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31 de janeiro de 2012

TESTAMENTO


Nei Duclós

Declaro o peito sem medalhas
e a farda azul das palavras

Declaro o beijo e o sobressalto
a tocaia no colo
o ombro pisado pelas águias

Acumulei o futuro no inverno
para soltá-lo, pantera
na perna dos incrédulos

Declaro minha solidão eterna
e a saliva coberta de noites em claro
a fome que passei
e a glória de engolir as pedras

A timidez como flor do vale
O amor como o vento de maio
e a agressividade também declaro
Que não tenha machucado
a quem eu quis amar


RETORNO - Imagem desta edição: Christian Bale em Batman Begins.

ELIS


Nei Duclós

Dos braços à garganta
a fera manifesta

Morreu porque é impossível
tocar na tecla infame

Um dia vamos repetir
o refrão desse milagre

Seremos o som
de sua fábrica

A SEPARAÇÃO: O NÚCLEO INDISSOLÚVEL DA JUSTIÇA


Nei Duclós

Todos mentem em A Separação (2011), filme iraniano de Asghar Farhadi, até que a verdade vem à tona. Mas ela não se circunscreve à Justiça e sim ao foro íntimo. É no indivíduo que está a clareza sobre o que é certo e errado, independente de posição econômica ou política, atividade profissional, religião. O indivíduo sabe, mesmo que ele se envolva com todos os erros do processo que coloca duas classes sociais em oposição. O patrão da classe média que contrata a grávida, a empurra e é acusado de matar o bebê, enfrenta o marido endividado da sua empregada que quer colocá-lo na prisão e exige uma indenização pelo filho morto. Ambos enfrentam problemas conjugais e familiares, que explodem nas mulheres.

Do lado do acusado (interpretado por Peyman Moadi), que não quer sair do país alegando que tem pai com Alzheimer – uma representação do estado terminal do país obsoleto e fundamentalista – está a esposa (Leila Hatami ) que quer ir embora e levar a filha adolescente (Sarina Farhadi )para ter uma educação melhor. No colégio, a moça aprende que existe a elite e as pessoais “normais”, para escândalo da mãe progressista. E também lhe ensinam as palavras de um dialeto que são atribuídos a outro pelos professores, para escândalo do pai tradicionalista.

Do lado do acusador, que tinha sido preso pelos credores e vê no processo uma chance de sair do buraco, está a grávida (Sareh Bayat), que decide trabalhar escondida, já que o marido não coloca mais dinheiro em casa. Ao entrar em conflito com seu empregador, ela é obrigada a falar tudo para o marido, que entra em parafuso de violência. Tudo acaba nas mãos de um juiz indiferente e ao mesmo tempo minucioso, numa interpretação didática de como funciona o sistema judiciário no varejão do Irã.

O acusado mente que desconhecia a gravidez da empregada, esta mente dizendo que o empregador provocou o aborto, a professora mente que ele não sabia de nada, a filha é obrigada a mentir para evitar que o pai pegue três anos de prisão. É nessa filha adolescente que se concentra o drama. Ela fica com o pai enquanto a mãe volta para a casa materna. Seu objetivo é manter a família unida, pois sabe que mãe jamais a abandonará. Mas esse vínculo se rompe quando vê a mentira tomar conta do depoimento paterno.

Cabe a ela decidir se fica com o pai ou a mãe. Se ela se decidir pelo pai, optará pela tradição e o país. Se for pela mãe, será mais uma migrante. O filme termina sem dizer com quem ela fica, mas está claro que o pai, abandonado num banco do fórum, fica para trás nesse processo radical de transformação do mundo que o Irã teima em não aceitar. Lá, é proibido mulher dirigir, mas a esposa que se separa e quer ir embora dirige. É proibido mulher grávida trabalhar ou limpar idoso doente, pois a religião proíbe, mas na hora do aperto as regras são transgredidas.

É fora do fórum que se procura uma solução para o caso. Em vão, pois a proposta emperra nos princípios religiosos. Resta então a luz interior de cada um: todos enxergam claramente o que aconteceu e qual a culpa que carregam. Mas as contingências, as ameaças, as dúvidas, as pressões econômicas e políticas acabam colocando tudo a perder. A esperança está em quem sofre o impacto desse sufoco mas mantém a lucidez.

Mulheres de burka desde meninas até as mais idosas. Homens de barba obrigatória. O Deus oficial sendo citado a todo momento. É esse Irã medieval ambientado nas demandas da modernidade que o filme falado de Asghar Farhadi mostra por meio de um duplo processo: de um lado a separação do casal e do outro a acusação de assassinato. Em nenhum deles está a verdade, mas sim no coração devastado da jovem que vê seu país partido numa época de ruptura. Nela reside a fragilidade extrema da situação. Ao escolher a fuga ela rompe com o sufoco a que é submetida a população. Voa para a incerteza, mas só lhe resta a coragem de uma decisão fundada no seu espírito comovente, ético e natural ditado pela consciência.


RETORNO - Imagem desta edição: o casal em conflito interpretado por Peyman Moadi e Leila Hatami.

QUATRO OPERAÇÕES DO AMOR


Nei Duclós

Não vou te adicionar
já fazes parte
de mim

Nem te multiplicar
por mil
és começo e fim

Não vou te diminuir
por aí
pois seria pecado

Nem te dividir
com ninguém
Eu só ando armado
]

RETORNO – Imagem desta edição: Bogart e Bacall.

ENCANTO


Nei Duclós

Enfim me conheceste ao vivo. Foi encantadora a tua decepção.

Acorda. O sol só começou, mas a paixão já está a pino.

Desarrumas a cama com teu desleixo de felina. Depois vem com papo de faxina.

Palavra é o fermento, pareço gigante. Tira o verbo, sou apenas soldadinho entre teus brinquedos.

Exiges que eu salte para o dia com minha pasta de executivo. Mas prefiro apostar na loteria. Teu corpo é meu palpite.

Alcance o alpiste dos passarinhos nesta manhã magnífica, para que eles cantem tua formosura, e eu curta minha alegria.

Deita comigo só por uma vida. Nossa cama será o Paraíso. Acordaremos no Outro Lado, rindo.

O melhor amigo do ombro é o sorriso.

Ela sempre vai embora. Mesmo quando chega, com gosto de viagem de volta para o lugar que desconheço

Moro na estação das horas, sem ponteiros. Não sei como sabem quando devem bater o sino. Talvez ela avise, piscando os olhos.

Hoje vi nove veleiros escoltando o horizonte. Estufados do vento que sobrava na praia.

Poesia é toque profundo Beijo-te as taças e vitrines E os poços, as nuvens,as peles e os cílios.

Tens o formato do meu colo, assim como a camisola das tuas curvas. Que fazes na manhã clara, preguiçosa?

Fui para a praia, disse ela, que mora na beira do mar. Não cola, realeza. Arranja outra desculpa. Foste para longe de mim, isto sim

Quanto mais apressado e urgente você estiver numa concentração de trabalho, mais insistente e inoportuna é a mosca de verão. Parece amor.

Decepção com o Modernismo não pode abrir a guarda para o velho artificialismo. É preciso manter o domínio da linguagem e a liberdade poética.

Todos os poemas: somos onívoros e nada ficará de fora. Mas sobrevive a conexão com o conhecimento adquirido, a vivência dos grandes autores.

Ficaste séria de repente. Prevejo tempestade.

Fico apreensivo com teus tornados. Eles pintam longe como piões coreografados. E quando chegam são devastadores em seu choro e rasgos.

Não me venhas falar em trabalho. Sou operário. Carrego um coração pleno de ti, minha jornada.


RETORNO – Imagem desta edição: Amelie Florence, obra de Charles Joseph Frederick Soulacroix.

CANOA


Nei Duclós

Como sinto o cheiro se estás longe?
nem mesmo de memória ele é feito
desconheço teu corpo, aconchego
somos almas na captura de um porto

Mas sei que ele chega, de tuas fontes
o perfume da mulher que quero tanto
aceno de um cais em viagem longa
barulho do amor que não compreendo

E tens um peso que em meu colo assenta
como forma de luz e desarvorada pomba
enlaço com os braços o improvável gozo

Por enquanto és apenas origem do poema
fica para depois a superação romântica
quando vires com quanto se faz uma canoa


RETORNO – Imagem desta edição: Marilyn Monroe.

30 de janeiro de 2012

REGRESSÃO


Nei Duclós

Recebo spam por e-mail me convidando para ler novo fenômeno literário, um professor. Vou ler e o início é uma sucessão de lugares comuns, aquelas descrições torpes da natureza que evitávamos quando, no ginásio, os professores nos desafiavam a encontrar soluções melhores. O problema não é o romantismo ou o parnasianismo, que nos oferecem gênios da literatura, mas sua diluição, a leitura equivocada que acaba gerando essas inutilidades que acabam voltando,pois arrebentou-se com todos os paradigmas, relativizou-se tudo e agora tudo pode, principalmente andar para trás, regredir.

Sorte que contamos com os russos, que inventaram a narrativa moderna de gênio e nos servem sempre como exemplo. Na série de artigos que estou publicando aqui sobre os contos russos numa edição antiga da Martins Editora, leio um encantador Turgueniev, que tem no seu currículo o grande romance Pais e Filhos. O texto que abordo aqui é O Encontro, em que o narrador é testemunha de uma despedida de um casal no ermo, em meio à natureza. A exuberância do ambiente, descrito com maestria, se contrapõe ao drama entre o conquistador indiferente e bruto e a pobre apaixonada que implora atenção mesmo sabendo que será abandonada.

“Uma brisa ligeira alisava o cimo das árvores. A floresta molhada mudava a todo momento de aspecto, conforme o sol brilhava ou se escondia”, nos diz Turgueniev, mostrando o outro lado da sua magnífica nação, que sempre vemos envolta na neve , na chuva, na ventania e no frio. Aqui, temos o esplendor da estação descrito por um mestre, que nos introduz o romance aparentemente bucólico como se houvesse uma traição á natureza, ou talvez, faça parte dela, pois se trata de paixão e crueldade, elementos recorrentes na vida natural. O importante é a força da narrativa, a originalidade do enfoque, que trabalha num território muito explorado, que é a descrição da paisagem.

Não são os temas escolhidos que fazem a diferença, mas sim o que você faz com eles. É a sua pena que conta, seu talento, seu domínio de linguagem. Não se pode é se entregar a soluções batidas por falta de competência ou de conhecimento. Acredito que tudo foi vedado à população, e por isso, mesmo com tanta oferta na rede digital, ficam, por falta de informação, sem acesso ao que há de melhor na cultura, impregnando-se de falsos ídolos, músicas ruins, literatura de pastiche. Há muita apelação. A indústria do espetáculo a tudo manipula e contamina. Ou temos os diluidores profissionais com suas histórias pífias mal escritas ou os pomposos falsos eruditos que fazem pose com suas obras suspeitas.

Difícil é achar a legitima manifestação do talento, que é uma soma de sabedoria, um conhecimento acumulado submerso que aflora num poema , conto ou romance. Em outra história do livro em questão, desta vez de autoria de Korolenko, um guarda se apaixona pela estranha prisioneira que ele escolta até os confins da Sibéria. É tocante ver a mulher tossindo nos rigores do inverno russo e aquele amor que penetra o texto como um veneno tardio.

É disso que somos feitos: da transcendência conseguida pela arte da palavra. Glória aos grandes escritores e rigor contra os enganadores.


RETORNO – 1.Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: obra de Vladimir Volevog.

VENTO CIFRADO


Nei Duclós
O deslocamento do ar não é o vento.
Isso é só conseqüência.
O vento é um povo de criaturas elementais quânticas,
de grande diversidade, entre a partícula e a onda.
Provoca desde brisa a tornado.
Mistério nas fuças de todos, tratado como coisa corriqueira.
Os bichos sabem. E respeitam.
As plantas se dobram e o usam como linguagem.
As flores o temem. O vento adora pétalas e folhas
e aproveita as estações para fazer a festa

Varre o chão dourado da clorofila morta
cresta a neve das planícies polares
destrói as plantações transgênicas
derruba florestas inteiras, retorce os bambus
atormenta os cardumes em alto mar
invade mansões em ilhas suspeitas
dá gravata em cirros e cúmulus
recorta a curva estendida na praia
e bate forte no rosto que canta
leva embora o que atrapalha as musas

O vento é múltiplo como os elementos
obedece a uma tabela secreta dos deuses
mas se insurge quando lhe dá na telha
Ri da ignorância humana sobre sua natureza
gargalha nos galhos mais altos
e imita o crepitar do fogo torturando abrolhos
Vento é invento de palavra tonta
Na praia, meu guarda sol é o seu favorito
enquanto todos os outros agüentam
eu corro pela areia como um caranguejo.

Decifre o vento e irá preso
ficará em masmorras pedindo socorro
enquanto bate o nordestão e o minuano
todos ao mesmo tempo
Melhor ficar de ouvidos tapados
sem querer adivinhar quem força o ar
e se disfarça de vento sendo outra coisa
Diziam que tinha saci em redemoinho
mas o danado escapulia
enquanto o perneta era caçado

Não tente dizer este poema
em praça lotada, escolas,museus
melhor esquecê-lo num canto.
Levante pipa, mande bilhetes pela corda
navegue com vela que empurra contra o vento
Não compartilhe o que não pode ser dito
Por trás de tudo há um monstro
que rosna sobre o rio faminto
Eu fico na beira tomando notas, morto de medo
Um dia entrego e aí quero ver se ele arrebenta


RETORNO – Imagem desta edição: Janis Joplin.

ESCOLHA


Nei Duclós

Gosto da tua escolha, malha fina
que recolhe os piores olhos
que enxergam falha na fêmea
que é o oposto, glória e brilho

É um luxo que concedes ao perfil
de mulher acima desse engulho
burro que evita o gênio em nome
de um ilusório e torpe masculino

Exageras no batom e no saiote
só para vê-los bobos nos suportes
servos da exímia em artes femininas

Viraste a potra de ginetes toscos
que cavalgas dando banho de leitura
e a postura de quem mata sem aviso


RETORNO – Imagem desta edição: Gina Lollobrigida.

VERDADE


Nei Duclós

É tudo verdade, disse o sonho.

Tenho tanto porque recebo de ti. Fonte intacta que jorra infinita.

O sentimento está em outro plano. Lá onde fica o segredo que mantém o mundo vivo.

Compartilho o que não tinha, mas agora faz parte de mim depois do teu gesto que me reinventa.

Estás atenta, de ouvido no solo onde sentimos. O apito do trem, o trote, o fogo de artifício: todos os sinais mexem nos teus cabelos.

Não retire o que disse. Já escutei e atravessou o peito como um raio divino.

Te encontro no canto, virtuose de mântras.

Nunca escrevo. Sou minhas palavras.

Só eu enxergo tuas esquinas, tuas alamedas, tuas estradas. Só eu enxergo teus caminhos. Os outros te vêem parada

Ninguém é vencedor, já que todos vão morrer. Ninguém é perdedor, já que todos puderam nascer.

Quando dás as costas para mim é porque estás em frente ao mar. É quando abro uma exceção e deixo de ser o mar. Netuno reassume no tempo do teu olhar.

Agora que o erro se apropriou também da coragem, decidi assumir o medo, último reduto da humanidade.

Deixe as frases num canto e fui observar os vagalumes. Eles piscam intermitentes revelando flashes do teu rosto, que brinca na escuridão de esconde esconde.

Quando eu for embora, os poemas te farão companhia. É onde me encontrarás, peregrina, ao lado do que espalhei como brisa após a chuva.

Não perco um segundo pois sei do meu destino. Sou o migrante que cruzou o deserto montado num corcel de espuma.

Ninguém poderá roubar o que enterrei dentro do teu coração.

Ficaste mais bonita depois da inundação de poesia. Perguntaram qual seu segredo e sorriste numa gargalhada íntima.

Estás sempre te despedindo. Por que, velocímetra? Segure os ponteiros quando eu chegar na tua cintura.

Concordamos no atacado, nos atacamos no varejo.


RETORNO – Imagem desta edição: Kate Winslet.

29 de janeiro de 2012

ÍNTIMA


Nei Duclós

Íntima, onde há vida. Lisa, desliza no meu dia. Linda, gota perdida de chuva. Mínima, pio no ninho. Trêmula, como um sopro de vidro

Perdida, me pedes um conselho. Mas só eu ganho com isso. Me devolves a sabedoria que atirei a esmo e que já sabias

Todas as águas em mim. Todas as vibrações de um só coração aberto.

Poesia é uma criança, que senta aos pés da Memória para escutar o Tempo.

É um segredo esse, que te quero. Escondo sob a capa de palavras doces. Mas o amor é amargo como fruta colhida antes do tempo.

Nos despedimos de maneira formal. Logo depois, sucumbimos diante do remorso das palavras perdidas.

No dia seguinte, fingimos que não houve nada. Mas há uma seta de Cupido rondando as aparências.

Chorei, não deu a mínima. Enfrentei, torceu por mim. Venci, me deu os parabéns. Voltei, acenou com desdém. Parti e a vi desesperada da janela do trem

Ninguém “dá mole” para você. Vê se te enxerga. Tire para dançar, seu.

Demorei a te encontrar, poesia. Estavas embaixo de mim. Perdi tempo fixando o alto da montanha.

O senhor deixou cair uns poemas, disse o guarda noturno. Ah,joguei para a Lua. Pensei que ela iria recolher.

Vou pegar tua tristeza na saída e dar-lhe uma surra para não voltar mais. Mas você precisa deixá-la sair.

És Lua, gloriosa, na noite alta e transparente na tarde. És minha jóia de um colar de maravilhas

Vives num mundo de brutos, mas tua vocação é o voo. Todos te querem, mas poucos te amam.

Vou apertar tanto até você soltar todos os suspiros.

Há poema solto por toda parte. Vê se te arruma. Quem vai te achar no meio de tantas palavras? Toma jeito. Tenha pena das musas.

Ser poeta não é ser poeta. Ser poeta é dizer a verdade.

Me levou para visitar sua infância. A poesia como parte da paisagem. Caí fulminado como um pássaro que suspende o vôo.


RETORNO – Imagem desta edição: Mulher com um leque, obra de Pablo Picasso.

MILLENIUM E OS DESCENDENTES: O NORMAL E O BIZARRO


Nei Duclós

O desvirtuamento das fontes da riqueza de duas famílias em dois filmes de 2011 inclui o assédio do bizarro no conceito de normal e a inevitável mistura entre esses dois conceitos. Cada elemento dessa constatação pode ser colocado com clareza.

Um dos filmes é Milleniun – Os Homens Que Odiavam as Mulheres, de David Fincher, com roteiro de Steven Zaillian baseado no best-seller do autor policial sueco Stieg Larsson, aquele que passou a vida escrevendo sua saga e morreu antes de vê-la transformada no maior sucesso. A fonte de riqueza é a indústria poderosa e decadente de uma família que precisa desvendar um crime. E o outro é Os Descendentes, de Alexander Payne, que divide o roteiro com Nat Faxon e Jim Rash. Nesse caso, a fonte é a especulação imobiliária no Havaí de um terreno supervalorizado que vai beneficiar grande quantidade de parentes.

Não são filmes totalmente honestos, pois usam clichês e apelações pesadas. Mas não são de se jogar fora, pela boa carpintaria e grandes interpretações. Em Millenium, quem se destaca é a impressionante Rooney Mara no papel da hacker outsider e excepcional Lisbeth Salander. Era para ser a porção bizarra do filme, mas não é. Insana, tutelada pelo estado aos 23 anos, herdeira de um dinheiro a qual não tem acesso por limitações legais, ela é a salvação do jornalista investigativo Mikael Blomkvist, interpretado por Daniel Craig, que cai em desgraça ao não provar uma denúncia e é convocado para fazer a biografia do patriarca Henrik Vanger (com o veteraníssimo Christopher Plummer impondo sua experiência e talento no papel).


Bissexual, drogada e rebelde, a hacker desmonta os segredos da família de industriais que escondem o assassinato de uma adolescente nos anos 60. Mas na sua luta pela sobrevivência passa pela prova de se submeter à tara do responsável pela tutela estatal. A falsa normalidade do poder é desmascarada pela extrema bizarrice da mulher que não cumprimenta ninguém e voa numa moto em busca de informações que ela acaba acessando em todos os arquivos, digitais e analógicos. Para driblar a lei que a sufoca, usa de sua arte e conhecimento e da chantagem. Assedia a normalidade para poder sobreviver.

Em Os Descendentes o destaque é George Clooney, que só na cena de despedida da mulher em coma merece um Oscar. Emociona, por mais crítico que o espectador seja em relação ao filme, cruel e mórbido, uma anti-comédia dramática up-to-date, com todos os elementos da contemporaneidade sendo cruzados com problemas clássicos, como a traição conjugal, a rebeldia adolescente, o sufoco familiar etc. Clooney é do ramo, sabe o que faz. Não se joga no papel, mantém uma postura clean e mínima e consegue arrasar em algumas cenas como essa citada. Faz o papel do advogado que vai decidir a venda da herança, e descobre ter sido traído pela esposa que sofreu um acidente e agoniza no hospital.

Trata-se de uma situação bizarra num ambiente considerado normal. O Havaí é o chamado paraíso, mas é palco de uma grande tragédia. De costas para a praia, que no fim é o estuário do drama que se consolida, o advogado trabalha duro para se manter sem tocar no patrimônio. Excêntrico por não se entregar ás facilidades da vida que a herança oferece, ele não vê, nesse esforço, que sua família se desmoronou. As filhas adolescentes entram em parafuso e a mulher vai bater em outra porta.

Abrir mão do lucro imediato que a venda do grande terreno litorâneo proporcionaria é o toque “correto” do filme, que trabalha ambiente e política dentro dos princípios da integridade imperial americana. O Havaí precisa ser incluído no imaginário “sério” da América, não ficar apenas como uma curiosidade praieira, espécie de jóia da nação hegemônica, que engoliu países que estavam ao sul por não suportar a convivência com vizinhos. É preciso mostrar que o Havaí também sofre e deve manter alguma coisa de seu patrimônio natural, mesmo que seja à custa da exposição do sofrimento dos seus habitantes. Isso o filme faz, com competência. Mas não é uma apelação? E quem se importa?

Em Millenium, as cenas de tara sexual explícita não seria apenas uma forma de tornar o filme mais atrativo para a voracidade do mercado? Parece que sim, o que acaba comprometendo a trama em geral, pois algumas coisas não batem no intrincado suspense da investigação. É preciso amarrar bem as pontas quando se trata de segredos e mistérios. Não basta mostrar torturas brutais e ganas sexuais. Em Os Descendentes, as cenas em que as pessoas se vingam de quem está em coma, na presença da vítima, parece também essa forçação de barra em geral que os dois filmes tem. Isso tudo incomoda, mas vê-los faz parte da informação cinematográfica desta época.


RETORNO - Imagens desta edição: na de cima, Clooney e a bela Shailene Woodley; na do meio, Rooney Mara e Daniel Craig.

LUAS


Nei Duclós

Ouvi um barulho no portão, fui ver era a Lua nova.

Ela foi embora depois de me dar um beijo. Foi por isso que vim parar aqui, no estrangeiro, onde é impossível cruzar de volta a fronteira.

Como saber o que deve ser ensinado? Como aprender o que não se ensina?

Como pode ser do mar sem ser sereia?

Encostei meu queixo no teu ombro, num carinho longo. Navegamos juntos teu suspiro.

As nuvens se isolam por timidez diante do crepúsculo. Se ficarem em grupos, acharão que é chuva. E serão vaiados pela platéia do espetáculo.

Janeiro se vai como quem volta para a capital. Compartilhamos um pouco de brisa. Fizemos um balanço das memórias na varanda.

O lento subir da Lua faz ruídos de Lua branca.

Escolho palavras do meu acervo. Tem de monte. Elas brilham querendo aparecer. Algumas até são inconvenientes. Reclamam quando ficam para o próximo poema.

Devias repartir este momento. Mas preferes o isolamento. Melhor para a paisagem, que economiza teu olhar pidão de musa cheia de dedos

Agora fechou o tempo. Promete viração. Passas de sombrinha fechada e capa debaixo do braço. É inútil, porque minha nuvem despencará em ti.

A noite cerrou-se em veludo. Era dia até há pouco. É como o amor. Brilha, e de repente o coração palmilha o escuro.

Agora o abandono. Faço fogo na noite imensa. Um navio despenca do céu. Anjos passam lustrando raios. Estás sonhando, me dizem piscando ventos.

Estava lustrando o sonho para ver se ele agüenta o encontro. Talvez se desmanche quando eu chegar diante de ti. Talvez ele te ponha no colo.

O poema foi para a rua ver o movimento.Voltou correndo.

Hoje é sábado, disse o calendário. Precisa lembrar? disse o desencanto.

Fique atento disse a estrela mais brilhante abrindo espaço entre as nuvens. Faça um pedido e se mande. Pois ela vai aparecer, mas não onde estás.

Custei a me refazer. Só depois do terceiro dia é que caiu minha ficha. Ela havia partido para sempre. Um pombo correio passou lotado. Levava mensagem para bem longe

Bati na porta da noite. Você atendeu.



RETORNO - Imagem desta edição: Rita Hayworth.

28 de janeiro de 2012

RUÍDO


Nei Duclós

Lembrança de um amor faz ruído de saia.

Sonhei contigo. Acordei melhor.

Fosse por mim, não terminaríamos. Nem a conversa, o abraço ou o beijo. Mas ela quis assim. Me pediu cinco minutos de intervalo.

A palavra pia o gesto que o artista descobre em cada traço, em cada curva do sonho.

Meu ideal de beleza é a beleza.

Som de fada é o silêncio. Só ursos captam no ermo, entre favos de mel e nervos, enredando asas nos pelos.

Conversamos tanto que ela precisou avisar que não era namoro. Estava assustada, a pombinha rola.

Nada sei de ti, a não ser que te quero.

Vire para lá seu desprezo. Não me olhe com essa cara cheia de dinheiro.

Talento, escreve como pouca gente, implicante e, quando quer, malvada. E carinhosa sempre.

Fui criado numa terra de brutos pela mãe amorosa. As duas coisas estão em mim ao mesmo tempo. Amor vence a parada.

Gosto de ser descoberto aos poucos por você. Mesmo que não tenha muito, só o que se vê. Além de uns grunhidos escondidos.

Não consegues viver longe do mar. Nem o mar, longe de ti.

Floresces por obra tua, diante de mim, seiva e jardim.

A natureza também escreve ficção: teus defeitos.

Convidas ao baile, todos vão. Eu fico na espera, com a colcha estendida de estrelas.

Dançar contigo seria injusto, deixo que brilhes em gesto solo. Sou tua paisagem nesse rodopio pelo firmamento.

O frio voltou, com as nuvens espessas e indecisas. O verão pôs um casaco e toma um chá. Te enroscas em mim como um edredon antigo.

Sabe as mensagens enviadas? Apagaram tudo. Agora sofre, cão, com a espera interminável.


RETORNO - Imagem desta edição: Audrey Hepburn.

27 de janeiro de 2012

QUASE NADA


Nei Duclós

Continuo sem saber quase nada de ti.
Falta muito. Qual teu cheiro?
Quando suspira, saem borboletas do cabelo?
Gosta que beijem os dedos? Adora sorvete?

Aperta os olhinhos quando fica brava?
Põe a mão na cintura quando olha assim
meio de lado e gosta?
Quando dizem eu te amo fica vermelha?

Caminha olhando para frente? Sonha planícies desertas?
Monta em cavalo branco?
Aceita flor de tarde, às três e quarenta?
Deixa que lhe toquem de leve?

Falta muito. Sente falta quando não escrevo?
É indiferente se digo besteira?
Me esquece quando medita no bosque?
Vê o mar e se lembra?

Falta tudo. Tua presença.
E o coração ofertado
num bolso de seda.
Pega, é teu, açucena.


RETORNO – Imagem desta edição: Christina Hendricks.

PINA, DE WIM WENDERS: A FORÇA DO GESTO FRAGILIZADO


Nei Duclós

O corpo desenhado pela dança clássica representa não apenas o belo, mas a permanência, a eternidade do gesto cristalizado num conceito de arte e transcendência. O gesto extraído na coreografia de Pina Bausch (1940-2009) é o oposto: a escassez, a precariedade,a fragilidade do corpo datado e criado para desaparecer. Paradoxalmente, essa é a sua força. A morte do corpo não está na arte radical da denúncia e celebração pelo avesso de Pina, mas sim no imutável conceito da dança tradicional. Ao extrair o gesto da queda de corpos que buscam, no desespero, a verdade tocando em locais sagrados como a memória, o medo, o sonho e a dor, Pina se contrapõe ao engessamento imposto ao corpo pela realidade da sociedade industrial, e seus elementos de sociedade do espetáculo.

Esse contraponto ou identificação de contemporaneidades entre a dança alucinada e a urbanidade é a exposição que Wim Wenders faz da sua admiração. Para mostrar o impacto que a dança coreografada por Pina teve sobre sua percepção, Wenders ambienta o gesto desesperado no caos de indústrias, trânsito, ruas, edifícios. E ao levar essa mesma dança para a natureza inóspita de deserto e pedras e montanhas, ele procura revelar a origem da inspiração que levou a grande artista a formatar uma obra de densidade demolidora, que por meio da incorporação, da celebração e a denúncia procura o que restou de humano no massacre social.

Os depoimentos dos dançarinos mostram rostos concentrados com o áudio em off de suas falas, como a provar o deslocamento da dança em relação à palavra. O gesto é a palavra muda, tão sugestivo quanto ela, funcionando também como sínteses de realidades interiores. “Seja mais louca, me assuste; por que você tem medo de mim?” As lembranças dos toques de Pina transparecem nos depoimentos de forma minimalista e significativa. Não é preciso dizer muito para atingir a essência. Ela mostrou que eu estava com medo, diz um dançarino depois de confessar que tentou mostrar tudo de si , sem causar nenhuma impressão na diretora. Ela conseguiu enxergar as limitações dele por meio da observação calada e certeira.

Os gestos sociais engessados estão representados em cenas dilacerantes: a coreografia coletivo de salão, que lembram os eventos sociais,a s reuniões; a manipulação das relações humanas por meio da pessoa que formata abraços e beijos no casal; a animação feérica entre machos e fêmeas que não se tocam, apenas expelem suas manifestações anímicas de maneira brutal e invasiva; tudo isso é dança, que usa situações recorrentes, como a queda dos corpos, principalmente os das mulheres. No fundo, é a mulher a grande protagonista desta arte definitiva do nosso tempo. Por meio de corpos anti-estéticos, ao mesmo tempo belos, angulosos e líricos, a dança mostra gestos extremos femininos à mercê de inúmeras vontades e manipulações.

Prisões de braços e pernas, mergulhos em espaços exíguos, passos trêmulos, a mulher em Pina é entrega por meio da Queda. E que supera o que entendemos de humano ou vanguarda. Pois a dança vai além da conta, ultrapassa as fronteiras do conhecido e do esperado. Os espectadores são surpreendidos por esse filme que é mais do que dança filmada, faz parte também agora dos gestos extraídos por Pina no redemoinho da vida exposta e inviável.

O fato de Pina ter morrido enquanto Wenders estava em pleno projeto é a radicalização dessa metáfora da permanência de uma arte que se propõe datada, sintonizada com o tempo, mas que acaba não só revelando suas vísceras, mas transpondo seus limites. Não há mais a presença física da protagonista, mas sua arte é a consolidação de uma corrente poderosa de criação. Não se trata de nada sublime, apesar de grandes momentos de lirismo. O impacto é tamanho que somos obrigados a abrir mão de palavras que o definam.

É desesperador assistir essa sequência de cenas mortais, e é ao mesmo tempo libertador. Depois de Pina, nosso gesto adquire autoconsciência e é capaz de mudar o mundo.

26 de janeiro de 2012

ENIGMA


Nei Duclós

Vou explicar o que pega na beleza
que tens de sobra mas não atinas
Não é vaidade ou jogo de espelho
ou culpado capricho do destino

Não fique pesarosa por ser linda
e teu corpo matar todas de inveja
agüente o tranco no trono de rainha
perca o sapatinho de princesa

Perfeição é soma de outras vidas
camada espiritual tornada intensa
que se revela sapateando a mesa

Danças à vista de todos os convivas
girando a saia de flor e borboleta
Expressas um enigma, a natureza


RETORNO – Imagem deta edição: Elizabeth Taylor.

MELANCHOLIA: O APOCALIPSE DE LARS VON TRIER


Nei Duclós

O Terceiro Mundo prevê o Apocalipse, o Primeiro conta como foi. O de Von Trier em Melancholia (2011) é provocado por uma ilusão: a de que a depressão, a doença do viver, se afasta porque assim determinou a ciência. O fato é que ela aparentemente vai embora, mas se aproxima de maneira letal para acabar com tudo, desmascarando as certezas e mostrando a inutilidade da fuga mística ou do resgate das origens. É patética a cena em que o resto da família se refugia num esqueleto de cabana indígena, se dá as mãos para enfrentar o aniquilamento. Não funciona, claro.

Von Trier trabalha com design e publicidade. Confina seus personagens em espaços míticos desprovidos de magia, onde a racionalidade extrema é vítima do caos dos sentimentos. Fundado, na primeira parte, em Cenas de Um Casamento, de Ingmar Bergman, mas num momento anterior à crise do convívio (neste, a ruptura é na própria cerimônia) ele dedica esse trecho do filme à origem da depressão: um casamento que fracassa a partir da maldição lançada pela matriarca (Charlote Rampling), separada do ex-marido (John Hurt, soberbo como sempre). Não é a má vontade da mãe em relação ao evento o motivo principal, mas é sua chispa, o gatilho que desencadeia a proliferação do vírus.

A partir do discurso opressivo da mãe, a noiva (Kirsten Dunst) se entrega à tristeza profunda, que acaba imobilizando-a, destruindo seu emprego e o próprio casamento. A noiva é profissional de publicidade e o tempo todo é perseguida pelo patrão e padrinho (Stellan Skarsgård ), que quer arrancar dela a idéia central de uma campanha. A lucidez faz com que a noiva rompa os laços com sua profissão. Entrega-se à amargura e ao imobilismo. É amparada pela irmã (Charlotte Gainsbourg), aparentemente normal, casada com um milionário sovina (Kiefer Sutherland) e com um filho pré-adolescente. Mas é tudo máscara. O filme revela que a depressiva no fundo tem a chave para a consciência dos limites onde estão metidos, enquanto seus parentes protetores acabam sucumbindo à falta de saída e à tristeza.

É o mundo de Von Trier que acabou. Mantém-se pela opressão política e econômica, numa sobrevida criminosa e ao mesmo tempo suicida. O caos da zona do euro é só um sintoma da doença terminal. Mas eles não dão o braço a torcer. Acham que toda a humanidade tem o dever de segui-los, de desaparecer com eles. Se identificam cosmicamente com o destino da terra, quando são apenas uma parte dela, a pior. Mas, poderão dizer, a depressão atinge todos os povos indistintamente. Certo, mas a que levou ao aniquilamento é exclusivamente americano-europeu. O resto do mundo está na periferia e pode ir junto, mas não faz parte indissolúvel do problema.

Aqui deste lado do balcão, somos testemunhas do mal que aprontaram. Como já destruíram tudo, busca-se em culturas periféricas, como a dos maias, pistas de um futuro (e agora atual) apocalipse. Mas está tudo dentro das pessoas. O planeta adventício que ameaça a terra é a representação desse imaginário cevado na exploração. A suntuosidade e o desperdício do casamento fracassado, onde uma enorme limousine não encontra espaço na estradinha de terra, e cada capítulo do evento uma tortura, revelam a civilização condenada do lixo espiritual entre cristais e supérfluos (“quantos buracos de golfe nós dispomos?”).

Costumo dizer que confundem denúncia com celebração. Von Trier se entrega a uma infecção cósmica-psicanalítica audiovisual, a exemplo de Terrence Malick em A Árvore da Vida. Agora parece moda, misturar Kubrick de 2001 com Kubrick de O Iluminado. No caso de Von Trier, em alguns momentos do filme, como se Bergman morasse num sputinik. Poderiam ser menos pretensiosos, já que são tão brilhantes. Imagino o porre dos espectadores de Cannes que premiaram estes dois filmes. Acho que não conseguiram ver até o fim e deram nota máxima para não se comprometer. É como o um livrão gigantesco latino-americano, no auge do boom dessa literatura nos anos 70, que os jurados não leram mas premiaram pois poderia ser uma obra-prima. Vai saber.

CIDADE TRÊMULA


Nei Duclós

São Paulo, meu amor.
A cidade que me inventou.
A que existe à revelia de toda ilusão
e por isso nos obriga a sonhá-la.

A que conheci dourada na sua espinha dorsal,
que vai do Paraíso até os confins do Sertão.
Lá vivi mais de uma vida. Quem pagará essa dívida?
Nada e ninguém.

És acima de tudo o que é humano. És criação violenta
num ninho de migrações e cinzas.
Gigante, criança, diária e noturna,
carregas teus rios mortos com teu amor bruto de mãe.

Teu ruído atordoa a nação silenciosa.
És um grito, São Paulo
e sou teu dedicado habitante,
viva onde viver.

Não tens limites. Nada te decifra.
Desistimos de te compreender, visgo sem sentido
e por isso te amamos o amor sem esperança.
Estás em mim como um casulo trêmulo num tufão

25 de janeiro de 2012

FANTASIA


Nei Duclós

Tão bonita que até na fantasia não me aproximo.

Provo cada palavra como um renascimento. O verbo faz sentido quando há amor.

Nada foi em vão, minha alegria. Sou aquele que vês com tanta generosidade. Por isso cresço em ti, flor dos meus dias

O amor veio de mansinho e mordeu. Agora cura a ferida, distraída.

Quando damos as mãos, os pássaros fogem para bosques invisíveis. Lá, nos esperam com os bicos abertos nos ninhos.

Bem bonzinhos teus versos, disse a caridosa. Não, são maus, disse o peste.

Dei banho e saí com meus versos a passeio. São seus? perguntaram. São você escrito.

Ela roçou no meu ombro quando deitou de surpresa. Não tinha agendado ser feliz hoje.

Fui na loja providenciar alguns presentes. Quero aquele cheiro, pedi. Ah, e um pouco de querer-me. Talvez eu tenha novidades mais tarde

Quando me falta argumento, te releio.

O melhor de mim é ser eu mesmo, me dizes. Foi a única maneira de te encontrar, seresta.

Temos corações em sintonia fina, numa comunidade de arrulhos. Pombas nos representam emitindo sons para as nuvens.

Quando chegar a meia noite, saia disparando. É porque aparecerás na esquina manchado de paixão não correspondida e isso assusta todo mundo.

Bem bonzinhos teus versos, disse a caridosa. Não, são maus, disse o peste.

Assobie que eu danço no arame, equilibrista.

Sou de circo. Monto em cavalinho, domo feras, faço par com macacos, salto como palhaço. Só não subo no trapézio, teu reino absoluto, minha rainha.

Teu saiote rodopiou na primavera e me alcançou refugiado em neves de Kilimanjaro. Me trouxeste de trenó, sob as estrelas.

Ela me seduz num sopro de implicante inteligência,capa de veludo de sua beleza extrema, correnteza desencadeada pelo beijo.

Não falo em desejo, pode parecer apelação. Falo em tesão, mesmo.

Agora volto à solidão do tempo. Lá onde nuvens roxas desencadeiam algo que não vejo. Onde fica tua lembrança e a presença iminente do teu corpo


RETORNO – Imagem desta edição: Keira Knightley

UM DIA, O BARRO


Nei Duclós

Amor, risco
de areia.
Casa, futuro
suor.

Poema: pássaro
virá do vento
soprar o barro.
O traço em busca
do próprio torso

Depois de breve
mergulho
a palavra
cala

A palma toca telha
e tijolo.
O dedo molhado
sonda o deserto.



RETORNO - Imagem desta edição: obra de Barbara Jaskiewicz.

CRIATURA


Nei Duclós

O tempo foi generoso comigo.
Escrevo para quando eu partir
teres o que ler, minha doçura
Meu objetivo é ficar vivo em ti

Por isso esse tom compulsivo
de quem não descansa nunca
mas é aí que encontro a paz
nessa delícia em letra de forma

As palavras que encontrei são folhas
caídas de um outono maduro
serei a sombra de um plátano de ouro

Serás minha como desde o início
mulher que me tem nos braços de vidro
Teus olhos são meus, eterna criatura


RETORNO – Imagem desta edição: foto de Steve Hanks.

BUSCA


Nei Duclós

O sonho que você busca existe no momento em que você sonha.

Desistir é humano. Quem insiste demais é consultoria de auto-ajuda.

Imaginei a maior algazarra dos camaradas quando cheguei no Outro Lado. Vocês estão vivos! gritei. Não, mortos, disse um deles.E caíram na gargalhada.

Não seja fria. A Era do Gelo dura tempo demais. Instaure a hegemonia do sol e do calor. Inspire-se no verão e suas frutas.

Ela sugeriu que eu marcasse encontro comigo mesmo, já que sou tão interessante. Descubro sua vocação para a ironia. És completa, bandida.

Essas frases de adeus são como estampido ouvido depois do disparo feito a distância. Quando cai a ficha, ribomba na mente vazia e o coração sente o impacto

Refeito do susto, me recolho ao que me resta, o gosto de saber que ainda posso amar, seja você quem for, magnífica

Escreva devagar para que as palavras demorem. Leia uma vez cada estação para que as palavras sejam como as flores. Escute o som da palavra dita num sussurro para que durmas com as fadas.

Cheguei sem aviso como se estivesse partindo. Desci as malas que acabei de despachar. Entrei na sua vida fingindo que me despedia. Assim te peguei de surpresa, lisinha.

Perdemos tempo nos medindo. És muito menor do que um cálice de vinho. Sou muito maior do que uma despedida. Deveríamos ter posto a mesa explodindo a espuma

Ela reflete o que digo para que eu não descubra o que tem dentro da sua palavra. Talvez seja eu o que nem pode ser visto

Um dia me curva o corpo. Os amigos apontam rugas. O tempo abre ruas vagarosamente na cara coberta de poeira e amor

Onde estava? perguntei depois que me distraí. Dizias que me levarias para longe, disse ela. Ah, voltei

Vamos fazer o inventário, disse ela. Metade é meu, portanto é para ti. E metade é teu, portanto pode ficar.

Guardei poemas embaixo das pedras. Quando passou a guerra, tentei retirá-los de lá. Mas tinham sumido. Os soldados, repletos de amor, levaram para suas casas distantes.

Voltei porque não tinha ocupação para meu ofício. E nem me deixaram montar a oficina. É proibido, por lá, seduzir as nuvens com letras de chuva.

Neste emprego precisa viajar, me disseram. Há lugares estranhos, mas o pagamento vale a pena. Se alguém te atacar, diga que vieste do outro mundo. Eles acreditam em fantasmas. E guardam as facas toda vez que assoma um espírito.

Você escreve bonito, disse a bela. Deus também, falei.

Gosto dos seus escritos, disse a sumida. Vou começar a escondê-los, disse, vingativo.

Onde encontras inspiração? perguntou a curiosa. No ar, respondi.



RETORNO - Imagem desta edição: Grace Kelly.

24 de janeiro de 2012

THE TREE OF LIFE: A EPIFANIA DO ERRO


Nei Duclós

A fonte do sofrimento da cultura americana é o amor masculino mal resolvido, que tem na origem a família patriarcal bruta que exige ao mesmo tempo amor enquanto impõe-se pela violência. O herói americano é aquele que procura vingar-se do seu Outro – o vilão, representação do desamor ao pai – e para isso cerca-se do irmão, o companheiro fiel, que é seu apoio no perdão à brutalidade paterna. Terrence Malick faz uma prospecção longa, delirante e belíssima dessa tragédia nacional – que ele confunde com o destino de toda humanidade, já que faz parte de um império que se considera a única nação sobre a terra. Em A Árvore da Vida (2011) propõe o resgate de uma relação truncada e perdida não para condená-la mas transformar todos os erros numa epifania, numa celebração de almas perdidas que se reencontram como num evento batista fundamentalista.

Narrado o tempo todo, o filho mais velho (Sean Penn/ Hunter McCracken) que perde o irmão procura nos confins do universo uma ligação espiritual com essa perda para não sucumbir ao vazio da vida, representado pelo ambiente hiperrealista da urbanidade americana clean e mesquinha. A pista é a natureza. Primeiro, o cosmo, com suas assombrosas revelações feitas pelos telescópios digitais. Depois, os quintais e jardins do verão, em que a adolescência reprimida se ressente da aprovação paterna (Brad Pitt) e ensaia a transgressão, sob a permissão materna (Jessica Chastain) que é submissa ao patriarca mas também se insurge na ausência deste.


A natureza desvirtuada (a grama trabalhada com aspereza nas relações) é a família criada na violência, nas imposições das vontades dos adultos, num sistema mascarado de educação para a vida. O pai se sente um fracassado como subalterno e empregado, músico frustrado, e tenta incutir a coragem nos filhos, mas só consegue gerar o ódio. A impunidade do chefe da família com seus crimes diários leva a família à dissolução. O filho que parte e morre longe – provavelmente numa guerra, não fica claro no filme – e o primogênito que se refugia numa carreira e na meia idade quer de volta os laços que o formaram. É impossível viver no isolamento e no eterno presente. É preciso não apenas a memória, a lembrança, mas a reencarnação dos gestos, a recuperação dos espaços, o reviver dos momentos. A volta do beijo e do abraço e também da surra.

Não gosto desse diretor tão megalômano e que todos consideram gênio e que com esse filme arrebatou a Palma de Ouro em Cannes. Acho-o pretensioso e todo o seu esforço nas imagens cósmicas é para chegar perto de Kubrick em 2001, naquele final lisérgico que todos admiram e não esquecem (inclusive há imagens absolutamente iguais nos dois filmes). Mas Kubrick sim era gênio, Malick não. Quer ser, mas não é. Torra de tanta introspecção, mas é raso na concepção e objetivos. Você não pode justificar os erros só porque pertence a uma cultura hegemônica. A família fundada no amor masculino imposto na porrada não funciona, acaba no que sabemos bem: homens vazados de sentimento, endurecidos ou então frouxos no envolvimento que deveria ter com o gênero feminino.

A mulher é a grande outsider do cinema americano. Mae West, Marylin, Garbo, Liz, Natalie, Vivien são todas protagonistas e magníficas estrelas. Mas o foco é a relação entre os fortes, Batman e Robin, o mocinho e seu companheiro, o herói e o vilão,e aqui neste filmes, nos irmãos que cresceram à sombra do tacão paterno e acabam tendo que voltar ao início dos tempos para poder se encontrar. Mas é um território mítico, assim como a família. Em ambos, não há salvação. O núcleo familiar é fonte de desamor e a celebração é uma indulgência dos vencedores, os que perdem tudo ao se declarar os primeiros em tudo.

É preciso paciência para aguentar os intermináveis minutos deste filme, que começa no choque das estrelas e passa até pelos dinossauros (sério, eles aparecem no filme) e desaguam nos edifícios exuberantes da América hegemônica. Mas como todo mundo acha o máximo, é preciso ver para crer. Eu decidi não gostar, mas algo sempre se tira de tudo, principalmente do que nos desagrada.



RETORNO - Imagens desta edição: cenas de A Árovre da Vida e seus protagonistas. Além do competente Brad Pitt (sempre bom), a concentrada e talentosa Jessica Chastain, temos essa grande revelação que é o garoto Hunter McCracken, o Sean quando jovem. Aliás, bem melhor do que o próprio Sean, que só faz figuração. Sean é o tipo cansado de ser o máximo. Excelente em muitos filmes, mas preguiçoso neste.

ÁGUA


Nei Duclós

Amor é brincadeira, serve para passar o tempo. Coisa de adolescentes, disse o veterano. E o que você faz com estas flores na mão e o rosto crispado de dor e esperança? perguntei.

Melhor não falar sobre essas coisas. Vão achar que é vulgaridade. Melhor nos recolher à nobreza do gesto, minha mão na água do teu beijo

Você não é homem o suficiente, falaram para o garoto. Ela não se importa, disse ele.

Ela fica dias com a mensagem em suspense, até a desistência. De repente, responde como se fosse hoje. Ela tem o tempo flechado no coração à mercê de Cupido

O que faz quando não responde? Conta gotas de silêncio? Imagina duendes? Passeia em Vênus? Varre varandas de veludo? Jamais atende o telefone?

Segunda-feira serve para mostrar que o Tempo é essa droga de sempre. Pelo menos não nos ilude como um fim de semana. A não ser que ela acene, fora da folhinha

Vivo desse amor a conta gotas. Melhor assim. Cada pingo me inunda

Encaixe aqui no ombro e estenda a legião da tua pele na planície do lado esquerdo do meu corpo. Depois cochile e acorde um azougue

No complicado território onde a aparência cede ao orgasmo, ela torra com DRs de remorso

Palavra não pode estar desnuda, escrava da fantasia. Precisa usar roupa de domingo, com paletó ou sombrinha. Você tira o chapéu ela dá um pulinho. Isso bota fogo na vila.

Poesia estava abandonada, em saraus antigos, livros com mofo, lembranças pias. Fomos buscá-la. Estava de vestido amassado, um pé de sapato sem o salto. Venha, dissemos e ela saiu esfregando os olhos. Foi recebida na praça pela multidão, como uma deusa que volta do exílio.

Ela é muito ocupada. Fico na sala de espera, grudado na cadeira. Não converso e leio revistas antigas. De repente, me avisam: ela vai atender. Só aí flutuo

Canso de esperar e desisto de segui-la. É quando descubro que seus pequenos pés clonam meus passos. Bem que eu sentia um tremor no tornozelo.

Muita gente partiu e me deixou com uma pilha de poemas não lidos. Inclusive ela, a que nunca veio.

Mastigava alguma coisa enquanto eu falava sobre nós. Depois tirou o amor da boca e grudou embaixo da mesa e se foi.

Permaneço, enquanto tudo desvanesce. Escorrego, enquanto tudo fica firme. Te escrevo, enquanto tudo está perdido



RETORNO - Imagem desta edição: obra de Daniel F. Gerharz.

23 de janeiro de 2012

A EXECUÇÃO


Nei Duclós

Temos uma boa biblioteca em casa, mais ou menos organizada. De vez em quando descubro algum volume valioso, pois são muitas as fontes do acervo. Meus filhos às vezes compram em sebos e deixam por aqui algum volume, como é o caso de Obras Primas do Conto Russo, da Martins Editora, uma edição da época do Brasil soberano (por coincidência, 1964, antes naturalmente, do evento sinistro daquele ano) , quando éramos uma nação e não existiam multidões aglomeradas para pegar um autógrafo de alguma mentalidade miserável que compila criações alheias, como ocorre hoje.

Além dos célebres Gorki, Tolstoi e Puchkin, há logo no início uma narrativa notável de um memorialista, Andrei T. Bolotov, considerado uma das referências para entendermos a Rússia do século 18. Seus trabalhos foram escritos entre 1789 e 1816. O texto não chega a ser um conto, mas foi escolhido para dar uma coerência à seleta, pois se trata de um fundador da poderosa narrativa que no século 19 chegou ao esplendor na Rússia. Aliás, quase tudo chegou ao seu apogeu naquela época. Do século 20 para cá, só temos decadência. Ou alguém duvida que o grande prestígio alcançado em sua terra pelos escritores russos tem a ver com o consumo em massa do voyeursmo televisivo, em que milhões ficam olhando as baixarias de algumas mentes doentias?

Não que naquele tempo não houvesse barbárie. Sabemos que sobrava. A diferença é que a literatura, os narradores, os talentos que se manifestavam e são considerados inigualáveis não faziam parte dela. Bolotov conta o episódio de uma execução em praça pública do malfeitor célebre, Pugatchev, rebelde da época da Imperatriz Catarina que foi condenado à morte depois de liderar insurreições contra os nobres e cometer vários crimes. Bolotov é levado para o centro dos acontecimentos por um amigo policial que o coloca de frente ao patíbulo.

O que impressiona, nesse espetáculo sinistro, narrado com maestria pelo autor, é que não apenas o bandido enfrenta o carrasco, mas todo o seu entorno. O palco fica tomado de pessoas que são chegadas a ele. É como se na execução de um traficante todos os seus asseclas, advogados, parceiros e cúmplices enfrentassem a mesma pena. Bolotov conta que a plataforma onde se daria a execução ficou coalhada de carrascos. O início dos procedimentos foi uma longa arenga dos executores, a cargo de um representante do Senado, pois a Imperatriz terceirizou o julgamento para a Câmara Alta.

Depois da leitura da pena, foi dada a ordem do assassinato oficial. Todos seriam mortos no mesmo instante em que descesse o machado sobre o líder dos bandidos, que seria primeiro esquartejado para que partes do seu corpo fossem queimadas em praças diversas, para servir de exemplo. Mas talvez subornado por pessoas influentes, o carrasco simplesmente cortou a cabeça do meliante, desobedecendo assim a ordem do esquartejamento, o que provocou a ira dos algozes. Mas o fato é que, rolando a cabeça do chefe, o mesmo aconteceu com seus asseclas.

Impressionante. Que brutalidade. Só a literatura para trazer essa cena viva de volta. No Brasil temos coisa pior, aqui as execuções são feitas fora da lei, mas a maioria dos escritores não está à altura do momento.

RETORNO – 1. Crônica publicada originalmente no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: Andrei Bolotov. 3. Perfil de Bolotov e o conto A Execução Capital de Pugatchev aqui.

SEMENTES


Nei Duclós

É tarde para o poema, diz a fogueira
que se extingue mal chega a meia noite
ficam as cinzas sonâmbulas e as estrelas
que afastaram as nuvens do poente

É cedo para o sono, diz meu tormento
não há o que fazer se estou sozinho
paredes frias e um colchão de palha
janela onde a coruja escolhe o ninho

Vivo de migalhas, são tuas palavras
que chegam aos poucos como pingos
da chuva que me deixa ao desalinho

Meu alimento é um resto de sementes
sobras de um jardim que foi embora
e jamais germina aguardando a aurora



RETRNO - Imagem desta edição: obra de Thomas Sully.

22 de janeiro de 2012

LENÇO


Nei Duclós

Quando você expuser o que sente pelos outros, dobre meu ser como um lenço e guarde na gaveta

O sentimento é uma criatura única no universo vazio, que concede ciclicamente um espaço para seu alvo mutante. Qualquer interferência fora disso desmancha a mágica

A mudança foi pesada, vamos deixar o amor nas caixas. Peça uma pizza e deite no assoalho sem móveis. Vamos aguardar a vinda da ave noturna do arrebatamento

Deveria deixar o domingo quieto como uma praça antiga abandonada. Mas cachos de flores estranhas brilham nos galhos das árvores mortas

Você ainda não acordou para o perigo. Dorme o sono reparador da falta de compromisso. Não sabe que te esperam com uma limousine preta e um vestido que é pura renda

Escrever no vento. Recolher letras grudadas na vidraça. Acenar momentos. Extrair lentos perfumes

Poeta não tem correia, tem correio.

Você coloca o sentimento em endereços remotos, enquanto meu coração mora ao lado.

Ela passa ao largo do meu estreito. Passa lotada pelo meu ponto. Passa por nada, pois há outros caminhos. Desaforada.

Dormi na caixa do correio esperando tua mensagem. Acordei com uma conta

Estou pronto para o passeio em Marte. Foi o que me prometeste caso aceitasse meu convite.

Dizes que sou intrincado, enigmático, impenetrável, que precisas de um dicionário.Não vejo motivo pois caprichei na minha versão de bolso.

Não vou pensar no teu caso. Soltei os cachorros que me deste para cuidar. Passei na lavanderia para pegar tua roupa e doei para a caridade. Sabe os ingressos para o show? Mastiguei.

Queres sair comigo, mas levas um amigo. Vou levar minha pit-bull

Liga, desconectada.

Estavas ocupada com tua turma de palermas. Vou demiti-los do planeta. Aguardem a nave

Tua resposta vai chegar tarde. Prevejo isso há um mês.

Tem horas que é preciso uma decisão. Volte!


RETORNO – Imagem desta edição: a modelo é Elizabeth Bordley (Mrs. James Gibson), o quadro de 1822, o autor é Thomas Sully (1783-1872).

SILÊNCIO


Nei Duclós

Faz tanto tempo que não é mais silêncio. É aposentadoria do sentimento

Não notava a cor exata do cabelo nem do corte. Só agora, passado o tempo, lembro. Graças à foto que guardei atrás do espelho

Ligaste enfim, mas foi engano.

Fomos ao cinema. Estava lotado. Bem que tentamos. Fomos para a cama.

Essa não é pra ti, me garantiram. Tinham razão, mas me dei bem. Ela me usou para humilhar os caras. E aí dançou.

Confluência de admiradores me fizeram desistir. Fui bater em outra freguesia. Lá, onde ela se postou à minha espera

Não invente de falar comigo. Já fechei o teu arquivo.

É bom dizer sempre a verdade. Só quando me flagras, minto.

Não posso dizer frontalmente. Tudo me impede. Por isso ando em círculos. Estou ficando tonta, me dizes.

Se eu fosse rico, compraria todas as tuas flores.

Entendo, é verão. E fim de semana. A solidão é um calendário de desculpas .

Entendi porque houve desencontro. Eu cheguei uma semana adiantado

Escrevi pensando em ti. Acertei no alvo. Leste as entrelinhas.

Cansei da rejeição e mudei de emprego. Deixei a gerência da firma e virei garçom do bar que freqüentas. És a única que eu não atendo

Prometo me comportar. Só me declaro agora uma vez por ano. É bastante quando chegar o fim do milênio

Perdi meu tempo contigo. Voltei por onde vim e achei cada minuto caído quando estivemos junto. Eles ainda pulsam

Chegamos ao limite. Vou partir agora. Não conte com minha volta. Vê se não demora


DOWNLOAD


Te digitalizei, analógica. Agora quero ver fugir.

Fiz download da tua ausência. Assim não dependo de ti para sentir saudade

Me enviei por e-mail. Clique aceitar

Quando rejeitado, eu te amo é spam

Passei rapidinho para te desejar boa noite. Volto mais vezes, a cada cinco segundos

Não é que você seja bonita. Você faz misérias, é diferente

Você me acusa de falta de caracteres

Devia ter te beijado há 20 anos. Agora é tarde para perder a chance de novo

Eu não presto, me dizes. Não tenho conserto. Sou então um produto chinês.

A coruja pia no telhado. Não tem medo? Melhor aceitar meu colo. É de coração.

Já trabalhei de madrugada. Fechamento de revista. É por isso que vou para o céu.

Cometi um up-grade para te conquistar. Ficou razoável, mas não gostaste do software


COMPANHIA


Você é cara. Prefiro colocar na poupança. Lembrarei de você toda vez que retirar os juros

Depenaste o pato mas foste abandonada. Tua solidão é a verdadeira pobreza, não teu saldo bancário.

Prometi Paris mas preferiste Miami. Quis te levar ao Louvre, mas quiseste a Disney. Minhas passagens estavam certas, errei de companhia


RETORNO – Imagem desta edição: The Coleman Sisters. 1844, de Thomas Sully (1783-1872).

GRANITO


Nei Duclós

Não tenho bens, pastora, do teu agrado
como dinheiro, nobreza ou propriedade
tudo o que ganhei voltou, foi repartido
entre o grito e o joio, a jóia e o granito

Hoje vivo só, longe do gado e trigo
e do ponto exato do esplendor da carne
amanheço com flor, durmo com nuvens
lavro a saudade com espíritos de barro

Minha única herança faz sentido
acervo do que sinto não se esgarça
ao contrário, cresce na paisagem

É você esse brilho trêmulo no abismo
alma extrema que ao arder, me chama
na borda do infinito que limita a cama



RETORNO – Imagem desta edição: The Love Letter, obra de 1834 de Thomas Sully (1783-1872).