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30 de agosto de 2018

SHERLOCK E OS BASTIDORES DO OLHAR


Nei Duclós

O criminoso fica nos bastidores do olhar. Não é notado, mas enxerga todo mundo e escolhe suas vítimas aproveitando-se dessa indiferença coletiva. Nas ruas, por exemplo, no meio da multidão, o motorista de taxi é muito solicitado, mas ninguém presta atenção nele; num casamento, todos são registrados nas lentes do fotógrafo, que fica atrás das câmaras sem ninguém saber quem é .

A invisibilidade do criminoso é a área de Sherlock Holmes, que para enxergar o que ninguém nota precisa usar seu palácio mental (baseado nas capacidades do gênio sérvio das grandes inovações, Tesla, de projetar tudo o que imagina na sua frente, como um filme), o microscópio onde detecta as mínimas pistas do que as pessoas fazem, a busca pela internet e os arquivos secretos do governo. O poder, representado pelo irmão do detetive, Mycroft, trabalha com a invisibilidade, concorre portanto com o criminoso. Por isso precisa de Sherlock, para descerrar o véu e dominar a situação.

A série Sherlock ( BBC, Netflix, ficha técnica no site IMDB) é fiel à minha máxima Todo filme é sobre cinema. Pois tudo é falso na Sétimas Arte: os roteiros, os diálogos, os personagens, os cenários. Menos o cinema, que é o único evento real, está exposto na nossa frente num acordo entre a obra e o espectador. Posto isso, há total e extrema liberdade para se fazer o que quiser com as histórias de Sir Conan Doyle, desenvolvendo a complexa relação entre o detetive e seu braço direito, Dr. Watson, seu arquiinimigo Moriarty, e alguns coadjuvantes como a sra. Hudson, dona do endereço famosos Baker Street 221B, Molly Hooper a especialista em cadáveres, a rede de mendigos que são seus aliados fiéis e impossíveis de rastrear e hackear, entre outros.

Há certeza da predominância do Mesmo na relação entre os homens. Todos apostam que Sherlock e Watson são um casal, velha releitura pelo menos desde os anos 1960, e muitas cenas parecem confirmar essa ligação homo. E há a identificação total entre o histérico Moriarty, que disputa, pelo crime, a posse de Sherlock contra o “casamento” deste com Watson. Faz parte da trama da invisibilidade: o que parece ser um segredo está na vista de todo mundo. Não é um crime, apenas faz parte do universo do detetive.Watson é o contraponto do olhar pesquisador do detetive. Watdson, médico de guerra, vislumbra o que aprendeu a ver. Ele não enxerga a trama qure está sendo investigada, reforça a invisibilidade do criminoso, mas serve de âncora para Sherlock na sua saga dispersiva e caótica, em que a dedução procura colocar uma ordem no caos.

A súbita notoriedade de Sherlock devido ao sucesso de suas investigações e as histórias escritas sobre ele e publicadas por Watson, contradiz a necessidade de ficar invisível para se misturar aos criminosos e assim poder decifrá-los, identificá-los e mandá-los para a Scotland Yard. Mas o extremo ego do detetive explicitamente psicopata não consegue segurar essa fama, que acaba o envolvendo e traindo. Ele enfrenta perseguição, prisão, exílio e morte (aparente, claro, pois tudo é falso no cinema).

Veloz, brilhante, contraditória. Uma série para ser seguida pela inteligência e a criatividade



28 de agosto de 2018

TUAS PALAVRAS

Nei Duclós

Gosto de saber por tuas palavras

Que não são tuas, são por onde andavas
E foste recolhendo pelo arrasto
Como o pescador que teima em sua arte

Escolhes as melhores, não as mais bonitas
Pois as falas ornamentais são enjoadas
Vale as que se prestam ao tom da narrativa
Que é teu dom, contador de rudes causos

Encilhas a história no trote da manada
(o mundo em que vives e pões um teto)
Todos os moços já fizeram roda
É o tempo que pousa em teu velho pala

Muitos silêncios pontuam junto ao fogo
Por prudência para lembrar toda a verdade
Confundem com suspense , mas não finges
És como farpa de mourão costeando a tropa

Na noite profunda o mistério se aproxima
Quer ouvir o desfecho, o final na encruzilhada
O tinir da espada, o amor que na garupa
estende o corpo sobre o cavaleiro alado

Há sinos e sopro de valsas e marchas
Uma aventura deixou um claro rastro
E tu, gigante, tudo nos confessa
Trancamos a respiração em tuas águas

Nei Duclós

27 de agosto de 2018

O INTRUSO

Nei Duclós


Você é uma outra pessoa
Que já existia sem que eu visse
Agora descubro o papel estranho
Desempenhado pelo amor, o intruso

Você faz jogo de cena
Distribui diálogos sem testemunhas
A toda hora me corrige para manter distância

Procuro lembrar a origem do meu engano
Foi o teu rosto, tua vertigem
E eu que sempre temi altura

Hoje passo em vão por tua rua
Um cão vagabundo me persegue
Escuto palmas, alguém se manifesta
Depois emudece, como o coração à toa não se aproxima



ÚNICO TESOURO

Nei Duclós


Recolho-me ao silêncio, único tesouro
Que o mundo perdeu em criminosa obra
Encontrei-o depois de árdua resistência
Estava em mim, num bosque da memória

O fim do barulho coincide com a prece
Gritos do remorso viajaram para fora

A palavra só vinga se houver vitória sobre o habito
Em usá-la no tempo sem moldura própria

Lacônico, prestes a mergulhar na sorte
De ser silente para cerzir a barra
Que se esgarçou de tanta repetir-se em sol
Me concentro dentro do que sou mais forte

Mas estou vazio e a criação espera
Que eu encontre a nota primordial
Levará tempo, talvez depois que a alma
Perder essa grossa camada de retórica



25 de agosto de 2018

FINA FLOR

Nei Duclós


Acostumada à lisonja
Leitura que confunde o meu assombro
frente à fina flor da tua beleza
Reinas agora no ritmo das grandezas
Tendo perdido o vínculo de um acordo
Que chamamos de amor, mas era equívoco

Não adianta tentar reverter a ruptura
que tornou teu trem ponto de bala
Nem rir do que fiz, tão sem aprumo
Misturando meu querer com tuas prendas

Tenho pena de quem hoje alimenta
O ego que tomou um outro rumo
Em vez de fibra, mulher de voz brilhante
Viraste demagoga da tua imagem

Lamento ainda mais a minha sina
De ter interferido por conquista
Hoje amargo os despojos de um conflito
O sonho de sentir longe do alvo



21 de agosto de 2018

UMA VIDA DE ENSAIOS E CRÍTICA LITERÁRIA

Nei Duclós

Acabo de fazer o prefácio para a edição italiana do primeiro romance do saudoso amigo Julio Monteiro Martins, A ÚLTIMA PELE. Essa é uma atividade permanente que exerço desde 1976, quando estreei na Veja com uma resenha sobre Maíra, o romance de Darcy Ribeiro. Meu editor na época era outro amigo importante, Jorge Escosteguy. Pessoas que me levaram junto ao longo de uma carreira de altos e baixos,. toda ela dedicada às palavras.

Pessoas fundamentais como Wagner Carelli, que continua na ativa com novos projetos e que me levou para a produção de textos sobre Borges, Simões Lopes Neto, Rilke. Editores de primeira, como Dorva Rezende, que me abriu as páginas do Diário Catarinense, onde escrevi sobre Cecilia Meirelles, Ivan Turgeniev, entre muitos outros. Ou Carlos Willian Leite, que no Jornal Opção e na Revista Bulla abriu espaço generoso para minha produção ensaística.

Essa abordagem permanente da produção literária de contemporâneos e clássicos faz parte do ebook, AS RUÍNAS DO DISCURSO. Reúne textos publicados em revistas impressas, como Veja, IstoÉ, Senhor (da Editora Três), virtuais, como Cronópios, Revista Bula, Digestivo Cultural, em jornais como Estadão, Folha de S. Paulo, Zero Hora, Jornal Opção, Diário Catarinense, em prefácios para editoras como a Globo, e a Atica, além de blogs e sites. A diversidade da divulgação nesse largo espaço de tempo tem um vetor principal: são textos não tradicionais, adaptando as descobertas de grandes mestres sobre a linguagem, como Barthes, Foucault, Borges, Ezra Pound, e ousando imaginar um território fecundo de ideias sobre a prosa, a poesia e a História.

São muitos autores: Flaubert, Tolstoi, Isaac Singer, Cecilia Meirelles, Alejo Carpentier, Victor Hugo, Garcia Marquez, Raduan Nassar, Maximo Gorki, Turgeniev, Javier Cercas, Mempo Giardinelli, Lampedusa, Monteiro Lobato, Graciliano Ramos, Moacir Japiassu, Cícero Galeno Lopes, Darcy Ribeiro, José Onofre, Francisco Coloane, Rilke, Borges, João Cabral, Neruda, Bruno Tolentino, Henry Miller, Rubens Jardim, Rodrigo Schwarz, Adélia Prado, David Toscana, Edward Said, Marco Celso Viola, Joaquim Nabuco, entre muitos outros. São 209 páginas de um livraço, que faz parte da CAMPANHA DO LIVRO em comemoração dos meus 70 anos a serem completados, se tudo der certo, em outubro. .




RETORNO - Adquira seu exemplar. Pelo Messenger, mensagens do TT ou email neiduclos@gmail.com

AS RUÍNAS DO DISCURSO
ebook, 209 pgs.
Ensaios
Nei Duclós
R$ 30

LONGA UTOPIA


Nei Duclós

Perdemos o vínculo
aos poucos, como num crepúsculo
Como a lua some na manhã noturna
Devagar, caindo, anel no poço
E fica o rescaldo, o brilho de um desastre

É o que guardamos, esse momento após a tocha
ser mergulhada, abrupta, sobre o lago
O impacto da ausência a escurecer o mato
que antes oferecia o abrigo, hoje deserto

Saímos do cenário, mãos divididas
que sonham com a união, longa utopia

A memória do amor é como a brasa
Reacendida se não houver vaidade
E formos fiéis ao que nos mantém com vida



19 de agosto de 2018

CONFISSÃO DO ESPANTO

Nei Duclós


Estou aqui no meu pedaço
Plantas, muro, pio de pássaro
Tudo o que confina o sábado
Limbo de promessas, troco da memória

O céu toldado por uma colcha cinza
Não permite Vésper nem sequer a lua
Gravo o instante para cobrar mais tarde
Vivemos para que? se fica só no esboço

Esse é o desafio, gerar confronto
Entre o vazio real e a confissão do espanto



CHANCE DE MUDANÇA


Nei Duclós


A decepção é natural
como o fruto apodrece depois que tomba
A lua de mel engatilha o escândalo
nas desavenças que arruinam a receita
A relação azeda e nos conformamos
Ou partimos cada um para uma história

Por isso duramos pouco
E tudo fazemos pela brevidade
Trilha em penhasco, maratona de drogas
A longevidade é a dor de uma outra pele

Forever young, diziam os suicidas
Com pavor da chance jogada fora
Morte em vida, o sofrimento
Contraria o amor e suas promessas

O segredo é a surpresa do projeto
quando a beleza migra para o alívio
Sou o que sou, fracasso de uma espécie
Mas me esforço pela flor que ainda recebes


18 de agosto de 2018

OUTRAS CRIATURAS

Nei Duclós


Uma água-viva navega o céu da Jordânia
Seria uma nave? Ou estamos no fundo do mar numa redoma?

Luzes em escotilhas sobre edifícios no México
Uma roda enorme flutua vista pela janela de um voo
Algo esponjoso e com vida própria desce no interior britânico
Discos transparentes se camuflam dentro de nuvens

Seriam veículos de outros mundos
Ou as próprias craturas, sem ninguém dentro
como se você desistisse da cabine e se transformasse no trem?

Tudo isso vi em vídeos
Em vez de visitas não seria apenas auditoria?
Estão nos monitorando
Nós, peixes inconscientes do aquário



O DIA ACABA

Nei Duclós


O dia acaba junto com o poema
Sol da palavra que se recolhe
Vai brilhar no sonho enquanto for escuro
É longa a noite no quarto que dorme

Tenho insônia, meu corpo pesado
desperta o pesadelo
Teço a vibração de alta voltagem
Pulôver do inverno, frio de grosso pano

Passa da hora, no quintal sujo
Late a solidão para a gelada lua
Memória estragada pela ficção
Pontes suspensas no rosto da montanha

Não permaneça neste lugar medonho
Me dizem numa espécie de autoajuda
Aguardo a alegria que trouxe da coragem
Algo ainda incerto, mas dentro do futuro



16 de agosto de 2018

FRESTAS DO LUAR

Nei Duclós


No linho azul da palavra
Costuras o que te serve
Roupa de verão suave
Jardim com desenho breve

Vivemos à parte, num tempo de mansa espera
Ativos como sementes em busca da primavera
Tens o rosto como em pinturas severas
Que destoam, trigo maduro sobre as pedras

Ao contrário navegamos em águas misteriosas
Os remos nos levam para ilhas desertas
Lá seremos alimento sereno
Para plantas e animais recém libertos

Pois tudo nos concede a poesia
Muito acima do destino prosaico
Ao partir deixaremos estas frestas
Que permitem ao luar conservar sua glória



15 de agosto de 2018

INVENTORES

Nei Duclós


Já que nada sobrevive
fique a palavra de sobreaviso
Último sinal antes que os cientistas
decretem o final em forma de dilúvio

Teorias que marcham para o caos
Linguagens que viram ruídos
E se refugiam em forma de poeira
Luzes cadentes, esporos fluidos

Outra não é a origem
do maná em queda no deserto
Que alimenta os escribas apressados
Os rapsodos a inventar mundos
com rabiscos sobre os joelhos

Fazem poesia. As leis eles deixam para os algozes



14 de agosto de 2018

AOS 70: CAMPANHA DO LIVRO

Nei Duclós


Falta ainda um tempo para eu chegar aos 70. Se tudo correr bem, em outubro próximo. Aproveito o número redondo para agradecer a força que tenho recebido de tantas pessoas que amam a literatura. Curtir, compartilhar, comentar e adquirir meus livros tem sido a realização de um sonho de toda a vida. Há mais de uma década estou mergulhado full time neste ofício (que comecei a exercer desde meu primeiro poema, aos 9 anos). Somo já quase trinta títulos entre poesia romance contos crônicas ensaios memórias. A escolher.

Nestes dois meses vou postar detalhes de cada lançamento para renovar o convite aos que gostam de ter em seus acervos alguma seleta em forma de impresso ou ebook do que publico diariamente.

Muito obrigado.

TRÊS IMPRESSOS NA MESA

Tenho em meu escritório de trabalho exemplares de luxo, produzidos por grandes profissionais da arte, como Luiz Acácio DeSouza e Juliana Duclós. Eis 3 bons motivos para receber em casa estes lançamentos, cada um na sua especialidade.

A segunda edição do cult de poesia OUTUBRO, com fortuna crítica e novas apresentações de Juarez Fonseca e Cláudio Levitan - os heróis da primeira edição de 1975/6 - reproduz o visual inesquecível do original. Uma raridade revisitada. R$ 38 com frete incluído. Disponível também na Amazon.

Os contos e crônicas de mar e pampa de O REFÚGIO DO PRÍNCIPE abordam o impacto das paisagens e suas revelações ancestrais. Um lançamento da editora Empreendedor. R$ 28 (também com frete incluído).Disponível também na Amazon.

O projeto vencedor selecionado pela Petrobras Cultural - o romance TUDO O QUE PISA DEIXA RASTRO é uma saga de ação nos bastidores da História do Brasil. Uma pesquisa de 20 anos: ficção com bibliografia! R$ 38 com frete incluído.



13 de agosto de 2018

ANDARILHO

Nei Duclós


Não era para mim, disse ela,
mas para ti mesmo.
Erraste o alvo pois fugiste do que és,
para ser este pálido itinerante.

Hoje mendigas na estrada
e te atiram versos, por piedade.
São teus, que um dia joguei fora.
Devora-os. Ainda estás neles,
mágico sem morada, andarilho de palha.



RODÍZIO DO VENTO

Nei Duclós


Um homem não faz nada sozinho
Tem a terra, sua base de arrimo
A fonte, que se transforma em vinho
As estrelas e a lua, noturna parceria
As nuvens, no rumo da serrania

Seu sustento é ser a companhia
Do que realmente importa, mulher e filhos
O trabalho faz parte do trajeto
Assim como o fogo, fruto do inverno
e no dorso do jardim, o canto das roseiras

O homem é a ponta de um sistema vivo
Rodízio do vento em tornados cíclicos
Espiral no deserto pontuando beduínos
Solidão que se deixa levar de carona
Cavalgando o comboio em direção ao destino



12 de agosto de 2018

SOMOS O CINEMA

Nei Duclós

Seríamos pobres não fosse o cinema
Não houvesse esses rostos de antigas cenas
Que moldaram nosso gesto e nos ensinaram
Como se pega alguém para dar um beijo

Seríamos solitários como bichos na noite
Sem esperança que uma hora amanheça
Não poderíamos dançar nem vibrar no desfecho
Quando enfim começa a subir o letreiro

Não teriamos assunto em nossas conversas
Contar um filme desde o começo
Arriscar um palpite sobre o roteiro
Escolher os melhores protagonistas

O que seria de nós se não houvesse as cadeiras
Onde repartiamos o sonho, o riso e o choro
Se não houvesse a tela onde fomos gigantes
Heróis e vitimas do nosso dono, o tempo


10 de agosto de 2018

ROUPA DO AVESSO

Nei Duclós


Uso roupa conforme o clima
Camiseta se estiver frio
Jeans em dias de calor
Camisa social para sair na chuva
Terno e gravata quando venta

Assim contrario a metereologia
E aviso que também tenho lá minhas temperaturas
Nas gavetas guardo os sapatos
E os poemas dentro das meias

Sou autodidata em falta de noção
Os cães me ensinam bom comportamento
Mas não assisto as aulas
Troco os estudos pelo recreio

Hoje vai nevar 
Hora de colocar calção de banho



LUZ NO INVERNO

Nei Duclós


Tudo o que eu disse alimenta a fogueira
Mas não é a história que conta
Porque em cinzas se transforma o presente
E o que preciso dizer é a labareda

O frio é eterno nas tramas do pampa
Não basta a lã, o café quente
O teto impermeável, a manta uruguaia

O que mantém circulando o sangue
Não é a palavra recorrente
Mas a obra do verso imperfeito
Que vem à luz no coração da noite



9 de agosto de 2018

GUERRA PERDIDA

Nei Duclós


O dia jamais será perfeito
Por mais direito que esteja o dia
A roupa limpa, a casa abastecida
As contas pagas, o melhor do livro

É como o entardecer cinza com chuva e granizo
depois do dia claro
É como soco no momento do sonho
É a falta de quem partiu quando não devia
E que fica ferido ao teu lado
para sempre

Ah, dor, escolhes quem não soube chegar a tempo
E deixou-se ficar
sem impedir o ataque

Sou a memória dessa guerra perdida
Sem honra, a sepultar o coração que foi-se
Quebrado pela vida que não lhe permitiram



8 de agosto de 2018

NO LIMITE

Nei Duclós


Cheguei ao limite do poema
Como antigamente o mar se dissolvia
Quando o navegante alcançava a linha
Que o mapa indicava como enigma

Não é permitido voltar nem ir adiante
É apenas um repouso em ventania
Fico imóvel enquanto o barco treme

É onde estou, trovador que perde a lira
E descobre a inutilidade do seu canto
O cosmo te abandona na conquista

Fico só como um deus marinho
Que cuida dos corais em bruto exílio
Não aguardo sinais de mãos humanas

Mesmo as criaturas nos abismos
Possuem companhia e não se extinguem
Duram para sempre, porque nada importa

Ao contrário de mim, que ainda insisto
Em achar o verso submerso
Que rompa o cerco, mas não quebre o vidro



7 de agosto de 2018

TUDO É INVISÍVEL




Nei Duclós


Tudo é invisível
Somos um corpo físico
inventado pela memória
Momentos guardados lá fora
onde mora uma história de amor


IMAGENS

Nei Duclós


Não registrei imagens do meu tempo
Estava voltado demais para dentro
Passei sem deixar vestígios
Foi como se não existisse

Talvez quando descobrirem lentes
para gravar paisagens imaginadas
Eu possa dizer: agora lembro

Por enquanto é este fardo, o presente
e o passado como bagagem
que perdemos em todas as estações



A ENTREGA

Nei Duclós


A entrega total foi despedida
Imaginei o oposto, que era o princípio
Mas o rude exagero, o fatal desperdício
que viera depois de um tempo vazio
era sintoma precoce de queda no abismo
Sinal explícito de ruptura

Depois dos gritos e dos gemidos
que migraram da cozinha para o quarto
Vestiste a roupa jogada no piso
Como naquela canção do Roberto

Fiquei de cara, como diziam na giria
Enquanto foste cuidar de outras coisas
Gurus nefandos, poetas tristes
Jogas tua beleza aos marimbondos

Volte, não estou te esperando
Só quero que encontres nossa cama desfeita
Pois desde tua fuga eu durmo ao relento
como um tigre que ainda sonha com a presa



EM QUALQUER TEMPO

Nei Duclós


Em qualquer tempo ocupo um só espaço
O corpo transfigurado pela viagem sem volta
O carrossel que em rodízio
Aguarda a tua ciranda

A trova é feita de espera
E coisas sem importância
Gravetos de uma fogueira
Peixe dourando a brasa

O vento espalhou a chama
E um pássaro deu o recado
Teu perfil de navegante
Avisava a tarde mansa

Te recebi com as flores
Que cultivei na montanha
De lá avistei teu sonho
Bandeira por sobre a gávea



MAIS ESPAÇO PARA NO MAR, VEREMOS

Nei Duclós


Logo que terminei de compor o livro NO MAR, VEREMOS, e isso foi antes de 2000, mostrei para o Claudio Levitan e ele, no seu entusiasmo, apoio e amor à literatura e à arte, como sempre, fez alguns esboços para uma futura edição impressa. Reproduzo aqui duas sacadas do genial talento, que um dia, com o devido aval do artista e do tratamento final que dará aos trabalhos, colocaremos numa nova edição impressa. Por enquanto, a nova edição virtual vem em PDF, e também em EPUB e MOBI (duas novas plataformas, graças às providências do editor e poeta Roberto Schmitt-Prym, da Editora Bestiário).

Obrigado a todos que já adquiriram o ebook e lanço novamente o convite para que tenham em seu acervo este livro elaborado de poesia, que trago à luz novamente para que encontre mais espaço no coração dos contemporâneos. Somos feito da dedicação ao ofício que escolhemos por vocação e destino. E isso este livro tem de sobra: arte de um veterano no front, lutando para colocar sua obra na roda, para que o Brasil conheça e saiba que existe muita gente lutando pra que a nossa cultura siga em frente, na linhagem de grandeza que sempre a caracterizou. Para adquirir, contate pelo messenger ou pelo email neiduclos@gmail.com.



O livro começa com estes dois poemas:

TARDE

Lá longe no horizonte
nasce a força da vogal sem nome
Voz do sobrenatural encontro
entre Deus e seu espelho

Imagem torta de espontâneo corpo
que interrompe o vôo permanente
Sombra não revelada pelo olho
colhida como flor para si mesmo

Surpresa do Criador quando se cansa
da infinita paz de estar atento
Lá nasço eu na minha fonte
De janela aberta e rádio aceso

Nei Duclós

MARCHA

Eu só preciso de uma coisa:
contar toda a verdade
e esperar pela resposta

Repetir este verso em cada porta
Procurar sinais de revolta

Eu só preciso avançar
de alguma forma

Nei Duclós



NO MAR, VEREMOS
Ebook em PDF, EPUB e MOBI
Nei Duclós
Poemas
Apresentação de Mario Chamie
Edição do Autor, 94 pgs
2018
(Primeira edição impressa em 2001 pela Editora Globo)

3 de agosto de 2018

A VOLTA DE NO MAR, VEREMOS



Nei Duclós

Dezessete anos depois de ter sido lançado em versão impressa pela Editora Globo em São Paulo, que tinha como diretor de Livros Wagner Carelli, colocamos na roda, para quem quiser adquirir e ter em seu acervo, a versão virtual em PDF de NO, MAR VEREMOS, obra que levou 20 anos sendo maturada e é sem dúvida o meu trabalho mais apurado, pelo rigor com que foi concebido e editado.. Pelo tempo, importância e raridade, tornou-se também, como Outubro e No Meio da Rua, um título inesquecível da poesia brasileira contemporanea.

Na apresentação, o grande poeta Mario Chamie diz (trecho):

NO MAR, VEREMOS. Nesse veremos (verbo ver e substantivo remos ) está todo o sentido do destemor e do desafio que o homem e o poeta Nei Duclós nos ensina. A perícia do título do livro é coisa de uma percepção exímia de quem tem o domínio da idéia e das imagens penetrantes que nos quer passar. A idéia fundamenta-se numa bela antítese. As imagens promovem a sedução persuasiva que a palavra poética exerce sobre nós, leitores. A antítese brilha no conflito quase alegórico que põe o mar de um lado e os pescadores do outro. O título (extraído do nome de uma embarcação: No mar-veremo e de um poema-chave do livro) vai nos revelando, à leitura de cada poema, que as altas ondas do mar da indignidade e da infâmia, em suas múltiplas formas, encontrarão sempre nos pescadores dos "pequenos rios" da decência, da liberdade e da beleza os seus perpétuos contendores. É como se, lançados no centro desse conflito, disséssemos para nós mesmos: - toda vez que os touros desse mar de chifres maléficos nos ameaçarem, veremos com que capas e espadas os dominaremos, em nome da humanidade do homem!
Bastaria essa esplêndida concepção artística para situar Nei Duclós entre os mais consistentes poetas brasileiros, dos anos 70 aos nossos dias.(...) (Mario Chamie)

Digo na Nota do Autor:
o livro transcende os limites geográficos e a memória, assumindo seu lugar na criação literária do nosso tempo, de um país continente num mundo em eterna transformação. É com muita emoção que coloco novamente estes poemas na roda, que tem sido recorrentes no espaço virtual e que aqui encontram seu refúgio.

Um dos ooemas do livro, que tem capa de Juliana Duclós:
INVENTEI O SOL
Inventei o sol, quando o dilúvio
ressecava a arena
e o choro procurava a luz
no escuro da cadeia
Virei do avesso
meu coração bate como porta
nas ruínas desse reino
Nasci com minha estrela
Agora estou no vento
o pé precisa alimentar
a veia
Passo como o rio, antes da enchente
com o bolso cheio de surpresas
e um aviso claro de tormenta
Nei Duclós

NO MAR, VEREMOS
Poemas
Nei Duclós
Ebook em PDF
Edição do Autor, 94 páginas
2018
R$ 30

2 de agosto de 2018

MOREI NO MAR

Nei Duclós


Morei no mar
Hoje sou terra
Deixei a vela
Pelo motor

Meu convés
já não balança
perdi o posto
de capitão

Leio diários
de navegantes
Mando recados
para além do front

Recebo convites
de almirantes
De marujos
sou professor

Há no entanto
solidão e vazio
presos na gávea
sem horizonte

Nada anuncia
que o amor retorna
A onda avança
Muda gaivota

A chuva pia
canções no teto
Sou incompleto
no meu naufrágio



1 de agosto de 2018

A PALAVRA LUA

Nei Duclós


A palavra está sempre a serviço de algum ofício
No jornalismo, psicanálise, gestão de equipes

Serve para a noticia, o foro íntimo, a indústria

Só na poesia ela não presta para objetivos
Se basta, como um andarilho sem pouso

Por isso lhe inveja a lua, tão certinha
Em fases repartidas nos horários fixos

Quisera a lua ser só isso
A letra sem artifício
A sonora sílaba
O sentido na pronúncia

Poderia assim livrar-se do romantismo
Que uso para te iludir