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29 de janeiro de 2012

MILLENIUM E OS DESCENDENTES: O NORMAL E O BIZARRO


Nei Duclós

O desvirtuamento das fontes da riqueza de duas famílias em dois filmes de 2011 inclui o assédio do bizarro no conceito de normal e a inevitável mistura entre esses dois conceitos. Cada elemento dessa constatação pode ser colocado com clareza.

Um dos filmes é Milleniun – Os Homens Que Odiavam as Mulheres, de David Fincher, com roteiro de Steven Zaillian baseado no best-seller do autor policial sueco Stieg Larsson, aquele que passou a vida escrevendo sua saga e morreu antes de vê-la transformada no maior sucesso. A fonte de riqueza é a indústria poderosa e decadente de uma família que precisa desvendar um crime. E o outro é Os Descendentes, de Alexander Payne, que divide o roteiro com Nat Faxon e Jim Rash. Nesse caso, a fonte é a especulação imobiliária no Havaí de um terreno supervalorizado que vai beneficiar grande quantidade de parentes.

Não são filmes totalmente honestos, pois usam clichês e apelações pesadas. Mas não são de se jogar fora, pela boa carpintaria e grandes interpretações. Em Millenium, quem se destaca é a impressionante Rooney Mara no papel da hacker outsider e excepcional Lisbeth Salander. Era para ser a porção bizarra do filme, mas não é. Insana, tutelada pelo estado aos 23 anos, herdeira de um dinheiro a qual não tem acesso por limitações legais, ela é a salvação do jornalista investigativo Mikael Blomkvist, interpretado por Daniel Craig, que cai em desgraça ao não provar uma denúncia e é convocado para fazer a biografia do patriarca Henrik Vanger (com o veteraníssimo Christopher Plummer impondo sua experiência e talento no papel).


Bissexual, drogada e rebelde, a hacker desmonta os segredos da família de industriais que escondem o assassinato de uma adolescente nos anos 60. Mas na sua luta pela sobrevivência passa pela prova de se submeter à tara do responsável pela tutela estatal. A falsa normalidade do poder é desmascarada pela extrema bizarrice da mulher que não cumprimenta ninguém e voa numa moto em busca de informações que ela acaba acessando em todos os arquivos, digitais e analógicos. Para driblar a lei que a sufoca, usa de sua arte e conhecimento e da chantagem. Assedia a normalidade para poder sobreviver.

Em Os Descendentes o destaque é George Clooney, que só na cena de despedida da mulher em coma merece um Oscar. Emociona, por mais crítico que o espectador seja em relação ao filme, cruel e mórbido, uma anti-comédia dramática up-to-date, com todos os elementos da contemporaneidade sendo cruzados com problemas clássicos, como a traição conjugal, a rebeldia adolescente, o sufoco familiar etc. Clooney é do ramo, sabe o que faz. Não se joga no papel, mantém uma postura clean e mínima e consegue arrasar em algumas cenas como essa citada. Faz o papel do advogado que vai decidir a venda da herança, e descobre ter sido traído pela esposa que sofreu um acidente e agoniza no hospital.

Trata-se de uma situação bizarra num ambiente considerado normal. O Havaí é o chamado paraíso, mas é palco de uma grande tragédia. De costas para a praia, que no fim é o estuário do drama que se consolida, o advogado trabalha duro para se manter sem tocar no patrimônio. Excêntrico por não se entregar ás facilidades da vida que a herança oferece, ele não vê, nesse esforço, que sua família se desmoronou. As filhas adolescentes entram em parafuso e a mulher vai bater em outra porta.

Abrir mão do lucro imediato que a venda do grande terreno litorâneo proporcionaria é o toque “correto” do filme, que trabalha ambiente e política dentro dos princípios da integridade imperial americana. O Havaí precisa ser incluído no imaginário “sério” da América, não ficar apenas como uma curiosidade praieira, espécie de jóia da nação hegemônica, que engoliu países que estavam ao sul por não suportar a convivência com vizinhos. É preciso mostrar que o Havaí também sofre e deve manter alguma coisa de seu patrimônio natural, mesmo que seja à custa da exposição do sofrimento dos seus habitantes. Isso o filme faz, com competência. Mas não é uma apelação? E quem se importa?

Em Millenium, as cenas de tara sexual explícita não seria apenas uma forma de tornar o filme mais atrativo para a voracidade do mercado? Parece que sim, o que acaba comprometendo a trama em geral, pois algumas coisas não batem no intrincado suspense da investigação. É preciso amarrar bem as pontas quando se trata de segredos e mistérios. Não basta mostrar torturas brutais e ganas sexuais. Em Os Descendentes, as cenas em que as pessoas se vingam de quem está em coma, na presença da vítima, parece também essa forçação de barra em geral que os dois filmes tem. Isso tudo incomoda, mas vê-los faz parte da informação cinematográfica desta época.


RETORNO - Imagens desta edição: na de cima, Clooney e a bela Shailene Woodley; na do meio, Rooney Mara e Daniel Craig.

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