. Leontino me apresentou um poeta que ainda estou lendo, dada a magnitude da obra, e que é desconhecido, Annibal Augusto Gama, que lançou pela Funpe, de Ribeirão Preto “50 anos falando sozinho”, de 618 páginas. Trata-se de uma poesia magnífica, da qual destaco este trecho de seu poema Silêncio: “ O de que precisam todos/ é um grande silêncio/ que vare o dia, a noite, a madrugada/.../ e quando afinal já não se ouvir tanto ruído/ poderemos contemplar a nuvem que passa/ e o silêncio eterno dos astros no espaço não nos espantará.” Poema apropriado para a balbúrdia e gritaria de hoje, quando uma van de som altíssimo pode interromper o descanso noturno para, sob encomenda, fazer alarde do aniversário de algum sujeito desqualificado, como aconteceu hoje aqui perto de casa. O poeta Annibal, “na plenitude dos seus 76 anos” como diz Mario Chamie no prefácio, é um grande poeta que precisa ser lido e apreciado. Estou há um tempão com o livro (desde março), e o visito aos poucos, tomando pé desse trabalho primoroso.
Este também foi o ano que saí de um emprego onde fiquei por dez anos, a Fiesp, e de lá saí carregado de grandes amigos, como Luiz Carlos de Moraes, Luciana Felix, Daniel del Fiore, Odair Rodrigues, Rubens Toledo, Elisa Santos, Lourdes Rillo, e tanta gente que será difícil citar aqui sem cometer injustiças. Entrei num trabalho, a W11 Editores, que me traz novas chances de amizade, com autores ótimos que estão sendo publicados por lá, além de novos colegas de trabalho, todos sob a direção de Wagner Carelli, o criador dos projetos primorosos. Por meio da literatura e do jornalismo, aprofundei amizade com Moacir Japiassu e José Paulo Lanyi, entre tantos outros. Chega de citar gente. Parece coluna social. Mas no fim de ano ficamos todos assim, fazendo balanços.

LIVROS - Foi também o ano em que finalizei meu romance, meu novo livro de poemas, esqueletei meu livro de ensaios e memórias e ameaço cuidar agora do meu livro de contos. Abraço definitivamente minha vida aos livros, do qual jamais me separei e já decido: 2004 será o Ano do Livro. Se assim sonhamos, assim será.

11 de dezembro de 2003

O CRIME DIGITAL E SEUS OPOSTOS


Os vírus são a manifestação sinistra da covardia e do crime no espaço virtual. Eles despencam na sua caixa postal para derrubá-lo, por pura crueldade. O pior é que vêm disfarçados de apelos, alguns de pseudo-empresas, outros de produtos falsos, tentando ludibriar sua boa fé. O estrago maior é tirar da Internet o poder de fazer uma revolução cultural, maior e mais ampla do que qualquer outra. Sorte que existem mensagens em oposição a todo tipo de violência e que merecem ser lidas e repassadas.

PAZ NO NATAL - Ao contrário dos vírus e dos Spams horrendos, que chegam a toda hora, existem movimentos que se disseminam por via digital e que estão cheio de beleza e fé. Um deles é o Pax Christi (Library@paxchristi.net), que é universal e ecumênico, e tem mensagem especial para este Natal. Vou reproduzir aqui uma parte do texto que está sendo enviado em várias línguas.
“Orações e Votos de paz para Belém - Natal, 2003 / Brussels/Vienna/Schoeffengrund/Bern.
Estimados amigos: Pelo quarto ano consecutivo, a celebração do Natal se realiza num clima de medo para todas as pessoas que vivem na Terra Santa. Isso é resultado da violência contínua - da ocupação, atentados suicidas e operações militares – que tem causado muito sofrimento a população local e reduzido qualquer perspectiva de uma solução justa e pacífica para o conflito. A construção de um muro de separação agrava ainda mais o clima de ódio.
Nós, da Pax Christi Internacional, da Comunidade Internacional de Reconciliação (IFOR), da Igreja e Paz, e da Presidência da Conferencia de Comissão Justiça e Paz da Europa, estamos apoiando uma iniciativa de algumas instituições amigas de Belém – o Instituto Árabe Educacional (AEI), o Centro para a Resolução de Conflitos e Reconciliação (CCRR), e o Centro Wi’am. Essa iniciativa é um convite para todos os membros de nossas entidades enviem por correio eletrônico orações e votos de paz para as pessoas que vivem neste lugar tão conflagrado. Todas as pessoas e organizações que quiserem estão igualmente convidadas a enviar seus votos de paz por correio eletrônico a nossos amigos de Belém, antes do dia 25 de dezembro.
Os votos e orações podem ser feitos em qualquer idioma. Todas a mensagens devem ser enviadas christmas-message@paxchristi.net ; muitas irão diretamente a Belém, outras podem ser publicadas na página da Pax Christi Internacional (www.paxchristi.net).
Por favor, distribuam esta mensagem por correio eletrônico tanto quanto possível.
Leia sobre esta iniciativa em English, French, Spanish, German and Dutch
Saudações afetuosas, Etienne De Jonghe, Secretario Internacional de Pax Christi
Dr Hildegarde Goss-Mayr, Presidente honorario de IFOR
Marie-Noëlle von der Recke, Secretario Geral de Igreja e Paz.
(Rede ecumênica de comunidades não-violentas)
Dr. Josef Bieger-Hänggi, Presidente da Conferencia de Comissão de Justiça e Paz de Europa."

BELÉM – Essa é a parte mais sintética do documento. Mas também temos outro trecho, que diz o seguinte: “Apesar das difíceis e hostis condições resultantes da ocupação e do confinamento, Belém, lugar de nascimento de Jesus Cristo, é antes de tudo uma cidade de paz. Enviar votos e orações pela paz, por email é uma maneira sensível e muito importante de nos comunicarmos com toda as pessoas que esperam por ouvir uma voz de esperança. Ao mesmo tempo, pode ajudar a superar a desesperança sentida pela população local, mais grave hoje em dia do que antes. Nossos amigos de Belém apreciarão o envio destas mensagens como um gesto personalizado e espiritual de consolação e esperança na época natalina, e como uma maneira de chamar a atenção sobre e o isolamento severo imposto à comunidade de Belém como resultado da ocupação e do confinamento.
Todos as mensagens serão impressas e enviados de forma pessoal, serão utilizadas ainda como material educativo nas escolas, e poderão ser lidas dentro de um contexto inter-religiosa de oração dentro de templos e Igrejas.
Durante os domingos de Advento, a partir do dia 7 de dezembro, o Instituto Árabe Educacional celebrará vigílias inter-religiosas semanais em Cooperação com as Igrejas locais contra a restrição de movimentos produzida pelo muro de separação. Ao fim da novena, no dia 21, serão distribuídos as mensagens e orações enviadas, depois da missa na Igreja de Santa Catarina.
Durante a entrada do Patriarca na Igreja da Natividade, no dia 24 de dezembro, o Instituto Árabe Educacional pretende distribuir e ler os votos de paz e orações recebidos entre as pessoas reunidas na Praça da Manger. O mesmo será feito na tradicional procissão das velas de Beit Sahour em Belém no dia 25 de dezembro, na festa dos Santos Inocentes no dia 28 e, se as circunstancias políticas permitirem, na Marcha anual pela paz e justiça, no dia 31, organizada junto com os dirigentes das Igrejas e mulçumanos. Durante a época natalina, o Instituto distribuirá os emails recebidos em diferentes igrejas, mesquitas e escolas (através da rede de professores em Belém, Hebrón e Ramallah).
Numa oficina de artesanato do Instituto serão confeccionados cartões de Natal com algumas das mensagens recebidas. Vamos procurar ainda divulgá-los nos meios de comunicação internacional e local para chamar a atenção a este apoio espiritual que se realiza graças a ajuda de diferentes movimentos de paz.
Simultaneamente, IFOR, as Comissões de Justiça e Paz, as organizações membros de Pax Christi Internacional, membros de Igreja e Paz e outros amigos estão convidados a organizar jornadas de oração e vigílias locais, regionais ou nacionais em seus países. As mensagens e orações enviados a Belém poderão ser incorporados nestas orações."

RETORNO - Paz na terra. Precisamos demais. Vamos colocar esse tema na roda.

9 de dezembro de 2003

A VEZ DOS PEQUENOS


O jornalista sem nome, aquele que faz notas para sites de notícias da Internet, que vai a vários eventos com máquina digital e lap-top para desovar inúmeros textos e imagens em tempo real, que abastece de informações as personagens-griffe das redações, que tem seu texto de assessoria de imprensa assinado por algum colunista, que é primeiro da lista no rodízio bárbaro dos desemprego, que trabalha loucamente por um salário ínfimo, e que, à parte isso, tem todos os sonhos do mundo, possui a chave do destino em suas mãos: ele acumula o que os outros desperdiçam e na hora decisiva, estará pronto para fazer História.

ESPERANÇA – Há um clima pesado de desesperança no ar. Faltam perspectivas de melhora, vê-se a profissão escorregando para o fundo do poço, o Brasil sendo dilapidado em corrupção e violência, mas garanto à juventude: sempre foi assim. O que segura o Brasil no pincel é quando nadamos contra a corrente, é quando alguém esclarecido assume um posto de chefia, quando ele funciona como um imã para novos talentos, quando uma escorregada da mediocridade no poder deixa entrever, para o público, o quanto estamos perdendo. Basta um apresentador se destacar na mesmice nos telejornais, uma reportagem gloriosa de alguém desconhecido, a volta da velha forma em alguns jornalistas veteranos e pronto, está estabelecida a prioridade da vitória da esperança. Se Antonio Callado, como conta o texto pessimista de João Ubaldo Ribeiro no domingo no caderno 2 do Estadão, achou, no fim da vida, que o Brasil não tinha mais jeito, é sinal que o Brasil tem reserva de sobra para auto-superar-se. Se alguém como Callado, que lutou a vida toda pelo País, sente-se impotente diante do que ele acha ser inexorável, é porque temos cidadãos de fibra, lúcidos para entender a complexidade da situação. Callado é um sintoma importante: a de que podemos nos suprir de esperança quando tudo parece perdido, não por uma opção de otimismo sem base, mas porque temos uma cultura de preocupação com o futuro do Brasil e esse futuro está em quem acha-se pequeno diante da avalanche. Pode parecer um paradoxo, mas é assim que eu vejo: se somos capazes de nos desesperar, é porque temos bala para gerar nova esperança.

REAÇÃO - Vocês leram, no Comunique-se, a reação ao texto de José Paulo Lanyi que aborda a indiferença na nossa profissão? Vale a pena. Lanyi, o plantador de amizades, abriu largamente seu coração, sem nenhuma amarra. O resultado foi assombroso. As pessoas tem guardada uma quantidade enorme de lucidez, que por mais pessimista que seja, sempre é semente de novas esperanças. O importante é fazer como Lanyi: não imaginar qual seria o resultado, dizer o que pensa e sente e pronto. Vale para o relacionamento interno das redações. Você me desculpe, mas pior que isso não posso fazer (a frase imortal de Antonio Maria, diante de um produtor de TV que pedia sucessivamente para ele piorar o magnífico texto que tinha escrito). Eis uma boa colocação. Quatro eventos num dia: por que o sr. não chama a sua mãe para ajudar? Pode ser a porta da saída do emprego, mas se um monte de gente fizer, qual seria a repercussão? Acho que existe muita folga por parte das chefias porque se sentem impunes. Vá catar coquinho, essa pauta é ridícula. Tenho uma muita melhor. Essa reportagem de responsabilidade social inclui o toque de que tudo não passa de dinheiro público, que as empresas usam para promover-se? Esse dossiê não foi plantado? Essa materinha humana não foi feita no Natal do ano passado? Isso tudo pode ser dito depois de um repórter pastar muito. Ele tem cacife para se colocar. Aproveite para tentar impor algo, mas sem raiva nem falta de consideração (minhas frases aqui são apenas sub-texto, aquilo que impulsiona o verdadeiro texto). Tenho algo fantástico para propor: uma reportagem que ninguém ainda fez e que está pedindo para ser publicada. O chefe, se for decente, vai gostar. Se for ruim, vai querer assinar o teu trabalho. E se for execrável, colocará sua idéia no lixo. Mas no dia seguinte tem mais jornal. Volte à carga.

6 de dezembro de 2003

O TEXTO DA RECEITA


O objetivo não é dar receitas de texto, mas abordar a narrativa num setor da comunicação, a culinária divulgada em jornais, revistas e televisão. A comida não importa e sim o processo de cozinhar. Este deve ser encarado como uma operação de guerra. O tema serve aos objetivos desta coluna, que é falar sobre os fundamentos do jornalismo, em toda a sua diversidade.

CORRENTE - Um almoço não se faz com receitas de pratos, mas com um roteiro de atividades bem planejadas. Não se trata de pontificar sobre algo que não domino (o fogão), mas tentar decifrar essa arte por meio das palavras – e palavra é o meu ramo. Uma refeição é sempre feita das mesmas coisas, o que importa é como você faz – e isso serve para o jornalismo, em que você obedece aos fundamentos, mas obedece à sua maneira. Não se deixa queimar a comida, assim como não se escreve “com certeza”.

O que mais pega no fogão? O tempo. É chato perder tempo para dedicar-se a algo que deve ser rápido, prático, saboroso. Antes de ir trabalhar, minha mãe conseguia deixar tudo pré-pronto antes da sete e meia da manhã. Voltava às onze e meia para o acabamento, bem a tempo de a horda de filhos chegar da escola “variando” de fome. Meu pai conseguia fazer um almoço, no meio do mato, em meia hora no máximo.

O truque era não despregar os olhos do fogo, e dar uma blitz em tudo ao mesmo tempo, pois a comida é a extensão da tua mente e depende da quantidade de gestos que você consegue colocar na roda. E não fazia um prato só, era sempre uma demonstração da grande variedade da culinária gaúcha, que não se limita ao churrasco. Implico com os clubes de gastronomia, que se concentram nas frescuras e salamaleques, completamente fora das necessidades de um país feito no muque, cheio de necessidades. Aqueles diletantes ficam de avental e chapéu de cozinheiro fingindo-se de chef.

Meu chef é o inominável Queima-Dedo (agora ele está em Miami, onde é conhecido como Burn-Finger), e foi ele que me ensinou seus pratos favoritos, como o frango seja o que Deus quiser (você submerge um frango inteiro com tudo o que você tem em casa, coloca no forno e nas mãos do Criador); o carne na brasa esturricada por fora e crua por dentro (bom para espantar visitas que adoram pedir para você, que é gaúcho, fazer “aquele churrasco”); sem falar no purê de batatas com maçã esmigalhada nada-a-ver atrapalhando tudo, e no mau hábito de colocar orégano onde não se deve; além de sempre, invariavelmente, esquecer um pedaço de você sobre algo acima dos 500 graus, o que o deixa sempre com algo enfaixado e besuntado de Picrato de Butesin.

BATALHA – A cozinha como operação de guerra foi-me ensinado pelos verdadeiros mestres: meu tio Waldemar, que aplacava a fome das tropas do governo que lutavam contra os revolucionários nos anos 20, e era o rei do pão, do pastel, da galinha (a ave madura, mas não velha, ao contrário do frango, que recém saiu do ovo), do churrasco inesquecível de capincho na beira do rio; meu pai (seu dourado em postas à milaneza no acampamento, acompanhado de cerveja tinindo, era insuperável); e minha mãe (seu peixe desfiado com farofa não existe em nenhuma parte, senão na memória gustativa dos seus filhos). Vamos ao exemplo de hoje, em que fiz milho cozido (grande coisa!), espaguetti (ora, ora..) e chuleta (de boi) ao forno com batatas e tempero.

Simples, não é? Os pratos não estão em debate, mas sim a descrição que demonstre como fazer tudo simultaneamente, como um dominó. O importante é que antes de liberar a pia, você já coloca o milho para cozinhar e acende o forno. Na hora de lavar e colocar a chuleta na travessa, que será envolta depois com papel de alumínio, já coloque a água para a massa cozinhar. Pique a cebola, o alho e o pimentão e fatie umas batatas bem fininha para colocar tudo em cima da chuleta (azeite de oliva, pouco, ajuda). Pronto os aparatos do prato principal, coloque no forno. A água da massa já estará fervendo. Coloque o espaguetti nela e faça o molho (todo mundo sabe como é). O resto fica fácil.

Não sei se fui claro. Uma coisa engatilhada na outra. Não se debruce sobre sua massa como se fosse o Silvio Lancelotti, pois jamais chegarás aos pés dele. Recolha seu milho (fervido em panela de pressão, com um pouco de sal) e tudo está pronto. Para dar encanto, não deixe de cortar a chuleta antes de servir. Assim, vários pedaços de todos os tipos ficarão disponíveis – com e sem osso, com e sem gordura etc. Um guaraná diet com gelo e laranja lima fatiada completam a festa.

APELOS - Depois, invente um acervo cultural sobre o almoço meia-boca que você conseguiu, pois é assim que fazem os cozinheiros: como a glória deles é efêmera, dura enquanto dura a fome, eles inventaram toda essa tralha de livros especializados, fotos com caras sugestivas olhando pra a câmara etc. No fundo, os cozinheiros querem que os elogios dados na hora da mesa, quando suspiros fundos e expressões de espanto se misturam à voracidade de comer, tenham continuidade.

Como depois de saciados, seus convidados apenas fazem sinal de positivo perguntando pela sobremesa e o café, é hora de arrancar-lhes mais elogios, ameaçando-os que não voltará mais ao fogão se não sucumbirem aos seus apelos de falarem sobre o que acabaram de se deliciar. Portanto...boas refeições. Comam sem culpa. Sei que é frustrante, no fundo vocês queriam que eu desse receita do peixe desfiado com farofa da minha mãe, mas confesso que não sei fazer. Eu era muito criança na época e quando aprendi a preparar alguma coisa, era tarde demais.

RETORNO – Imagem desta edição: tirei daqui.

5 de dezembro de 2003

O ANO DA VIRADA


Entramos em dezembro e 2003 cumpriu a escrita. É o ano da mudança. Foi o primeiro round contra o grande cansaço acumulado desde os anos 90, aquela época em que, por falta de opção, voltamos a acreditar no que nos diziam. Agora, descobrimos que não adianta mais esconder-se para sobreviver. É o momento de ir à forra. É o que dizia Papillon, interpretado por Steve McQueen: “Hei, bastards, I´m still here!”

ESTAMOS VIVOS! – Você sonha com a liberdade e ela bate à sua porta. Você deseja o fim da prisão e a cadeia se abre. Você quer trabalhar com aquela pessoa que está sintonizada com sua cabeça? Determine-se. O chato do chefe quer te humilhar? Não deixe. Você vai ficar sem salário o próximo mês? Aposte. Alguém disse que você não vai conseguir? Ria. Conseguiu apenas passagem de ida? Embarque. Acha que a rotina está estragando sua vida? Rompa. Mas o ímpeto de jogar tudo para o alto não deve ser um gesto de regressão infantil, um deus-dará inconseqüente. A mente adulta planeja a sua revolta a partir da sua reflexão e sentimento. Não um planejamento matemático, mas uma previsão a partir da experiência, da seleção. O passo certo é dado porque seu coração não coloca outra saída. Convença-se de que sua experiência pessoal está imersa na tempestade coletiva. Aquele jornal no fim do mundo está esperando por você. Aquela grande redação ainda não sabe, mas você está chegando. Está na hora de substituir a estrela. É a sua chance. Você respira fundo, concentra-se e bate forte. A primeira oportunidade de você estender a mão para seu colega, por maior que ele seja, ou mais bem sucedido, é sua oportunidade de ouro. Não vá sentar em cima dos outros. Não abra caminho quando não lhe pedem. Fique firme quando tentam te empurrar. Coloque-se à altura de 2003, o duro ano da mudança. Basta uma navegadinha na Internet para ver o que a cultura mundial apronta: a pressão está gigantesca, vai tudo entornar em cima da velha realidade. A exclusão chegou a auge. Ao limite. Prepare-se. Qualquer lugar é o front.

DESPEDIDAS - Lindolf Bell apertou bem a pedra com tratamento artesanal em sua mão, que era uma pequena obra da sua galeria de arte Açu-Açu, e me deu de presente. Depois me abraçou, se despedindo para sempre. O homem da Catequese Poética, que foi para as avenidas e viadutos de São Paulo nos anos 60 recitar seus poemas, foi-se em 1998, mas eu fui embora de Blumenau em 1971, levando comigo aquele presente pequeno e simples. Lindolf Bell lutava por uma abertura cultural na sua cidade. Deu a maior força para que a peça Hair, com todo mundo pelado no palco, se apresentasse no único teatro local, e foi o que aplaudiu mais alto quando a cena maldita tomou conta de tudo.
Da janela do ônibus, vi Caio Fernando Abreu pela última vez, na altura do Masp. Muito magro, muito concentrado, muito digno. O amigo que me deixou inúmeras cartas, todas carinhosas e cheias de consideração, falando sem parar sobre nossa vida de escritores do extremo sul brasileiro, ele que era internacional e fez uma literatura sem concessões, dura, aguda, profunda. O ônibus partiu e Caio ficou lá atrás, na avenida maior, com seu passo que palmilhou o mundo, com suas mãos que acenderam incensos, com seu sorriso que parecia cheio de enigmas, mas era apenas sincero, e grandioso em sua forma cool, sussurrada, transparente.
Fui visitar Gilberto Duro Gick no seu apartamento e não sabia que era a última vez que o veria. Peguei as canetas coloridas e comecei a desenhar enquanto ele se arrumava. “Não mexe aí que dá choque”, disse-me, antes de sairmos pela cidade, que exibia grandes out-doors onde pontificava seu rosto de menino, de mãos postas sobre a mesa, fazendo propaganda de algo. Gilberto não era modelo, mas vestia-se e se comportava como um príncipe. Estávamos em Porto Alegre. Disse para mim: “Vou-me embora dessa cidade, Nei. E deixo nela meu retrato em todas as ruas.” Foi assassinado um ano depois, aos 26 anos. Foi por um tempo meu melhor amigo. Colegas desde a primeira série do ginásio, Gick era precoce e brilhante. Desenhava maravilhosamente. Tinha fama de volúvel e para contrariar essa imagem, fazia comigo longas audições de Beethoven. Falava mal dos ignorantes, dos medíocres.
Gilberto Duro Gick, Caio Fernando Abreu, Lindolf Bell: amigos em todos os momentos de mudança, irmãos na eternidade.

4 de dezembro de 2003

O HUMORISMO RADICAL


Fortuna ria sempre que via uma seção chamada Humor. Achava redundante. Na imprensa de hoje, o chamado humorista (no fundo, um jornalista que não paga-pau para as feitorias internas) conquistou o direito de dizer o que todos estão pensando. Quando acha graça da piada, o poder se preserva, e transfere o ridículo de que é alvo para o autor da bobagem. Só que nossos humoristas, cientes disso, viraram, por eliminação, os melhores editorialistas. Só na Folha tem três de matar: Angeli, Laerte e José Simão.

FORA DA ORDEM - A crítica ao gerundismo sob o nome de secretariês é uma das grandes sacadas de Laerte, o artista que nos deu o bizarro Homem-Catraca, super-heróis como o ursinho Pluft e desenha cenas como a do casal de cachorros que chega de carro para encomendar uma casinha embaixo do viaduto – e atira um osso como pagamento para o pobre do homem que recebe o pedido. Vale mais do que qualquer diatribe da página dois. Angeli é uma síntese, uma transcendência de todos os grandes cartunistas do Brasil – e alguns fora da fronteira- , e deles se destaca com identidade própria. Em crise permanente, Angeli aposta tudo num desenho, que cria como se fosse o último. O desespero do povo retratado no seu trabalho diário alimenta a grandeza do seu traço. Angeli é uma advertência, a ameaça do que a realidade representa ao tornar-se invisível diante da insensibilidade geral. Mas, se sua profecia é épica, sua postura é libertária. Ele esculhamba o mundo dos negócios, a mesa farta da política, a crueza escatológica da elite e retrata a humanidade que é transformado em lixo pelo sistema que encontra na prepotência a única razão de viver. Angeli pode ser visto como filho de Fortuna, mas nada deve a ele. Não tem seguidores, já que herdou a contundência de uma época assassinada e a carrega no coração como um lápis de ponta caprichada. Laerte corre por fora, conecta outros mundos, e nos surpreende porque é o mestre da cama de gato. Nada cabe em seu traço, que a tudo e a todos escapa. Não vamos tentar enquadrá-lo com palavras, porque isso seria deboche. É bom calar-se diante de Laerte, que mostra o quanto de sinistro há na normalidade. Em José Simão, a língua solta, a catequese contra a falsidade do discurso do poder apóia-se na contribuição milionária de todos os erros. Simão é o modernismo em pleno apocalipse. Refaz o século 20 com a boca escancarada oswaldiana, mas não presta tributo a essa forçada sintonia. Rei do bordão, Simão é rádio por escrito. Tem o escracho sonhado um dia por Ary Barroso, que nunca chegou a tanto porque era de outra humanidade e vivia em outro tempo.

METAIS NÃO-FERROSOS - Contei no programa Comunique-se a história que vivi como foca ao cobrir um seminário inteiro sem entender uma só palavra, e só descobri do que se tratava quando me lembraram anos depois que aquele era um encontro sobre metais não-ferrosos. Tem outra da coletiva do João Gilberto, quando eu fiz uma única pergunta para o Ouvido Absoluto: “O quê?”, perguntei, na maior cara de pau. Ao que o Gênio respondeu, escandindo as sílabas e de dentes cerrados: “Claus-O-ger-man”. Era o nome do genial maestro do inesquecível disco Amoroso, obra-prima mundial de todos os tempos. Para um chefe de arquivo num jornal longínquo onde me meti em minhas andanças, meu editor Jorge Escosteguy perguntou: “Tens a foto de Picasso?” Diante do silêncio do outro, Scotch arriscou: “Sabe quem é o Picasso?” O arquivista não se deu por achado: “Não sei, mas tenho“. Acho essa resposta absolutamente magnífica. Aplico sempre que falam de alguém muito importante que desconheço. As palavras são cheias de truques e armadilhas. Lembro meu pai aos berros no telefone em Uruguaiana, que ainda era daqueles antigos, a manivela, que tinha uma “cara” onde os dois grandes olhos vibravam ao som de uma campainha colocada no meio deles: “Fica na expectativa!” dizia meu pai pela milésima vez, acertando um negócio. O homem simples do outro lado da linha replicava, desanimado: “Mas onde fica isso, seu Ortiz? Abaixo ou acima do rio Uruguai?” Assim são as palavras, sustento e alegria das nossas vidas.


RETORNO - É preciso divulgar o endereço da segunda parte da entrevista para o Comunique-se (portanto, ela está toda no ar e não só a primeira hora do programa, como tinha dito antes). É no:
http://www.alltv.com.br/ondemand.php?arquivo=2003112919.wmv.

A PERGUNTA ENGATILHADA


Pânico é a palavra certa na hora da entrevista. Qual pergunta deve ser feita? Um roteiro prévio é obrigatório? Como prestar atenção ao que a fonte diz e ao mesmo tempo pensar na sua próxima intervenção como repórter? Os erros mais comuns são questionar de maneira genérica ou repetir as frases ouvidas para gerar uma desnecessária ênfase na conversa.

COMPOSIÇÃO CRIATIVA - A pergunta é um animal ferido, que está em posição de tocaia, mas não oferece perigo, a não ser para quem a enuncia. A entrevista mal feita é hoje a principal queixa das fontes. Perguntar é uma declaração de insuficiência, é precariedade pura. O recado de uma pergunta é: “eu não sei e preciso saber o que você sabe para eu poder trabalhar”. Não há posição pior. A não ser que seja marketing disfarçado de notícia. Aí você é tratado como um rei e recebe todo tipo de tapinha nas costas, além de uns dois ou três “esta é uma boa pergunta”. Para evitar desperdício, faça uma composição criativa: pesquise previamente seu entrevistado (consulte o oráculo Google, leia reportagens ou artigos - livros, quando houver - ou pergunte para quem sabe sobre o personagem a ser enfocado), faça um roteiro das perguntas baseadas em necessidades de leitura, ou seja, em coisas que ainda não foram publicadas ou estão mal explicadas. Preparado, quando chegar a hora, solte-se. Obedeça ao princípio do máximo da concentração com o máximo do relaxamento. Exercite-se articulando previamente a arquitetura da sua pergunta – que não seja rebuscada nem simplória, e coloque ambos, jornalista e fonte, nos seus devidos lugares. O jornalista é aquele que nada sabe, por isso vive perguntando – o que não faz dele um ignorante, mas um profissional da busca da informação. E a fonte é aquele que quer dizer o que bem entende e precisa ser capturado no pulo – se for de boa fé, vai gostar de ser estocado em coisas que ele nem tinha pensado antes; mas se for o contrário, pode rosnar.

ROLO COLETIVO - A entrevista coletiva cruza uma fase muito ruim. A apelação, a superficialidade, a pressa e a redundância atropelam o evento, o que acabou por provocar o domínio absoluto dos promotores sobre os repórteres. A cena mais tocante e triste da mídia são os microfones lado a lado em frente a uma grande autoridade, como se fossem bichinhos de estimação subservientes à Voz do Dono. Também não gosto de microfone na garganta de quem tem o que dizer ou é obrigado a falar. Acho bastante civilizado o esquema americano, em que o presidente aponta um dos jornalistas, escolhendo assim o interlocutor da vez. E o que é mais impressionante: os outros respeitam essa ordem natural das coisas. Aqui, quando não há submissão, há prepotência: os repórteres se atiram sobre as pessoas e uns contra os outros, alimentando assim os preconceitos contra a profissão, largamente explorados pelas novelas de televisão (jornalista e empresário são os vilões preferidos das novelas). Quando há coletivas mais tranqüilas, é comum o silêncio geral, o medo de arriscar. Numa situação dessas, pense na sua pergunta antes, formule-a com princípio, meio e fim (se for improvisar, pode falhar) e aguarde esse momento de silêncio geral e dispare. Será bem sucedido.

COMUNIQUE-SE – A entrevista que dei, junto com o jornalista Elias Awad, para Eduardo Ribeiro e José Paulo Lanyi, está quase completa no endereço http://www.alltv.com.br/ondemand.php?arquivo=2003112918.wmv. Foi uma tremenda força dada pelos responsáveis por esse brilhante esse portal de comunicação, que veicula o seu programa pela allTV – um canal que tem muito a oferecer, pela sua originalidade, criatividade e despreendimento. Este blog e mais meu site e minha poesia foram largamente difundidos e fui tratado com muita consideração, o que me deixou bastante emocionado. Destaquei o aprendizado do jornalismo na redação, a necessidade de se transformar o rádio num veículo melhor, a postura autoral do jornalista e sua visão de grandeza diante do trabalho (por menor que seja), e contei um pouco da experiência que eu tive em minha trajetória, toda ela pautada pela participação em novos projetos. Nada mais pode pedir um jornalista veterano como eu, que ainda tem muito por fazer e hoje dedica-se cada vez mais intensamente à literatura e aprofunda a reflexão sobre os fundamentos do ofício jornalístico. Faço votos que os leitores desta coluna acessem a entrevista e me digam o que acham dessa participação, pois apesar da minha antigüidade, ainda sou um novato em televisão - mesmo depois de ter feito programas especiais e por alguns meses ter chefiado o telejornal da Record, numa rápida passagem onde aprendi muito, e também enfrentei barras complicadas.

RETORNO - Meus blogs favoritos estão arrasando. Marcelo Min detona numa reportagem fotográfica sobre a destruição de armas de brinquedo em São Paulo, revelando a violência do evento diante da Inocência (http://fotogarrafa.blogger.com.br/); Helcio Toth comemora os 450 anos de São Paulo mostrando os espaços mortos da cidade, redutos de não-cidadania, onde a população se arrasta num ambiente urbano destruído (http://www.espinha.blogger.com.br/); BetoQ impacta com seu texto "Um convite à leitura onírica - Marcel Proust - quebrando os frágeis tabiques da memória", impressionante viagem rumo a um autor seminal (http://www.zadig.blogger.com.br/); Regina Agrella pinta, com os olhos, formas, texturas e cores em fotos inacreditáveis. (http://www.fotoblog.blogger.com.br/). Os blogs hoje são a mídia da radicalidade cultural. Trata-se de uma revolução, ainda tratada pelos veículos tradicionais como curiosidades.

30 de novembro de 2003

O CÍRCULO DA EDIÇÃO


Definir o perfil de uma edição significa implantar um sistema circular, onde a matéria de capa “pauta” o que vem a seguir, costura a maioria das páginas, desdobra-se em combinações afins, cruza referências para complementar leituras e consegue assim impacto e profundidade. As havaianas que estão na capa e foram reproduzidas como um selo ao longo da edição da Carta Capital desta semana são um exemplo dessa arquitetura, que apresenta-se com a lógica de uma construção, sem cair na redundância comum das edições feitas sem planejamento.

COERÊNCIA - Para conseguir esse resultado, é preciso que a equipe esteja sintonizada, mas não é só isso. Há mágica também, pois o que poderia ser apresentado de maneira dispersa, é colado de propósito pelo diretor de redação e os editores. É claro que há a previsão de que essa é a abordagem adotada, mas acontece também a incrível coerência da edição, que ao estocar inúmeros vetores, deságua no fechamento impondo-se com uma síntese que parecia oculta no início do trabalho. Nesta Carta Capital número 269, o foco é a má distribuição de renda do Brasil, onde um pé de havaiana de pobre faz par com outra, de milionário. O apartheid social e financeiro rebate na cobertura do encontro do FMI no Brasil, e encontra farto material teórico na deslumbrante entrevista mediúnica de Karl Marx. Tudo faz sentido quando há rigor e, neste caso, engajamento: o lado do jornalista é o da fidelidade aos fatos e a realidade brasileira é explícita na sua injustiça diária e violenta. Não há como fugir do sol, que atravessa a peneira. A edição aprofunda-se na coerência ao exigir também seriedade na edição de livros, quando José Onofre, o texto maior, garimpa ouro ao falar sobre O Verão em Baden-Baden, de Leonid Tsípkin (que eu desconhecia). A fragilidade das estrelas do entretenimento, a falta de competência nos transplantes de órgãos e tecidos e o perigo do alcoolismo funcionam assim como complemento (sem ficar em segundo plano) do vetor escolhido para costurar a edição. É preciso determinação e competência para conseguir esse tipo de resultado, que ao longo das edições torna-se cada vez mais apurado. Por isso uma reunião de pauta é um encontro de decisões coletivas, de combinações prévias, de reflexão, e não apenas uma operação tapa-buraco. O espaço a ser ocupado nas páginas que ainda estão em branco é uma responsabilidade muito grande para ser deixado ao vento do que se entende por notícia. Ou à deriva de interesses maiores, interferências que surgem de fora do jornalismo. A excelência do ofício é a medida de todas as coisas.

RÁDIO – No programa Comunique-se, no sábado na allTV (18 às 20 horas), falei, entre outras coisas, sobre rádio, já que descobri ter sido conquistado para a profissão graças a esse veículo, hoje em decadência. Eduardo Ribeiro me perguntou sobre a falta de consideração da publicidade em relação ao veículo e eu rebati que os radialistas e os empresários de comunicação precisam investir numa grade de qualidade (tudo pode ser visto no endereço http://www.alltv.com.br/ondemand.php?arquivo=2003112918.wmv). E aqui entra o tema da coluna de hoje: o rádio precisa também obedecer ao círculo da edição, obter coerência na sua plataforma de lançamento, criar motivos para a audiência aumentar e assim atrair publicidade. Para que os anunciantes aumentem, deve-se, além de criar, mostrar o que está sendo criado. Uma união das rádios para promover o veículo deveria tomar conta das televisões, dos jornais e out-doors. Para que funcione, é preciso motivos para isso. Não se pode fazer estardalhaço em cima de vitrolões ou baixarias. Jornalismo é um bom apelo. Programas culturais de alto nível (é disso que o povo gosta) também. Lembrei no Comunique-se que eu ouvia o Fausto Canova falando sobre e mostrando as jóias do jazz todas as noites na rádio Tupi nos anos 60. Também escutava o Walter Silva e seu Bo-65, programa do início da tarde que trazia Elis Regina para entrevistas. Assim, vai. Isso precisa ser resgatado. A decadência faz com que o fosso fique mais profundo: como aturar tanta propaganda? Com uma programação melhor, mais apurada, os reclames aumentam de preço e diminuem de freqüência. Também acho que deveria ter apoio estatal para que haja uma virada na rádio brasileira, que já nos deu momentos de ouro, que ninguém esquece.

RETORNO – 1. Ficou supimpa a edição que o Anderson Petroceli fez do texto aqui publicado Viagem ao Princípio do Mundo, que está junto às fotos dele no www.portaluruguaiana.com.br. Quem tiver paciência de ver um poeta diante do rio Uruguai, deve fazer uma visita.
2. Infelizmente, ouvi só uma parte do programa do poeta Ubirajara Raffo Constant na rádio São Miguel de Uruguaiana, que vai ao ar todos os sábados, das 10 às 11 horas. Mas soube por Rubens Montardo Junior que ele recitou No Acampamento, poema de No Mar, Veremos, e me dedicou duas músicas. Biratuxo é terra, é querência, é talento e inteligência do pampa.

29 de novembro de 2003

O JORNALISMO COMO ESCOLA

Se você assumir todas as tarefas do jornalismo, da pauta ao fechamento, da reportagem à edição, da coluna à primeira página, do caderno cultural ao noticiário político, da nota ao caderno especial, você está apto a colocar todo esse conhecimento não apenas nos redutos da notícia, mas em todo o espectro da comunicação. Não há melhor aprendizado, por ser completo, árduo e complicado.

UM RIO EM NOSSA VIDA – O jornalismo, como eu entendo e tive a oportunidade de me envolver, é uma formação humanista completa, pois aprofunda os princípios clássicos da convivência humana. É preciso ética, seriedade, talento e suor. É um trabalho de equipe, que depende do repasse contínuo de conhecimentos, pois a difusão do que se aprende viabiliza o trabalho e a sobrevivência de todos. Não faz sentido, portanto, uma redação dividida pela vaidade ou o oportunismo. Compartilhar é o verbo principal de um grupo de pessoas que se dedica a refletir, descobrir, prospectar e intervir na realidade. Para que ocorra a formação completa do jornalista numa redação, deve-se garantir o fluxo das funções, o rodízio de cargos, a comunhão de interesses, a admiração mútua, a crítica fundamentada, baseada em tudo o que a experiência formata não só no presente, como a herança de gerações passadas, que deixaram seu rastro de luz em inumeráveis trabalhos. Por mais complexa que seja a atividade jornalística, ela obedece a alguns vetores principais que garantem o bom funcionamento e a desenvoltura das redações. É assim em todos os setores: o rádio ainda define muita coisa na televisão e as revistas e jornais ainda seguem o que foi formatado há tempos, apesar das modernizações e mudanças. A divisão por setores do noticiário, os editoriais entre as primeiras páginas, a manchete principal, os cabeçalhos, a seção de cartas, o espaço nobre das grandes reportagens (cada vez mais raras) são definições que cruzam os tempos, significando que a herança, longe de ser uma velharia, é uma garantia da continuidade de soluções que funcionam. Por isso insisto tanto em linhagem no jornalismo, aquele rio de talento e experiência que passa pelo jornalismo ao longo do tempo e beneficia as novas gerações, que antes ou durante o desenvolvimento do seu trabalho, entram em contato com o que há de melhor do que foi feito antes deles.

SÍNTESE - É obrigação do jornalista veterano repassar o que sabe para quem está chegando. Não se deve deitar na experiência, nem vender caro suas lições. O fundamental é a transparência desse processo, para que haja recepção completa e retorno dos mais jovens. Ao mesmo tempo, o veterano acaba aprendendo muito nessa sintonia, porque a meninada sempre traz muita bagagem boa e não apenas entusiasmo ou inexperiência. Dar atenção a quem chega é também um ato de humildade: reconhecer que o sabido é um presente de quem estava ali quando chegamos, e que nunca se sabe o suficiente, já que o aprendizado é para todos, o tempo todo. No fundo, as coisas mais importantes são as mais simples, mas a simplicidade é uma síntese que demanda muita reflexão. Depurar a experiência num conjunto de claro de informações sobre o exercício profissional não deve ser motivo de exposição numa vitrina, mas um acervo exposto ao aprimoramento. A partir disso, quando mais nos aprofundamos nas tarefas jornalísticas, mais poderemos intervir em outras áreas. Numa assessoria de imprensa, por exemplo, fazer o serviço focado na informação e no atendimento ao que os leitores precisam é algo que trazemos do jornalismo. No marketing, a sobriedade do jornalismo serve de contraponto ao que a divulgação traz de superficial ou oportunista. A redação de artigos na comunicação empresarial bebe no que o trabalho dos editorialistas tem de melhor. Numa editora, a formatação de livros pode obedecer (não obrigatoriamente) ao que a criatividade desenvolvida numa redação soube ensinar. E assim por diante.

OS MESTRES - Com Mino Carta aprendi como fazer uma revista a partir do ponto zero, entre muitas outras coisas. Com Tarso de Castro, do que é capaz um caderno cultural e o que pode-se conseguir apostando em pessoas desconhecidas. Com Macedo Miranda, Filho, aprendi a editar textos de revista. Com Hélio Nascimento, o clássico crítico de cinema de Porto Alegre, a profundidade possível de se alcançar em poucas linhas de resenha. Com Wagner Carelli, a força da imaginação e das idéias próprias. Com Reginaldo Fortuna, a importância do cruzamento entre o clássico e o moderno, não só no departamento de arte, mas também na redação e na fotografia. Com Samuel Wainer, a adaptação veloz dos recursos escassos ao que se pretende transmitir. Com Cláudio Abramo, a dignidade de um diretor de redação, o poder da ética e a capacidade de um veículo impor-se pela postura do seu conteúdo. Com Múcio Borges da Fonseca, a necessidade de planejar uma edição sem abrir mão da emoção de trabalhar. Com Caco Barcellos, o despreendimento da coragem, um atributo pessoal que nele adquire uma intensidade que nem de longe podemos sonhar. Com Leonid Strelaiev, a fidelidade total ao talento a serviço da revelação – o que é nele não um ornamento, mas um princípio de vida, que leva radicalmente até o fim, coisa que também não ouso chegar perto, mas que me serve como parâmetro. De todos eles, recebi, como a praia recebe o mar. E a partir desse ponto, procuro devolver às águas da nossa profissão tudo que aprendi, só pelo prazer de ver os navios partirem novamente, em direção ao infinito.

RETORNO – Trechos do texto acima foram lidos por José Paulo Lanyi neste sábado, 29, no programa Comunique-se da allTV. Foram duas horas de conversa. Quero agradecer ao Lanyi e ao Eduardo Ribeiro pela oportunidade de apresentar minhas idéias e meu trabalho. Foi bom demais. Depois do programa fomos ao lançamento do livro de Lanyi "Quando Dorme o Vilarejo" (teatro, XXIV Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos-2002), quando tive a oportunidade de ganhar o autógrafo desse ex-morador de Itaqui e Alegrete, que na Paulicéia semeia a amizade como poucos.

28 de novembro de 2003

INDIFERENÇA, O ESPECTRO QUE MATA


É moda fingir responsabilidade social, mas o que pega de fato é a suprema falta de atenção aos outros, no país da exclusão e da má distribuição de renda, onde vemos amigos sumindo para países mortais e sem nome. Somos ninguém na mão do horror que é o monstro de olhos vazados que apelidei de Tantufas.

GANÂNCIA - Tatiana Palombo pediu para me despreocupar em relação ao seu longo internamento (um mês!), e eu atendi. Por quê? Porque é mais cômodo. Mas não é nada confortável saber de alguém muito próximo que se foi por falta de apoio, porque somos indiferentes, porque não fomos atrás. O editor de arte Luiz Carlos Moraes, ao comentar o texto sobre Tatiana aqui no Diário da Fonte, chama atenção para essa tragédia e ao mesmo tempo me conforta ao abordar o assunto: “A vida nos mostra coisas que não conseguimos enxergar. Por pressa, por materialismo, por ganância, por vaidades, não vemos o simples, o passageiro, o humilde. Não vemos as melhores coisas que passam pelas nossas vidas: a amizade, a consideração, o respeito, a admiração, e o carinho tão especial que você demonstrou em seu texto falando de nossa colega que se foi.” Você não tem um tostão no bolso, numa contingência? Isso provoca gargalhadas e sentimentos de superioridade em muita gente. Há uma certa alegria quando os outros não conseguem o mínimo para andar na cidade (e que cidade!). Somos os comodistas que se deitam no colo de Tantufas. Que, como a Morte no filme Sonhos, de Kurosawa, tenta te transmitir tranqüilidade, mas no fundo quer que você não enxergue que a salvação está perto, que basta dar mais alguns passos para descobrir a cidade cheia de calor e comida que estava encoberta pela neve. Se a gente se entregar, Tantufas nos envolve e nos mata. É isso o que queremos? Claro que não.

TEM TODAS - Vivemos em comunidade por um princípio básico: a união das pessoas assegura a sobrevivência e garante contra inimigos externos, soma forças para conseguirmos cruzar o tempo que nos cabe na Terra. Perdemos hoje o sentido de comunidade, como se não precisássemos uns dos outros. No fundo, estamos esperando que uma catástrofe nos lembre porque vivemos no mesmo lugar. A noite poderosa que nos assusta se não houver luz, a falta de pão e carne se houver plano econômico mal sucedido (como aconteceu com o Plano Cruzado, em 1986), o apagão que tudo reduz a estaca zero: os perigos se multiplicam no meio da violência e do medo. Por isso vivemos em comunidade. Mas esquecemos e somos pobres criaturas à mercê das forças do mal que nós mesmos desencadeamos. E como isso acontece? Por obra de Tantufas, o Mal sorridente e tranqüilo, que poderia muito bem ser resumido numa espécie de slogan da minha geração (e que foi o sintoma da sua catástrofe): “Não tem nenhuma!” Pois disse para uma pessoa dessa convicção: “Tem todas!” Tudo tem a ver conosco. Não falo em sentir pena de mendigo ou de participar de programas de caridade. Falo da importância que você dá para seus pais ou irmãos (o que não vale muito, pois eles são desdobramentos do eu), seus amigos novos e antigos. Não se trata de ajudar velhinha a atravessar a rua, é prestar atenção quando alguém lhe diz, como quem não quer nada, num grave sussurro: “Ei, estou morrendo, faça algo por mim”. Pois as pessoas morrem sem que a gente saiba como estender a mão. Tantufas é um palhaço sinistro que gargalha.

GRUDE - Desde o dia 10 deste mês estou trabalhando como Editor Executivo da W11 Editores. Ainda palmilho um território complicado, mas deu para sentir a importância de poder intervir nos produtos que levarão o trabalho de autores para o público. Ainda é cedo para avaliar. Há tempos Wagner Carelli e eu ameaçamos retomar uma antiga parceria. Hoje fui ao lançamento da W11 de O Momento Culminante, de Roberto Freire, o primeiro romance policial deste autor especializado no amor. Freire lembrou o que eu disse para ele na editora: que, ao checar o livro dele, meu olho grudava no seu texto e não conseguia escapar, e eu acabava me enrolando na checagem final do seu trabalho. Ele gostou e não esqueceu. Roberto Freire é Brasil.

RETORNO – Este fim-de-semana será especial para mim. Domingo, 30, das 10 às 11 da manhã, o poeta Ubirajara Raffo Constant, o popular Bira Tuxo, fará uma edição especial do seu programa na rádio São Miguel de Uruguaiana, sobre minha poesia. A São Miguel pode ser acessada via www.portaluruguaiana.com.br . E no sábado, 29, das 18 às 20 horas, estarei por duas horas com os amigos do programa Comunique-se, da allTV, como convidado. No fecho do programa, vou me dirigir à leitura do livro de José Paulo Lanyi, evento que divulguei na edição de ontem. Dia de agito e conto com a participação de todos.

26 de novembro de 2003

NA CASA DO POETA MAIOR


Em Porto Alegre, roçando a beira do rio, passei de táxi pelos bairros de Praia de Belas, Tristeza, Ipanema e Espírito Santo. Numa pequena rua que desemboca na avenida vizinha às águas do Guaíba, anuncio-me. Desce então, do alto de sua casa, pela ladeira suave que vai até o portão, aquele homem reservado e digno, que me dá a honra de receber-me em seu refúgio. Foi uma tarde de revelações.

O HOMEM DO CREPÚSCULO - Enquanto sobe de volta para levar-me até sua sala de estar, J.A. Pio de Almeida vai me mostrando as árvores que fazem parte do seu sítio, e que o protegem do movimento da rua, abraçando-o em folhas fartas, sombras tranqüilas, raízes saltando do chão com cheiro bom de terra boa. Aponta seu braço para o alto, para onde vão os troncos espalhando galhos, em gestos que o identificam com a natureza próxima, memória de uma rede telúrica de laços. Nosso Poeta Maior desdobra-se em gentilezas, apoiado pela tranqüila presença de sua esposa Naja, que todo o tempo nos cerca de atenções. Vou então para uma sala de móveis sólidos, arrumados em torno de uma ampla janela, fazendo vizinhança a uma bandeira antiga do Rio Grande do Sul e um quadro de um índio charrua montado e sacudindo a alma mortal da boleadeira. Tudo tem história na casa de Pio de Almeida. Não por ser de outro tempo, mas por ser uma opção consciente de coerência pessoal, que nos transmite segurança e conforto, assim como suas palavras, que saem com a maestria dos grandes narradores. O sol que cruza a folhagem de sua floresta particular lá fora atinge em cheio seu perfil. Só as palavras poderão descrever aquela cena, só o verbo encarnará aquela tarde, nenhuma imagem que seja criada por mim traçará um perfil mais nítido do que este, que recomponho de memória, porque assim tem de ser, assim trabalha o espírito do poema, translúcido cavaleiro a temperar a vida. “Qual o sentido da minha existência?” pergunta o poeta, sem cair no lugar comum: “O que significa esse espaço de tempo entre meu berço e meu túmulo?” E ele mesmo responde: “Sou o crepúsculo do gaúcho pampeiro, sou a testemunha daqueles homens que se foram. Não faço parte deles, pois muito cedo fui retirado do seu convívio para ir à escola. Mas posso te assegurar: tudo o que escrevo está impregnado daquele mundo que vivi na infância, e daquela gente que me criou é feito o sangue da minha palavra”.

O AUTOR OCULTO - O sol foi entregando os pontos, mas a claridade permanecia firme. O poeta me recita, em espanhol, o poema de Neruda que fala de alguém que sabia ler o alfabeto do relâmpago. Neruda é um dos autores que levaria para uma ilha deserta. Outro é Guimarães Rosa. E o terceiro guardo para mim, para não despertar certas curiosidades, mas é um autor que um dia será plenamente reconhecido. Ele tem a grandeza poética que toda antropologia deveria ter, e encerra mistérios que nenhuma outra obra possui. Fala-me então o poeta da sua paixão pelo Uruguai, lugar onde já teve terra, homem que é descendente de proprietários de sesmarias no início do século 19. Teve terra lá, mas vendeu. Agora passa um bom tempo naquelas bandas da fronteira seca, onde visita campos, vertentes, morros e marcos históricos. Diz de sua amizade com Breno Caldas, o mítico proprietário da Caldas Junior e de como entrou naquele que era o reduto maior do jornalismo da nação riograndense. De como teve de romper cercos, transpor cercas e tocar a boiada de suas palavras. “Nunca quis cargo nenhum, sempre quis ser redator do Correio do Povo”, confidencia-me. Olha para fora e conta sobre sua relação reservada e amistosa com vizinhos.

FRIAGEM - Chamo o táxi de volta e o Poeta Maior me acompanha novamente até o portão, depois de eu ter compartilhado a mesa da família, onde a filha única, casada e moradora numa bela casa que fica nos fundos da propriedade, faz par com o marido simpático e jornalista que ainda sente-se um estreante. O motorista, que estava perdido, atende aos nossos gritos e João Araújo Pio de Almeida então se despede de mim, privilegiado visitante daquela casa sagrada, onde vive o maior entre os maiores, o escritor que soube construir uma obra e nada exigiu em troca. Hoje ele vive tranqüilamente, sem nada a dever a ninguém, me recebendo porque sua grandeza extrapola os limites das distâncias e das admirações. Somos homens da mesma geografia e eu sou seu aprendiz. Chamo-o de Mestre, porque ensinou-me, antes de conhecê-lo pessoalmente, só pelo exemplo de sua obra, a importância da postura de um autor, a necessidade de comportar-se como um escritor clássico numa época que apostou na superficialidade e na cultura descartável. O carro parte e Pio de Almeida acena com todo o braço, como fazem os homens do pampa, estejam onde estiverem - nós, que fazemos parte da terra banhada pelo rio Uruguai e seus arroios, Ibicuí, Itapitocai, Rodrigues, Touro Passo...O som dos pássaros noturnos marca o território dos espíritos: Caa-porã, Mãe de Ouro, Homem-de-Preto. Vejo o trem parar no ermo de Guassu Boi. Lá está o menino João, pronto para cruzar a noite numa estalagem sinistra, denominada Friagem. Tem apenas nove anos. O universo o observa, como um gigante respeita um herói.

RETORNO – Recebo convite do jornalista e escritor José Paulo Lanyi para participar no próximo sábado do programa Comunique-se, na allTV (das 18 às 20 horas). Ao mesmo tempo, me faz outro convite: “Neste sábado (29), às 20h30, vamos fazer a leitura do meu texto Quando Dorme o Vilarejo, vencedor do Prêmio Vladimir Herzog em 2002. Essa atividade, sob a direção do Walter Sthein, vai marcar o lançamento da obra pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Depois da leitura, vou autografar o opúsculo, meu terceiro livro. A Livraria da Época é da nossa colega, a jornalista, escritora e editora Solange Sólon Borges. A livraria fica na Rua Braz Cubas, 429- Aclimação-Tel. 5539-7455. Te espero por lá.” Todos lá, prestigiando esse agitador cultural de primeira grandeza, que não deixa água parada nesta profissão que precisa de um empurrão para pegar no tranco.