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30 de novembro de 2010

DISTORÇÕES


Nei Duclós (*)

A longevidade costuma gerar uma lucidez tão intensa que parece ilusão. Tenho plena certeza, e posso estar enganado, que as pessoas pararam de se comportar como plateia a partir do teatro de agressão dos anos 1960. Hoje, os shows não são mais de estrelas para fãs, mas de uma comemoração entre celebridades em qualquer lugar do espetáculo.

Vemos distorções por todo lado, como no aprendizado. Ninguém mais aprende, pois só tem a ensinar. Há um arsenal poderoso para que uma argumentação seja demolida sem dó. Um exemplo é virar contra o interlocutor suas próprias provas. Outro é não escutar nada do que ele fala. E mais um é insistir pelos séculos afora na mesma tecla que contraria o que foi dito.

A cultura da autoajuda contempla seus aprendizes com muitos instrumentos para viabilizar essa insânia. Hoje qualquer grande pensador está sujeito a ser reduzido a pó pelos diluidores de conceitos por meio de frases pífias que posam de verdades absolutas, já que ostentam no final o nome de seus falsos autores. Einstein, Quintana, Ghandi ou Schopenhauer, além do massacre de tudo o que Jesus disse, pontuam as mídias sociais como uma avalanche bem armada de absurdos. Avesso aos livros, seus arautos fazem parte daquela plateia que virou palco e que gosta de negar todas as evidências da sabedoria clássica em favor de tiradas espertas.

Mas isso é ser irascível e chato, costumam dizer. Pois se há um consenso sobre as pessoas, esse é o perfil de cada idade. Quem cruzou a curva da Boa Esperança é tratado aos pontapés de várias formas. Ou pela falsa admiração (aquela que aguarda um tropeço para cair em cima), ou pelo tratamento póstumo, que é a morte em vida. Virar verbo do passado enquanto se está na ativa é também uma forma de manter as distorções, já que a longevidade alerta para as barbaridades que se cometem com as palavras.

O que mais incomoda é saber que o esforço de uma vida não valeu nada e os lugares comuns voltaram com força. Não adiantaram décadas de deboche contra as falsidades da língua ou dos pensamentos toscos e ultrapassados. Eles imperam, beneficiados pela multiplicação das vozes. Começo a entender a história da torre de Babel, sem querer entrar no esquema da antiguidade impaciente.

RETORNO - 1. Imagem desta ediçao: Torre de Babel, de Breughel 2. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 30 de novembro de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

29 de novembro de 2010

CINZA É O NOME DA CIDADE


Revisito poemas sobre as cidades , no meu livro No Meio da Rua, de 1979. São poemas atuais, pois estava claro há tempos o que fizeram com o país nestes anos infindos de ditadura. Tão atuais, que as cidades que ostentavam chagas, que por sua vez geravam poemas duros, hoje são invadidas por ações militares que procuram “purgar” os pecados civis. Velhas realidades, velhos equívocos. Só a poesia se mantém intacta.

CINZA É O NOME DA CIDADE


Nei Duclós

Cinza é o nome da cidade
apesar do claro
que me abriu na alma

Pedra é a cor da cidade
onde aprendi
a ser leve

Dor é a vida na cidade
porque chegar ao sol
é atravessar espadas

Frio é o corpo da cidade
mas ele guarda
um abraço

Morte é a lei da cidade
que me fez marginal
e renovado


ROTINA


Atravesso a rua dos assassinatos
sem olhar para o lado
preciso alcançar o ônibus, rápido
e escapar das perguntas
que me faço

Em direção ao meu quarto
olho, indiferente, a cidade
e vejo, desesperado
o desfile de assaltos

No banco da solidão
penso nos crimes
que voltarão amanhã
e estico, com tensão
meu corpo cansado

Como fica difícil escrever
com poucas palavras

Como fica difícil viver
sem responder nada

Como fica difícil calar
enquanto passo


CIDADE EM TRÂNSITO


Não pense que você está morto
só porque ficou no porto
vendo o povo desmoronando

Ninguém é maior por ter cruzado o mundo
Em todo lugar existe um muro

Não se arrependa
No fim das contas
Estamos juntos

E o monstro não mudou de rumo
Ele está pronto
Está crescendo

Esta cidade é outra
Para qualquer um
Esta cidade em trânsito


CIDADE NOVA


Sumiu a porta da rua,
a rua,
e os cachorros iam nela
e a chuva
que buscava a terra

Sumiu a esquina, a zona
As cidades uma a uma
E as pessoas que iam nelas:
Perfumes

Restou a mala
nas inúmeras viagens
através de ti

De presente: o tempo
costurando a bruma
e o teu rosto, irreconhecível


RETORNO – 1. Poemas do livro No Meio da Rua (L&PM, 1979). 2. Imagem desta edição: cena de Metropolis, de Fritz Lang.

28 de novembro de 2010

UM ESTRANHO CASO


Cachorro-Em- Pé era visado pelos maus da vizinhança. Com um tronco desproporcional aos pequenos braços e pernas, que sacudiam no andar desengonçado, o rapaz virou alvo fácil logo que chegou de mudança na rua, junto com a família. Além de bizarro, era de outra cidade. Parece que de Santiago ou Cachoeira, lugares distantes, só alcançados em longas viagens de jipe ou trem. Como não tinha irmãos que lhe “tirassem a cara”, como se dizia na fronteira, que evitassem o massacre, nem um pai visível, já que a casa era habitada praticamente só por mulheres, o ataque era uma questão de dias, talvez horas.

O plano já estava esboçado. No momento em que ele, babão, passasse cumprimentando todo mundo com seu ar de idiota, olhar perdido, queixo proeminente, grande papada e um cabelinho preto enrodilhado no cocuruto da cabeça ovalada e enorme, bastava dar um grito para provocar o susto. Depois, era só diversão: roubar-lhe os tênis vistosos comprados talvez naquelas lojas ricaças da capital, a camiseta de grife estrangeira, a pulseira, que parecia de ouro, entre outras atrações. Além de completamente inofensivo, Cachorro Em Pé ainda exibia grande volume no bolso de trás da calça, de onde costumava tirar uma carteira recheada de notas.

Com ela, o infeliz fazia as compras para a família só de mulheres. Ia na padaria, na farmácia, no mercadinho e de lá vinha carregado de coisas inúteis, de cosméticos a pão integral, e ainda se arrastava pesadamente sob os mandados como se o bolso lhe tivesse pesando ainda mais depois de tantos gastos.

A petizada era formada de gente ruim. Rato, baixinho e peludo, com cicatriz no rosto, comandava. Gringo, alto, parrudo, pronto para entrar para os fuzileiros, obedecia. Bolo Fofo aparentava preguiça mas na hora de roubar era o mais rápido e ladino. Além de outros, quase anônimos, todos brutos. A idéia era roubar e esconder rapidamente, puxar para a briga, tudo em poucos segundos. Seria moleza. Mas não contavam com um fato extraordinário.

Logo que sentiu a aproximação dos meliantes, o inocente grandalhão tirou a carteira do bolso de trás, deixando cair um pote de geléia, um pacote de frutas variadas e outras miudezas sem importância. Parece que ria apontando a prenda, como se estivesse convidando para que a levassem. Os bandidinhos se entreolharam e se jogaram no butim. Mas no mesmo instante, viram o objeto de desejo se transformar de repente num pássaro preto enorme, que começou a dar bicadas na turma. Apavorados, tentaram fugir, mas o bicho, sob as ordens dos gritos do imbecil, sabia transformá-los em gado, obrigando-os a ficar contra a parede. Um deles parece que se mijou. Talvez o Bimbo, magro e comprido e com uma boca rasgada de orelha a orelha, que desandou num choro humilhante para a quadrilha.

Logo que estavam todos sob as ordens do bicharoco, eis que as asas se recolheram e o animal se projetou para os braços do Bahaunde (esse era o nome verdadeiro do Cachorro-em-Pé). Sorrindo, ele recolheu de novo a carteira para o bolso de trás, pegou as compras esparramadas no chão e foi-se, cumprimentando todos os que passavam.

Essa estranha história me foi soprada por um duende. Será que aconteceu?

RETORNO - 1. Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem destaa edição: Hitchcock e um dos seus Pássaros pretos.

27 de novembro de 2010

QUESTÃO DE CLASSE



Acreditava-se que classe tinha a ver com status social, com o dinheiro que o cidadão dispõe para gastar, com a posição que ocupa, com o fato de possuir ou não os meios de produção. Trata-se de uma divisão baseada na percepção mais tosca da economia. Mas a ação política predatória mostrou que não é bem assim.

Vimos como pessoas desqualificadas em todos os sentidos, especialmente os relacionados com a ética e os bons costumes, mudaram da base para o topo da pirâmide, mantendo intacta sua falta de classe. Enquanto isso, gente que não saiu jamais do lugar que herdaram no berço, como é o caso de Cartola, nascido no morro carioca, são um exemplo de sofisticação e sabedoria. Não tem a ver com dinheiro, religião, atividade, cor, gênero, número ou grau. Nem mesmo com o fato de ter passado ou não pelos melhores colégios. É uma espécie de vocação, de graça herdada, que, encontrando o ambiente adequado, desabrocha e influi diretamente nos contemporâneos. Se não for estimulado, recolhe-se e pode se afogar no ressentimento.

O alegretense Paulo César Pereio, o grande ator de tantos papéis inesquecíveis e contundentes, e que acaba de completar 70 anos, chamou a atenção para uma palavra da fronteira que estava em desuso. Ele disse que a “bagacerada” tinha tomado conta do país. Acredito que ele se referia não apenas aos apaniguados que se “nobilitaram” por meio da disputa do dinheiro público. Mas aos advogados, aos pseudointelectuais, aos falsos artistas e outros espécimes que ficam em volta do caixa.

Quando a propaganda eleitoral falava do risco de “voltarmos ao passado” eu lembrava de Drummond, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Darcy Ribeiro, Tom e Vinicius e comentava: quero voltar mesmo ao Brasil que tínhamos, culto, de alto nível, sensível e soberano. Eram pessoas de todas as classes que acorriam para a arena pública com a força de seus talentos, criando uma cultura deslumbrante, que por um tempo nos acostumou: achávamos que o Brasil seria assim sempre. Engano total.

Eles se foram e os substitutos são gritalhões horrendos, escritores toscos, políticos brutos. Você pega qualquer grande político antigo, como Pandiá Calógeras, que foi Ministro da Guerra na República Velha, ou Macedo Soares, ex-governador paulista. Eles desenvolviam intensa atividade política e profissional (professores, advogados, engenheiros) e ainda foram autores de inúmeros livros, dezenas deles, todos sobre o Brasil e seus rumos. Que exemplo deixaram e como foram desperdiçados quando vemos a atual fase da vida nacional, tomado totalmente pela barbárie!

Descobrir o verdadeiro sentido da palavra classe não significa justificar a grande defasagem entre o privilégio e a miséria, um mal que precisa de tratamento e cura numa nação tão rica. Não se deve é cometer crimes sob o álibi de estar fazendo justiça social.

A história da humanidade é mesmo a história da luta de classes, mas não como queria Marx, o inventor da ilusão do operário no poder (quando então ele deixaria de ser operário e viraria tirano, como notou Bakunin). É a luta dos que não tem classe nenhuma contra as pessoas de classe que civilizam com suas obras e acabam sendo vítimas do massacre.


RETORNO - 1. Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana.

26 de novembro de 2010

AULAS DE POLÍTICA


Nei Duclós

Não acredito que existam formadores de opinião. Conheço meus compatriotas. Todos nascem com convicções extremas e ai de quem se atravesse no caminho. No berço, já levantamos o dedinho para expressar as certezas que trazemos do Outro Lado. Nós, brasileiros, viemos todos da mesma origem: de um Limbo que é praticamente uma escola de política. Lá, estudamos por toda a eternidade os grandes temas que ficam em roda dos vivos. Quando encarnamos, já chegamos calçados.

Lembro dos embates nos grêmios estudantis do ginásio. Tínhamos brizolistas de nascença e Lacerdas em carne e osso. “Cala boca comunista” “deixa de ser reaça” eram os impropérios mais amenos que se ouviam nos debates. Os argumentos eram lapidares. Para quem achava ser a pobreza uma opção dos perdedores, os conscientes brandiam com um “temos de cortar o mal pela raiz”. Os conservadores deitavam e rolavam, brandindo os conceitos de Deus, Pátria e Família, que eram comuns, como se fossem propriedades deles. Já havia o medo de uma reforma agrária desastrada, um tema que até hoje assombra o país com terra de sobra, assunto institucionalizado e ainda sem solução.

Reproduzíamos em classe o que ouvíamos em casa. Na minha, as discussões eram febris, principalmente na hora da sobremesa. Amigos da família participavam. Tinha gente que saía correndo do próprio almoço para vir participar da contenda. No rádio, pontificavam as arengas, as campanhas, as acusações. Às vezes, um líder importante nos visitava e havia uma grande mobilização, com centenas de carros e caminhões fazendo estrondo pelas ruas.

Quando veio o golpe de 1964, houve surpresa geral. Estávamos acostumados à liberdade. Era estranho ver alunos de outros colégios vir passar uma temporada na nossa classe para admoestar, aconselhar e ameaçar sutilmente. Procuravam culpados, mas só encontravam cdfs. “Você é um aluno estudioso, não vá na onda desses comunistas”, diziam, meio decepcionados com a “colheita”. Aos poucos, fomos perdendo aquele empuxo, aquela força. A campanha presidencial para 1965, que prometia, ficou apenas na intenção. Depois, os líderes tentaram costurar alguma coisa em Montevidéu, mas o fosso entre eles era muito profundo. Nós também, colegas que agora se afastavam para a vida adulta, rompíamos antigas amizades e nos recolhíamos ao silêncio.

Ensaiamos algo em 1968, com as passeatas, mas o AI-5 jogou água na fervura. Houve então, até 1979, uma longa fase de surdez e ringir de dentes. Só muito tempo depois, quando tudo parecia voltar ao normal com o fim dos anos de chumbo, nos reencontramos, veteraníssimos, e nos abraçamos. Lacerda e Brizola tinham ficado para trás. Estávamos intactos, nós, conterrâneos de uma fronteira mítica. De todas as classes sociais, nos reunimos em torno da vivência em comum, do privilégio de sermos contemporâneos.

Rimos agora de nossas brigas. Talvez até ressuscitemos algo, na campanha de 2010, plebiscitária. Mas desta vez, mais maduros, fazemos escolhas fora das certezas trazidas do berço. Adquirimos o poder da reflexão, fruto de tanta dor e tanta vida.

RETORNO - 1.Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana, coluna Jornalismo Literário. 2. Imagem desta edição: Jango e Brizola nos anos em que discutíamos política em sala de aula, no ginásio.

24 de novembro de 2010

BRAÇO DE MAR


Nei Duclós

O mar é sempre maior
e o luar lhe faz a corte
não há medida do homem
entre a praia e o horizonte

O mar já veio antes
da onda inventar o tempo

É ele quem trai o porto
e acende o pavio da bomba
que puxa a noite do poço
e corta os pulsos da sombra

E mesmo no sol, o mar transa
seu jogo de conveniências
suas algas postas de molho
sua escultura sem cabeça

O mar é sempre o começo


RETORNO - Do livro No mar, veremos. São Paulo, Editora Globo, 2001

23 de novembro de 2010

PREGUIÇA MATA


Nei Duclós

Ideologia é preguiça: é fácil se escandalizar com uma opinião ou com os fatos sem pesquisar seus motivos. Isso mantém desfocado o núcleo da questão, que deveria ser esclarecida para que houvesse a mínima chance de uma solução. Essa máscara sobre a realidade é colocada de propósito, pois serve a vários interesses. Mas há um paradoxo: quanto mais jogam areia nos olhos da opinião pública, mais insatisfação se acumula no tecido social e, como numa doença oculta, as feridas explodem na superfície, impulsionadas por misteriosos mecanismos internos.

Vamos pegar o caso dos carros, para a conversa não ficar muito esotérica. As estatísticas são conhecidas: média de 40 mil mortes ao ano no trânsito, 159,3 veículos por quilômetro (só perdemos da Coréia do Sul e do México) e um crescimento médio de veículos rodando de 14% por ano nos últimos seis anos. Nesse ritmo, em 2014 o Brasil terá um automóvel para cada quatro habitantes, proporção de país rico. As vendas vão bem porque o crédito é facilitado. Mas os juros altos estão tirando a credibilidade das classes C e D, tidas como boas pagadoras e que agora engrossam os índices de inadimplência.

Escancarar o uso do carro serve para deixar de lado o problema do transporte público, mais difícil de resolver. Para não sofrer nos coletivos, a população abraça o transporte individual sem condições de arcar os custos. Fora dos trilhos, a locomoção empaca e entope a circulação em todo o país.

Para não ter de arrostar as responsabilidades, os poderes oficiais e privados inventaram a tese, bem sucedida, de que a culpa é da própria população, que não dirige direito, com motoristas alcoolizados e imprudentes, falta de educação no trânsito por insuficiência de formação escolar, entre outros fatores. Culpar o indivíduo pelo erro e omissão do Estado é moleza, já que na aparência parece que é isso mesmo. Não se trata de justificar o mau comportamento, evidente, que vemos nas ruas e estradas, mas de entender que esse é o resultado da falta de políticas públicas adequadas.

O abandono vem de cima e deixa o indivíduo à vontade para transgredir. Se a fiscalização for corrupta, a tragédia está posta e não adianta bater boca. Vamos ao trabalho.


RETORNO - 1. Crônica publicada nesta terça-feira, dia 23 de novembro de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2.Imagem desta edição: engarrafamento de fordecos.

22 de novembro de 2010

ANJO DA GUARDA


Nei Duclós

Nada dispersa a atenção do anjo
Nenhum segundo é feito de cansaço
O rosto imerso em luz e sombra
O olhar reflexo em sua guarda

Se você chegar, ele não se espanta
Nem cobra o passado desse encontro
Esteve sempre ali, como um presente
Ocultando o brilho de sua trama

Ao tocá-lo, não olhe com escândalo
nem separe as asas de seu corpo
Esconda o desespero da surpresa

Por cair do céu, ele é soneto
Por ser poema, ele é destino
Por ficar no fim, ele é uma estrela


RETORNO - 1.Poema do livro No Mar, Veremos (Ed. Globo, 2001). 2. Imagem desta edição: cena de Asas do Desejo, de Wim Wenders.

21 de novembro de 2010

DIA DE JAZZ, POLÍTICA E POESIA



O que se faz num fim-de-semana no país que implantou a violência em todos os lugares, cobra os tubos por qualquer tipo de lazer, impede um convívio coletivo prazeroso na maior parte das vezes e dissemina uma programação torpe na indústria do espetáculo? Cada um encontra uma saída. Eu fico no Twitter (@neiduclos), onde me divirto compartilhando frases, poemas, informações e toques em geral. A seguir, uma síntese do que rolou ontem, sábado, dia 20 de novembro de 2010. Tudo em frases de no máximo 140 toques.


POESIA: SOM DE PALAVRAS


O vento passa batido pela rede e se abraça com a romã. A rosa não dá bola. Vistosa, quer casar com o arbusto de flor roxa, rodeado de vespas

Cheirei a rosa, olhei a Lua, via a primeira estrela, que há tempos não aparecia. Fiz dois pedidos. Ela estava me devendo

O dia mergulha no mar na caça de sereias, mas a noite ainda não veio. É quando ficamos no átrio morno de uma coleção de assombros

Enfim, sol, uma nuvem consegue cobrir tua cara. Agora podemos sair nas calçadas e celebrar a estação do calor que chega. É hora do realejo

O verão se impõe à primavera como amante bruto,mas ao cair da tarde cede. É quando a brisa noturna, de tocaia, o derruba sem mandá-lo embora

Diferente de outras artes, a poesia é a mendiga das palavras, que recolhe detritos em seu embornal e com eles faz pão para a eternidade

Em poesia você não diz, você toca um instrumento, a linguagem. O dito é a percepção alheia do que foi emitido pelo virtuose

Poesia é trilha sonora de palavras, que carrega sentidos visíveis ou ocultos. O significado vem a reboque dessa arte.


JAZZ: ALGUNS CLÁSSICOS

Pennies From Heaven - Billie Holiday http://bit.ly/0MJI

Ben Webster - The Brute http://bit.ly/cnKJit l

Gene Krupa Buddy Rich drum battle http://bit.ly/mLtDy

Buddy Rich stick trick solo http://bit.ly/dijDHd

How high the moon - Art Tatum , Lionel Hampton , Buddy Rich http://bit.ly/aenuRW

Art Tatum -- Tiger Rag http://bit.ly/MZpf

Miles Davis et John Coltrane - So what http://bit.ly/WUBzM

Dave Brubeck - Take Five -9 http://bit.ly/wokLK

Dave Brubeck - Unsquare Dance http://bit.ly/wqOU via Clovis Malta, no Facebook


POLÍTICA É LINGUAGEM


A inteligência é revolucionária e a imbecilidade, retrógrada

A linguagem é a única arma que eu disponho

Quem não tem medo de ser feliz por estar dependurado no butim acha que o resto é direita raivosa, fascista, melancólicos e patéticos

Direita e esquerda só tem relevância no boxe

Descobri que há tempos sou considerado de direita. Fico intrigado, pois também me chamavam de comunista. Essa divisão bípede é quadrúpede

“Direita raivosa” é a condecoração fartamente distribuída aos adversários pelos que se acham da esquerda amorosa

Aluno não é cliente, professor não é gestor, escola não é balcão de negócios. O ensino deve ser colocado longe do olho gordo dos predadores

Você não reduz o discurso de uma nação a um “aí, cara, valeu?” Ou uma literatura à correção consentida. Linguagem é transcendência

Na escola, você não aprende História, mas a ler História. Você não aprende Biologia,mas a linguagem da biologia. Linguagem é a única matéria

Não existem conteúdos. Existe apenas linguagem. Só o arco-íris é real, não o tesouro no final dele

Professor, fale a língua culta.Não elimine a chance de os alunos criarem em cima. Não tire esse prazer das novas gerações.Não clone a moçada

Se o professor acha que tem de falar a linguagem da moçada, o que a moçada vai aprender se todo aprendizado é linguagem?

O Brasil cospe nos seus talentos e distribui comendas para apaniguados porque tem um pacto com o apedrejamento

Zé Kéti vivia duro e abandonado. Quando morreu, celebridades montadas no ouro fizeram fila em frente às câmaras para falar bem do gênio

Lou Reed autografando suas letras e Kevin Costner de guitarra antes da dupla sertaneja: como fomos parar no mundo bizarro?

“Dar conta de que” é realmente de lascar. Tremenda gambiarra de texto:” Rumores dão conta de que BC vai intervir no Banco Panamericano”

Ao abster-se de condenar o apedrejamento, o governo colocou todos nós na vala comum da barbárie e jogou no lixo séculos de diplomacia

Atribuir ao Nordeste os problemas do seu quintal não é apenas xenofobia rastaquera, é inventar um novo conceito penal, a culpa geográfica

O Sul não é meu país, é o sul do meu País

Parem com essa asneira de O Sul é Meu País, que senão o presidente vai ser o Tarso Genro. Vê se cai a ficha

O PT considera milhões de pessoas “as forças do atraso, com seu discurso raivoso e de extrema-direita”.A extrema-direita vai exultar

Um governo com coração de pedra. À toa, à toa...

O governo ganhou com/ dos votos e ainda abraçado a uma aliança espúria, que agora cobra a fatura. Essa é a “popularidade” do grande líder

Se a oposição teve milhões de votos,além dos 2 milhões jogados fora, por que os responsáveis por atribuir 9% ao Lula continuam soltos?


COMPORTAMENTO: NO BAÇO


Tem pessoas que imploram por um corretivo.A sociedade não os atende e por isso se revoltam e vão até o fim para ver se conseguem uma punição

O mandiocão mija na sala de aula depois quase mata outro. E o soltam. Por que não atendem sua súplica e o prendem para cavar trincheira?

Se você sacudir as chaves do carro tem chance de ser atendido antes dos outros que chegaram primeiro. Costuma funcionar

Balconista continua ocupada e atende de costas. Chama a colega, que boceja. Esta não tira o produto da estante e diz que preço vai aumentar

Chegou tarde, disse o investigador apontando para os corpos. Pena, disse Chuck Norris. Estava precisando chutar uns rabos

Ninguém porta arma enquanto estiver na cidade, disse o xerife para Chuck Norris. Posso colocar sua cabeça no coldre, foi a resposta

Foi-se o tempo em que as pessoas tinham medo da ameaça nuclear. Hoje o pânico maior é quando Chuck Norris pega um taco de beisebol

Ouviste falar em educação? disse alguém depois de levar um esbarrão de Chuck Norris. Ouviste falar em baço? foi a resposta

Anunciar conteúdos é hábito do tempo do impresso. Coloque logo no ar e não cacareje antes da hora

Megaempreiteiro entesourador de butim público faz marketing: seus empreendimentos seguem a agenda do noticiário

Deveria ser o contrário: publicar no impresso as sínteses e as matérias completas na versão on line.Para ler rapidamente,só comprando jornal

Por que não colocam nada decente na televisão? Porque deve ser gostoso babar na gravata e arrastar a cacunda por corredores infectos

Programadores de TV negam tudo à nação para que não haja perigo de melhorar. Espíritos habitados poderiam apeá-los do cavalo

Os programadores de TV atribuem a própria idiotia ao público que os sustenta


RETORNO - As postagens obtiveram excelente repercussão em geral. Os clássicos do jazz foram super curtidos na noite de sábado. Mike Fox, de Illinois, destacou que consegui grandes videos de jazz. Mike é um aficcionado e gentilíssimo (faz questão de dar retorno)."So what", que abre este post, foi o mais retuitado. Costumo postar as músicas no ambiente maravilhoso do #botequimtuitajoaquim, liderado pela @cacildanc, uma das grandes agitadoras culturais do Twitter.

20 de novembro de 2010

MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO


Lembro de tudo, mas posso errar nos detalhes, não importa. O que vale é a memória, o rescaldo daquela época e as conseqüências hoje, pois 2010 é o resultado de 1968. Duas tendências opostas se digladiavam pela liderança do movimento estudantil naquele ano. Eu “pertencia” à AP, como se dizia, a Ação Popular, organização vinda da JEC, JUC e JOC, associações católicas, uma que reunia Estudantes secundaristas, outra Universitários e a outra Operários. Elas ficaram obsoletas, pois eram do tempo da democracia extinta pelo golpe de 1964 e foram substituídas pela AP, sigla mais abrangente, que reunia militantes para “derrubar a ditadura e expulsar o imperialismo”.

Essa era a palavra de ordem de AP, oposto à dos outros partidos, também clandestinos, como o POC, Partido Operário Comunista, que pregavam o povo no poder, ou seja, a ditadura do proletariado. A radicalização do processo, com o AI-5, fruto das mobilizações de massa bem sucedidas, que balançaram o governo, levou a AP para o maoismo (e de quebra o foquismo guevarista) e o POC e congêneres para o stalinismo. Combatentes das duas correntes optaram pela luta armada e “caíram”, como José Dirceu, enquanto outros partiram para o exílio, como José Serra.

Esse confronto ideológico se dava na elite hiper-intelectualizada das lideranças e seus clones, restando à massa as reivindicações básicas, usadas até o osso pela esquerda estudantil. As pessoas que não entendiam as diferenças entre as duas correntes, queriam apenas mais vagas na universidade, e que ela continuasse pública e gratuita, já que o sucateamento da classe média não permitia a muita gente pudesse arcar com os custos do ensino privado. Não atinávamos que a diferença de enfoque era fundamental, pois se você quer derrubar a ditadura e expulsar o imperialismo há margem para compor com outras forças democráticas, enquanto a palavra de ordem pela ditadura do proletariado restringia o espectro para meia dúzia de militantes.

O que aconteceu? O confronto democrático foi vitorioso, enquanto a guerrilha urbana e rural caiu em desgraça. Quando Gabeira, que seqüestrou embaixador, voltou, era a cara mais vistosa dessa esquerda que vinha participar do Brasil pós anistia. José Dirceu preferiu se esconder num pseudônimo no interior do Paraná, onde nem a própria mulher sabia da sua verdadeira identidade. O resto, a massa, estava amargando a ditadura e foi trabalhar porque a vida não faz graça com ninguém.

Na campanha eleitoral de 2010, as duas correntes se enfrentaram nas urnas pela primeira vez, mesmo que isso tenha sido mascarado por uma série de truques de linguagem, desde a religiosidade forçada da ex-chefe da Casa Civil quanto a tentativa de esconder FHC por parte do ex-governador paulista. A linha pacífica e progressista, que compôs com outras forças do espectro democrático, se digladiou com ex-guerrilheiros aparelhados no Estado, que sabiamente souberam unir as lições de Stalin com o diagnóstico de Raymundo Faoro sobre a hegemonia do Estamento no Brasil em Os Donos do Poder (não que mestre Faoro tenha a ver com essa choldra, pois ele fez apenas o diagnóstico e a denúncia). A esquerda que devora adversários e se livra de parceiros transformou-se na caratonha do Estado desvirtuado por décadas de ditadura.

Para quem continuou fiel à sua opção de apostar na democracia contra o aparelhamento do estado e seu entorno, ou seja, a sovietização burocrática, a perspectiva de censura e a festa do butim, Serra teoricamente enfeixava qualidades de oposição. Havia empecilhos, como seu envolvimento visceral com o fisiologismo pessedebista, uma dissidência do velho emedebismo, oposição consentida da ditadura; e o apoio dado pela direita reunida no DEM, partido que veio da antiga Arena. Mesmo com esses furos, Serra conseguiu 44 milhões de votos. Somados aos 32 milhões dos votos jogados fora (branco, nulos e abstenções), representam 2/3 do eleitorado, o que coloca por terra os pretensos 89% de aprovação ao atual chefe de governo.

Hoje vemos a presidente eleita ligando para José Sarney para decidir a parada de uma casa de luxo (funcional) para o senador petista em detrimento do senador goiano. Vemos o estouro do Banco Panamericano, que lança luzes sobre a manipulação do episódio da agressão a Serra. Vemos a ficha de Dilma que organizava assaltos, omitida durante a campanha eleitoral para evitar uso político, enquanto se sabe que a omissão também foi uso político.

Para enfrentar bandido, você não pode se transformar num deles. O pessoal do “povo no poder” não entendeu assim e partiu para o seqüestro, o assassinato e o roubo. Hoje se beneficia de uma contrafação, o político que veio das lutas sindicais e pegou carona nas reivindicações populares para permanecer no poder e entregar o país, a exemplo do que foi feito nos oito anos sinistros de FHC, o sujeito que inventou a reeleição e sucateou o patrimônio público (que não foi reestatizado pelo seu continuador, Lula).

Serra agora quer se reconstruir como líder da oposição. Acho difícil. A direita descobriu que tem cacife eleitoral e vai querer disputar a presidência. Pois isso a esquerda fez: ressuscitou a direita, que tinha sido enterrada depois dos anos de chumbo. Há o centrismo, tanto de Aécio como do PMDB, que são vorazes por poder e que dificilmente vão querer compactuar de novo tanto com o petismo quanto com Serra. A perspectiva é que o processo se radicalize novamente, com o fisiologismo no poder e a indignação popular se intensificando.

Fiz esse texto de memória. Quem quiser, que pesquise. Eu vivi esse tempo e posso falar. Talvez minha percepção não tenha se inteirado dos fatos mais importantes, já que sempre fui marginal ao processo. Mas sempre existe alguém que fica para contar a história. Não teve a mínima importância, mas eu briguei com todos em 1969, quando percebi, pela reundância do discurso, que estavam patinando e errando sem parar, o que prenunciava mais tragédia (a insensibilidade política diante das evidências). Minha opção na campanha presidencial veio de longe, teve um link com esse tempo em pé de guerra. Foi a primeira em que eu realmente me engajei. Gostei. Se preparem.


RETORNO - Imagem desta edição: a Passeata dos Cem Mil em 1968.

19 de novembro de 2010

PEQUENOS E PIONEIROS : CHÃO BRUTO


Um bom negócio pode ser feito a partir do que se gosta, mas nem sempre. Meu tio adorava carne de frango, que naquela época e naquele lugar, primeira metade do século 20 no interior do Rio Grande do Sul, era chamado de galinha (que é o frango saído da adolescência). Suas histórias de revoluções dos anos 1920 resumiam-se a determinadas situações. Uma era a aplicação de vacina antipiogênica nos soldados feridos e também de abundantes porções de mertiolate para a cicatrização rápida, já que o front era escasso de bravos. E a outra era a busca compulsiva por galinha nas investidas que fazia com seu pequeno destacamento (ele foi cabo e aposentou-se como sargento da Brigada Militar, a força pública gaúcha).

Pois esse tio lendário um dia resolveu montar um negócio: uma criação de galinhas! Claro que não durou três meses. Qualquer visita era motivo para o abate das penosas, sofregamente devoradas mais pelo anfitrião do que pelos convidados. Ele não conseguia romper a linha divisória entre o investimento e a comercialização, pois no fundo tinha feito o negócio dos seus sonhos: não precisava mais comprar seu repasto favorito (naquele tempo, carne de frango não tinha antibióticos nem químicas de preservação; era recomendado, por isso, para convalescentes).

O ator Walmor Chagas também caiu nessa armadilha. “Gosto de gente”, pensou ele e lá se foi serra acima para pendurar uma pousada no ermo. Fracasso total, confessou, pois um ator gosta é de encarnar criaturas e ser reconhecido pelo público e não ficar posando ao lado dos hóspedes que o atormentavam pedindo autógrafos a três por quatro.

Só o gosto não deveria servir de parâmetro para a iniciação no mundo empresarial. Não se monta um armazém, restaurante ou um 1,99 para satisfazer nossos caprichos. É para multiplicar o dinheiro investido e isso exige dedicação total e absoluta, e pragmatismo. Emoções atrapalham e aquela paixão, com o tempo, se torna amarga à medida em que surgem as contas e as coisas não andam tão bem como no início, quando a capitalização ainda não sofreu nenhum revés. Isso não significa que transformar vocação em lucro seja um tiro na água. Muitas vezes dá certo. Mas a mortalidade das empresas, gigantesca no Brasil, aponta para outra realidade.

É como a história dos golfinhos, decifrada certa vez, se não me engano, pelo Luis Fernando Veríssimo. Todos diziam que os fofos animaizinhos costumavam levar os náufragos são e salvos par as praias. Sim, mas aqueles que foram empurrados para o alto mar não tiveram a chance de dar seu testemunho sobre os inteligentes e espertos bicharocos. Empresa que morre não deixa muita história para contar. Não dá sorte, dizem.

Mas os fracassos rendem as melhores histórias. Não que eu me dedique a elencar o que não deu certo. Mas quando vejo o grande esforço das pessoas em tirar o pé da lama montando algo que deveria ser um sucesso e não é, fico sensibilizado. Gosto de quem tenta e o relato humano dessas tentativas forma um acervo de memória e humor difícil de ser substituído.

Como o galinheiro do empreendedor voraz, ou a pousada que ficou vazia por estar inacessível depois de uma estrada barrenta, existe muita coisa a ser passada nos serões familiares. Se é que eles ainda existem. Acredito que sim, nos black-outs, ou então quando a internet cai e ninguém mais tolera ver novela ou noticiário. É o momento em que as pessoas lembram daquela vez em que venderam tudo para apostar numa coisa que hoje provoca risadas a distância.

RETORNO - Este é um dos textos do meu livro inédito Crônicas de Negócios. "Pequenos e pioneiros" é o título do primeiro capitulo. A foto tirei daqui.

TESTAMENTO


Nei Duclós


Declaro o peito sem medalhas
e a farda azul das palavras

Declaro o beijo e o sobressalto
a tocaia no colo
o ombro pisado pelas águias

Acumulei o futuro no inverno
para soltá-lo, pantera
na perna dos incrédulos

Declaro minha solidão eterna
e a saliva coberta de noites em claro
a fome que passei
e a glória de engolir as pedras

A timidez como flor do vale
O amor como o vento de maio
e a agressividade também declaro
Que não tenha machucado
a quem eu quis amar



RETORNO - Imagem desta edição: obra de Ricky Bols.

18 de novembro de 2010

MARILU


Nei Duclós

Depois dizem
que tudo é coisa
da nossa cabeça
Que isso passa
Como passa Marilu

Ela vem de sombrinha
amarela na tarde
Seu pé tem sapato
De furinho
Ela nem cumprimenta

Balanço o ruído
na varanda
Seus cabelos em cacho
sacodem ao vento
Ela olha em frente

Eu sou o poeta louco
que a mãe de Marilu
falou para evitar
Por isso atravessa
a rua sem me ver

Mas quando dobra
a esquina, Marilu
gira a sombrinha
como doida.
Acho que é para mim

Existem atalhos
Poderia abrir o portão
num convite brusco
Ela talvez aceitasse
a loucura

Eu poderia falar
sobre a lua,
as estações, os duendes
Quem sabe o que lhe faria
ficar o dia todo?

Não posso é ficar
fingindo que penso
enquanto espero
Marilu passar
em direção à praça

Talvez um suco
de maracujá seja suficiente
para puxar conversa
Eu serviria num copo amarelo
de canudinho

Ela entraria e na sombra
da varanda ficaria me olhando
Eu dormiria então, para sempre
embalado pela dor de não ter Marilu
a não ser em meus pensamentos


RETORNO - Imagem desta edição: Mulher com Sombrinha, de Renoir. 2. Poema-crônica, de modelo antigo, meio fora de foco e que agora entra pelo blog, como uma brisa na tarde.

17 de novembro de 2010

ESQUINA


Nei Duclós

Procuro alguma coisa bela
na rua que perdeu a alma
a lua, alguma coisa nova

Procuro alguma coisa séria
a prova de que estou na terra
a estrela que não for loucura

Procuro alimentar os olhos
com a luz que brota na calçada
na curva de uma esquina clara

Procuro aquilo que me espera
o corpo que recusa o escuro
a mão que enfim me desamarra


RETORNO - 1. Imagem desta edição: Bruges, foto de Daniel & Carla Duclós. 2. Poema do livro No Mar, Veremos.

INTOLERÂNCIA


Nei Duclós

Durante séculos, os feitores deitaram e rolaram impunemente, mas a divida social tem de ser paga por você. É a lógica que impera na zona divisória onde não há mais margem de tolerância, território da cultura e do humor. Monteiro Lobato, coitado, não podia ter uma personagem negra como a cozinheira Tia Nastácia. Por esse pecado hediondo ele paga até hoje com a fama de racista, mesmo que todas as falas pertençam às criaturas da sua ficção. Seria o mesmo que acusar Tolstoi pela mortandade da guerra.

Lembro que no final dos anos 70 a mesma polêmica veio à tona. Foi a época em que uma nova geração descobriu a pólvora e queria ensinar a todos como as coisas devem funcionar nas mentes coletivas. Esse processo se transformou em endemia incurável a partir da chamada Nova República, quando todos aqueles que foram coniventes com a ditadura de repente viraram os heróis da hora. Arrivistas, reacionários e pulhas de todas espécies se auto-intitularam democratas e continuaram no poder, só que num degrau mais acima.

Quem perde são os gênios como Lobato. Tendo publicado toda sua obra, sem cortes, na época do Estado Novo getulista, Lobato é hoje vítima da censura. A começar pelas novas edições que acentuam as palavras, coisa que a célebre coleção de capa verde jamais fez. Deveriam respeitar a reforma ortográfica dele, que se mantém moderna, de vanguarda, enxuta e eterna.

Como “o brasileiro” (que fica muito longe de nós, já que somos italianos, afros, caucasianos, russos, franceses e sei lá o que mais) é muito mal educado, então as pessoas se sentem no direito de te atropelar. Nas filas, no trânsito, por toda parte a brutalidade impera porque há a convicção de que o Outro deve alguma coisa e precisa pagar caro por isso. O que temos então não é uma civilização politicamente correta, é o individualismo no seu auge sob o álibi das grandes causas coletivas.

A tolerância é garantia de sobrevivência. Sem ela, o mundo perde a graça e entra em guerra. Estamos há tempos em guerra civil e me pergunto se o acervo tungado da população seqüestrada, assassinada, roubada em tudo o que é canto, e mais o dinheiro grosso do tráfico de armas, drogas e pessoas entram nas estatísticas atuais de “desenvolvimento”. Teríamos então o crime a favor dos índices aparentemente favoráveis.

Vamos perder Lobato assim como as piadas do papagaio fanho ou as do Pedro Malazarte. Ficaremos sérios no canto sem cruzar o olhar com ninguém, já que o Brasil é machista, então você é suspeito de qualquer gesto. Não faça galanteios que pega mal. Não use certas palavras nem quando forem inevitáveis porque você poderá ser processado. Acredite piamente que nas últimas eleições a vitória foi do gênero e não de outros expedientes, conhecidos. Emigre, se for capaz. Será perseguido até os confins da terra, você, execrável ser criado no Brasil soberano.

Porque é disso que se trata: num país que se entregou totalmente para a especulação estrangeira, qualquer risco de nacionalidade (a piada, o autor genial) é tratada como crime. Mientras tanto, como dizem os hispânicos, a bandidagem dá as cartas em qualquer lugar.

RETORNO - 1. Crônica publicada na edição 317 do jornal Momento de Uruguaiana.2. Imagem desta edição: Lobato concentrado na sua criação.

16 de novembro de 2010

JÁ FOMOS MELHORES


Nei Duclós (*)

Falar bem do passado é uma atitude suspeita, criminalizada pelo evolucionismo barato que tomou conta das mentes com a crescente propaganda de governos cada vez mais incompetentes. Fico invocado com a repetição exaustiva de que o Brasil atual é um portento e só precisa fazer alguns ajustes para se tornar um fenômeno. Como acabar com a violência disseminada, a corrupção galopante, as obras inacabadas, a infra-estrutura podre, a prostituição por todo o canto, as drogas liberadas e vendidas a céu aberto, o desemprego em massa principalmente entre a juventude, além de outros fatores absolutamente casuais e sem importância.

A mentirada colou porque o bezerro de ouro atual é a estatística e número pode ser facilmente manipulado. Mas se você diz que num passado não muito remoto o ensino público era de excelência, chegam a duvidar. Ou rebatem com balanços maquiados sobre a verdadeira situação. Sabemos como estão muitas escolas públicas hoje. Ameaça de morte é comum, de alunos entre si e contra os professores. Há uma ajuda de custo para o estudo, então a meninada vai para merendar e fazer uma social. Não querem aprender, pelo que atestam vários testemunhos, pois são aprovados por decreto.

Nas décadas de 30 a 50 todas as classes sociais freqüentavam a escola pública, tida como rigorosa. As consideradas fáceis eram as particulares, o que não faz justiça ao grande nível que tínhamos no ensino a cargo de leigos ou religiosos. Mas educação era só um detalhe. Na cultura, tínhamos de Graciliano Ramos a Vinicius de Moraes, de Tom Jobim a Heitor Villa-Lobos, de Guimarães Rosa a Érico Veríssimo. O que temos hoje? Na diplomacia tínhamos San Thiago Dantas e Oswaldo Aranha e o que temos hoje? Nas ciências humanas tínhamos Celso Furtado e Sergio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes e o que temos hoje?

Bastava uma câmara apontar para uma cidade brasileira para emergir, no esplendor, o urbanismo do que chamam Brasil antigo e eu lembro que aquilo foi a Era Vargas. Vi documentários americanos sobre o Rio de Janeiro e outros lugares do Brasil. Vi um filme sobre São Paulo em 1954 e lá estava a cidade limpa, organizada. Propaganda? Nada. Era o Brasil muito melhor do que o de hoje.


RETORNO - 1. Crônica publicada nesta terça-feira, dia 16 de novembro de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Um exemplo do Brasil em 1942. 2. Imagem desta edição: Flamengo, Rio dos anos 40: a limpeza e a harmonia do espaço público. Brotou assim, do nada? Não, porque existiam políticas públicas de limpeza de espaços públicos. Foi assim não por ser "antigo", mas por ser a Era Vargas. Sente saudade? Basta ter um governo decente para voltarmos a ser o que fomos, muito melhores em tudo.

15 de novembro de 2010

BATISMO A GALOPE


Nei Duclós


Bento Martins batiza a rua num ato de guerra
Leva a bandeira do Brasil que enfim nos liberta

Os paraguaios dispersos caem sem luta
Voam na garupa da nossa vanguarda

O Imperador veio convocado pelo drama
Havia um impasse insolúvel entre fardas

Ele ordenou o ataque exausto da viagem
feita com enchente no pampa sem estrada

Chegou a ficar preso na porta de uma casa
Onde foi recebido com galinha d´Angola

O resgate encontrou-o com nova amiga
cozinheira de beira-chão que gargalhava

O riso era oposto ao clima de corrupção
do cerco que a grana tornou confortável

Mas a solução veio a cavalo numa só carga
quando Bento Martins comandou a batalha

O rasgo da tropa em direção ao rio
até hoje existe e serve como prova

Nessa rua riscada pela ação de um bravo
Fui criado solto, mas havia sentinela

Naquela época eu nada sabia de História
Era íntimo apenas da geografia da calçada

Ao grito de “olha-o-Loco” corro para o quarto
Todos somem quando o perigo mostra a cara

Esse medo antigo não se confunde com respeito
Respeito é para Bento Martins e sua glória

RETORNO - 1. Imagem desta edição: Dom Pedro na Guerra do Paraguai, desenho de H. Fleuiss (Semana Ilustrada, 1865). Tirei daqui. 2. Este poema foi feito a partir de um trecho dos Diários de André Rebouças, citado por Monteiro Lobato numa crônica.

13 de novembro de 2010

COMER, REZAR, AMAR: ALTERIDADE A SERVIÇO DO MESMO


Não basta conquistar o mundo economicamente pelo capital especulativo, politicamente pela pax americana e militarmente pela invasão do Oriente Médio. É preciso mostrar que o mundo está a seus pés na indústria do espetáculo para a coisa funcionar direito. Nem é preciso homens para isso, esses estão torturando e matando civis em Bagdá. Uma mulher é suficiente, uma personagem de best-seller interpretada por Julia Roberts, para colocar o planeta no chinelo: a Itália e seus "macarroni" e gestos exagerados, a Índia com sua miséria e espiritualidade tornada de resultados e de auto-ajuda e o Brasil na pele de um latin lover interpretado por um espanhol, Javier Barden, no mais ridículo papel de sua carreira (sentindo “saudade” e tocando bossa nova para dançar).

O que me espanta é que fazem um auê em cima de um filme como Comer, Rezar, Amar (2010) e tudo não passa da velha história da americana enjoada que vai para o terceiro mundo mudar de testosterona, já que os conterrâneos que não queimam vivos as populações pobres não dão no couro, pelo menos é o que parece. Um é infantil, o outro gelado e o outro velho e sofrido demais. Enquanto isso, a pobre da americanazinha se desespera pelo que suas necessidades clamam.

Fora a obviedade da falta que deve fazer a força do carvão de pedra, os motivos de tanta infelicidade não ficam muito claros, já que relationship é a palavra guarda-chuva que abriga tudo, de casamento a transas esporádicas sob sua sombra. Só sabemos que ela reza por um homem, exausta dos que se atravessaram no caminho. Dinheiro, emprego, casa, comida e roupa lavada não são suficientes, a moça parte para terras ignotas saborear petiscos e farejar algo que a livre da solidão tenebrosa a que está condenada, por razões misteriosas.

Trata-se de uma grande suruba mental globalizada, num clima de barcos singrando o entardecer, fogos fátuos de lareiras e fornos com perus e pizzas, paisagens bucólicas onde se anda de bike para, ó clichê, ser atropelada pelo futuro amor. Mas a tragédia maior são os diálogos, com frases do tipo "abra-se para um novo amor, que está na hora", ou "deixe o universo entrar com tudo no vácuo que você criar se perdoando", ou algo assim. É um troço escabroso essa cultura pret-a-porter que encanta as mentes rasas como pires na grande festa da comunicação de massas caseiras.

No fundo, é filme turístico, espécie de teaser de agência de viagens, propaganda de ong que faz ricaça de Nova York lavar o chão do templo para expiar culpas, ou silêncios obsequiosos falsos que servem apenas para melhorar a performance da garganta. O filme é de chorar de raiva, principalmente quando vemos uma atriz razoável como Julia Roberts, com sua boca de bagre que parece recém ter saída do bisturi do cirurgião plástico, fazer o papel da moçoila em busca de um amor jamais correspondido.

Enquanto ela bate calçada fingindo que está à procura do teu verdadeiro tu, o fato é que precisa casar, como dita a velha lei do mercado. Tanto é verdade que o ridículo casamento indiano arranjado, em que os noivos se conhecem nas bodas, é tratado como grande coisa, uma espécie de encontro compulsório com a felicidade. O que derruba por terra todo o palavrório de escolhas. O que pega mesmo é ganhar um marido e não se fala mais nisso. E continuar americana, claro, porque disso eles não abrem mão. Índia, Bali, Nápoles, tudo bem para passar um tempo. Mas o que vale é a home, a América velha de guerra, em que uma vaquinha de 18 mil dólares pode comprar a casa da curandeira pobre divorciada.

Pobre Sétima Arte. Virou clipping de almanaque de curiosidades, com lágrimas de crocodilo inundando as praias como um tsunami de idiotias.

12 de novembro de 2010

LUA SUJA


Nei Duclós

Não se preocupe com os poetas
Eles jamais desistem
Quando parecem mortos ressuscitam
Quando parecem mudos recitam

São como sonetos, sumidos
Que alguém descobre num porão
E resolve testar o formicida
Para ver se funciona o intestino

Não que sejam suicidas, não por isso
São apenas fórmulas sem vidro
Soltas junto ao pó das tardes de domingo

Você aspira e está perdido
O poeta aparece com seu manto de espinhos
Espírito de sol, luas encardidas


RETORNO - Imagem desta edição: "Little house I used to live in", obra de Ricky Bols.

11 de novembro de 2010

O QUE É PRECONCEITO?


O significado tradicional mostra o preconceito como a velha defesa do privilégio contra a existência e as necessidades dos subalternos. Ou a arma étnica contra a diferença. Ou uma maneira de punir a culpa geográfica, aquela mancha de quem nasce em regiões consideradas endemicamente atrasadas. Mas hoje há um novo uso para a palavra preconceito, escudado nos crimes que ainda se cometem com ele. Trata-se de uma contrafação, inventada para punir adversários políticos.

Hoje, nesse enfoque, o preconceito é o crime imputado de maneira unilateral às pessoas de bem. É maneira de os bandidos que estão no poder vilanizar quem não tem culpa em cartório. Como não podem pegar gente honesta com seus expedientes escrotos, então eles se apropriaram do preconceito, que na mão deles virou um conceito difuso, sob medida para qualquer caso. Como alguém honesto é o maior filha da puta que existe, pois impede que os sacanas ganhem a vida, a solução é tirar o bom caráter do caminho, pois só atrapalha, para que os cofres se abram e os meliantes possam se servir, amparados pela lei.

Preconceito é, portanto, tudo o que impede os pulhas de obterem vantagens e ganhar uns trocados. Se, por exemplo, eu tiver 13 anos de idade e uma editora quiser lançar minha biografia, chamo de preconceituoso quem for contra. O mesmo acontece em relação aos que se insurgem contra quem quer entrar na faculdade fingindo-se de preto, mesmo que tenha a pele mais pálida do que o Batman (sem a máscara). Se você quiser enquadrar os alunos que batem os colegas e ameaçam os professores de morte, ou mesmo os que matam nas escolas, será certamente um cara cheio de preconceito.

Se você, que não é homofóbico, achar um exagero que o dinheiro público cacife as gigantescas celebrações da homossexualidade, sem uma contrapartida da heterossexualidade, e que isso vai tornar a viadagem obrigatória para as próximas gerações, esteja certo: você é um sujeito preconceituoso. Nem tente se opor à possibilidade de transexuais darem conferência sobre troca de sexo para os petizes nas salas de aula, que isso está previsto nos planos dos poderes. Não seja preconceituoso. Também não poderá impedir que alguma sujeita resolva fazer trottoir em frente da sua casa. Ela estará descontando para a aposentadoria, se tudo der certo na legislação prestes a ser aprovada. Sexo como profissão é coisa séria e qualquer coisa o gigolô virá tirar satisfações se você chamar a polícia. Preconceito dá cadeia, cuidado.

Se você condena as pessoas que usam a indústria da Justiça do Trabalho para tungar empregadores fingindo acidentes,estará ferrado. Vão te perseguir até o osso e terás que te explicar direitinho, tintim por tintim e ainda pagar indenização, pedir perdão e qualquer coisa, uns 40 anos de cadeia, já que a prisões não foram feitas para criminosos de crime hediondo, como assassinato, latrocínio, estupro. Existe lei neste país! Ao atentar nesses detalhes, a escravidão é deixado à larga, pois é mais importante encher o saco das pessoas do que tomar uma atitude contra os escravagistas. E para quem chama o outro de cabeça chata, negão, japonês, alemão ou barata descascada, ferro na boneca.

Para escapar da condenação perpétua, os suspeitos de preconceito – todas as pessoas de bem – devem decorar um glossário de correção. Como não se pode mais ouvir ou contar a anedota do papagaio fanho, pois isso é preconceito contra animal em extinção, é melhor proferir a parábola do Louro (epa, louro não), melhor, do Psitaciforme Nasalmente Prejudicado. Melhor não contar anedota e aderir ao stand up, que é a forma mais cool de dar o cu no lugar de fazer rir. Veja como ficam de pezinho com as mãozinhas fazendo graça os apresentadores de TV e alguns jornalistas esportivos, obedecendo ao estilo da moda, que é dizer coisas graciosas sobre coisa nenhuma.

Mas tudo isso é puro preconceito. O esporte está aí e você deve malhar, caminhar e fazer o seu melhor, pois se fizer o seu pior poderá pelhorar, como diziam antigamente no interior, quando havia interior, antes que o país virasse essa merda insuportável, cheio do boçaizinhos cagando regra.

RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui. Cuidado, papagaio fanho, o preconceito vai te pegar.

10 de novembro de 2010

RIO DO EXAGERO


Nei Duclós (*)

O Rio é puro exagero, sobra em tudo. A vocação para o excesso se manifesta não apenas nas imagens, mas também nas palavras, quando ousamos abordar um lugar que não cabe na nossa percepção. Isso nos permite dizer que a paisagem do Rio não é obra do acaso. É, antes, uma arquitetura concebida para a cidade que nela nasceu. Uma inspiração misteriosa desenhou com antecedência o abraço singular entre a natureza e o universo urbano. Como se a Criação fosse disposta de maneira precisa, pautada pela comunhão da montanha com o monumento, da baía com o aterro.

Bairros próximos e distantes trazem ainda esse pacto de nascença. É quando o granito inspira o alicerce, a praia convida o porto, o sol conversa na calçada, a brisa namora o esforço e tudo deságua num momento especial, como em tarde luminosa ao som de Tom Jobim. Ou manhãs animadas pelo ritmo dos passos, como num samba de Candeia. Ou ainda crepúsculos definitivos, como se cada entardecer fosse a última pincelada na secreta arte de encerrar o dia.

Esse abraço entre cidade e ambiente obedece a uma tradição árdua, de uma História de grandes feitos, hoje esquecidos diante dos desafios do paraíso. Foi preciso uma dura adaptação diante da ousadia dos pioneiros. O coração balançou entre tantas etnias e nacionalidades, mas no fim a opção foi a entrega a um povo que inclui todas as cores.

Foi uma decisão a favor da busca pela perfeição. A tradição evoluiu para a modernidade, assim como a contemplação abriga hoje a ação e o movimento. Ser sede das Olimpíadas em 2016 é um sintoma dessa herança que gira em torno da esperança. A paz é a chance de vitória quando as ameaças parecem eternas.

O patrimônio do Rio segura o futuro como o Corcovado ampara o Redentor em seu vértice. Trata-se do registro de uma transcendência, capturada desde cedo entre nós, pelos viajantes que conheceram a obra já definida. Como aconteceu com o bom pastor anglicano R. Walsh, que percorreu o país a pé e em lombo de mula e escreveu Notícias do Brasil (1828-1829).

Quando estava cruzando a Serra dos Órgãos, entre picos altos e esguios como minaretes turcos, ele viu a planície ornada de vilas, que se estendia até a beira da água, onde começava a linda baía escoltada por ilhas e navios de todas as partes do mundo. Além, era a cidade que ia da onda até os morros, com encostas cheias de chácaras e no alto, igrejas e conventos. Mais para o fundo, o Pão de Açúcar e o Corcovado e por fim, ao longe, as águas azuis do Atlântico, estendendo-se pelo espaço infinito até se perderem no azul do céu.

Essa é a visão de um estrangeiro, que soube descrever a exuberância de um lugar que rompe todos os limites. Do samba ao rap, do poema ao romance, da pintura à performance, do banho de mar ao trabalho, o Rio é um canal de vivências intensificadas. É um convite permanente para o exercício da arte e para os talentos da mente e do corpo. Há nele a certeza de estar pronto desde o início da Criação.

Por isso mantém a forma. E nos leva para o exagero, que é, no fundo, a essência da Cidade Maravilhosa.


RETORNO - (*)Texto publicado originalmente na revista Legado, da editora Letras & Lucros, da minha amiga Mara Luquet

9 de novembro de 2010

MANIPULAÇÕES


Nei Duclós (*)

Os fatos eram incontestáveis quando se baseavam no depoimento idôneo. A credibilidade do sujeito emprestava veracidade ao objeto narrado. Havia oposição nos fóruns, no Direito Penal, nos debates políticos, e também folclore quando a platéia rodeava um mentiroso contumaz. Mas uma base sustentava a fé do ouvinte, que se alimentava da certeza das falas postas em questão. Isso cruzava a sociedade como um raio de luz, em redor do qual girava a sabedoria do lugar comum, marca registrada dos tempos antigos.

Quando dinamitaram todas as colunas do templo da razão e da fé, um buraco negro devorou o acervo longamente acumulado. Coincidiu que no mesmo momento a mídia multiplicasse seus recursos por meio dos avanços da tecnologia e da mudança de paradigmas. A comunicação, que imitava a estrutura tradicional de narrador/ouvinte, autor-leitor, fonte/estuário, virou de pernas para o ar, pois cada pessoa hoje pode inventar um núcleo narrativo na tela do seu micro. Mesmo quando só reproduz mensagens alheias, ele se transformou num nicho emissor.

O que existia em potencial ou restrito a determinados lugares ganhou acesso internacional. Começamos então a provar o sal dos e-mails bandidos, das avalanches de vírus, das mensagens não solicitadas. Aportam nos nossos espaços pessoais, protegidos por senha, as mais bizarras manifestações desse espírito de porco que se alimentam da liberdade para detoná-la. Parece feito de propósito. A legislação cai matando em cima dos excessos e, de quebra, pode aparar excessivamente as arestas dessa festa mundial de interação por meio de bits e bytes. Talvez nossa atual vida digital compartilhada seja conhecida no futuro como a era de ouro da Internet, quando éramos livres e não soubemos aproveitar.

O mais grave da veloz correnteza de palavras, imagens e sons seja a recente capacidade de desvirtuar o que os adversários dizem uns dos outros. Basta seguir a política nazista do ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, de repetir uma mentira tão exaustivamente até que vire verdade. Ou, como queria Lênin, atribuir aos outros o que eles dizem de você ou apropriar-se das críticas alheias para virá-las contra elas.

A idoneidade perdeu status e nos vimos cercados de cães em pleno deserto.

retorno - 1.(*) Crônica desta terça-feira, dia 9 de novembro de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.2. Imagem desta edição: tirei daqui.

8 de novembro de 2010

POR QUE LULA NÃO PODE SER COMPARADO A VARGAS?


Depois de eu tuitar sobre esse assunto, o jornalista e amigo Cesar Valente me sugeriu fazer um post com o título acima. Gostei da sugestão e adicionei algumas frases. Depois de destruírem a Era Vargas, agora querem cloná-la com uma contrafação, os mandatos intermináveis do petismo triunfante. Tudo o que falaram mal de Vargas eles fizeram, do populismo à eternização no poder. Pois é preciso resgatar as evidências e acabar com essa sacanagem pseudo-teórica. Vargas é o anti-Lula, ponto. Em tudo o grande estadista se opõe ao enganador que não sai mais do Planalto.

A Era Vargas é aquela em que o chefe de gabinete do Ministério da Educação era o Carlos Drummond de Andrade. A Era Lula é a do Enem.

Na Era Vargas foram consolidadas as leis trabalhistas, o maior programa de distribuição de renda via emprego. Na de Lula, Bolsa Desemprego

A Era Vargas é a do monopólio do Petróleo. Na de Lula, é a das 108 concessões a empresas estrangeiras, que usufruem nossas reservas

Na Era Vargas, tínhamos um gênio a cada metro quadrado, graças a políticas públicas de educação e cultura. Na de Lula, há um idiota por m.2

Vargas trabalhava todos os dias no seu gabinete. Recebia os ministros de manhã e à tarde despachava vários assuntos. Lula viaja, não pega no batente

Vargas jamais foi para o Exterior. Quando Roosevelt precisou do Brasil, veio até nós. Lula vive roçando os tapetes dos palácios estrangeiros

Logo que assumiu o poder em 1930, Vargas iniciou uma completa reformulação da dívida externa e a zerou em 1945. Lula mascarou a dívida externa

Vargas ampliou e consolidou o parque industrial, providenciando o principal insumo, a siderurgia. Lula sucateia a indústria com quinquilharias chinesas

Vargas manteve inalterado o cruzeiro, moeda forte brasileira, por mais de uma década. Lula atrai excesso de dólar para barateá-lo e fingir que o real é forte

Vargas fortaleceu o capital produtivo por meio de um sistema bancário competente. Lula deixa os bancos nacionais serem engolidos pelos estrangeiros

O Brasil tinha grande prestígio internacional na Era Vargas. Na Era Lula, somos os palhaços do mundo, abraçados a tiranetes de quinta categoria

O ensino público e gratuito era de excelência na Era Vargas e os professores, respeitados e prestigiados. Hoje aluno mata professor em aula

Nossa música, literatura e arte alcançaram os mais altos níveis na Era Vargas. Hoje temos o que há de pior devido ao massacre dos talentos

Então não me venham comparar Vargas a Lula sob o guarda chuva impróprio do “populismo”, esse conceito inventado para destruir Vargas

Vargas não falava para nem cuidava dos “pobres”, mas para e dos trabalhadores. Remunerava o trabalho assim como o capital.

Fazem tudo para destruir a obra de Vargas, principalmente tentando comparar o imbecil ágrafo e entreguista com o grande estadista do passado

E se vieram com a velha conversa de que Lula foi eleito e Vargas não, digo o seguinte. Vargas foi eleito duas vezes, uma pela Assembléia Constituinte em 1933 (por sua vez eleita pelo voto direto) e outra pelo voto direto, de lavada, em 1950. Foi derrubado duas vezes: uma por um golpe militar em 1945 e outra quando foi forçado a suicidar-se em 1954. Derrotou e neutralizou os comunistas em 1935, que promoveram uma quartelada mal sucedida, e em 1937, quando criou o Estado Novo nacionalista, impedindo que os adeptos de Hitler das Forças Armadas tomassem o poder.E sua trajetória como presidente começou em 1930 quando, à frente de uma revolução popular, abortou o processo de fraude eleitoral da República Velha.

Getúlio Vargas, presente. Longa vida à sua obra.



RETORNO - "IGUAL AINDA NÃO EXISTIU"


Comentário de Reni Souza para este post

“É verdade. Igual ao Getúlio ainda não existiu. Talvez não existirá. Quem poderia ter sido, Brizola, já não será. Mas o triste não é só isso. O triste é saber que a historiografia escolar nacional o ignora totalmente. Promove uma lacuna em era tão importante para o Brasil. O tempo em que se organizou a nação e o Estado. Croiu-se instituições capazes de manter ambos. A ele devemos a organização judiciária, o voto feminino, os direitos trabalistas e o direito a salário em dinheiro. A criação da classe média e do funcionalismo público com acesso a todos por concurso público. O desenvolvimento econômico, prospecção de petroleo, criação da Petrobras, CSN, Mineração, Comunicações, Geração de Energia Elétrica, Regulação em todas as áreas.

Hoje em dia ainda se vive as leis trabalhistas, o Código Florestal a regulação da mineração, o uso do subsolo, o cuidado com os rios. Infelizmente a literatura disponível sobre esse período da história recente do Brasil não lhe é honesta. Eu digo honesta porque o Getulio Vargas não precisa que se lhe ilustrem seus feitos. Basta tão e somente que falem a verdade sobre ele e seus atos de governo. E que a estudantada brasileira possa ter o direito de conhecer a verdade para poder se orgulhar de sua brasilidade.” (Reni Souza)

7 de novembro de 2010

O MASSACRE COMO NARRATIVA

A primeira edição brasileira do clássico argentino Operação Massacre, de Rodolfo Walsh (1927-1977), escrito e lançado sucessivamente a partir de 1957 (teve quase 40 edições) , acumula as várias camadas de uma narrativa: a do escritor de romance policial que substituiu a ficção para investigar um caso concreto, e nele enterrou sua vida, deixando um rastro de testemunhos pessoais sobre o trabalho do escritor e seu objeto. Trata-se da versão final do livro e de seus prólogos, epílogos e apêndices publicados ao longo dos anos, que aos poucos recortam o caminho percorrido pelas palavras em busca do inacessível, o fato, que sempre é capturado como versão.

Costumam lembrar A Sangue Frio, de Truman Capote, escrito dez anos depois. Mas prefiro resgatar Rota 66, de Caco Barcelos, pela proximidade da metodologia: a minuciosa busca de provas e o cruzamento de informações e testemunhos para se chegar à revelação de que o Estado policial se move pela injustiça e tudo faz para acobertar, justificar e premiar os criminosos, passando ao largo da tradição judicial, dos instrumentos civilizatórios e até mesmo dos arremedos de democracia.

O livro é sobre si mesmo: como compor um texto que traga à luz a barbárie cometida contra 12 argentinos inocentes, fuzilados no calor de uma contra-revolução derrotada, a que tentou restaurar o peronismo nove meses depois do golpe que afastou o líder do poder. Levados para um lixão na periferia de Buenos Aires, no mais completo breu, foram fuzilados à luz dos faróis de uma velha camioneta policial, o que facilitou a fuga de sete sobreviventes. Recompor o evento e seguir os passos de cada um dos personagens, descobrindo como morreram ou conseguiram evitar a morte, foi o trabalho de Walsh, que na época tinha apenas 29 anos.

Apaixonado pela literatura pretensamente fundada por Edgar Alan Poe, Walsh tinha descoberto antecedentes ilustres dos investigadores d crimes, enxergando no Livro de Daniel, da Bíblia, a semente do gênero que no século 19 virou arte literária. Era um especialista e tinha já publicado, além de vários contos, uma antologia onde entravam os escritores que levaram para a Argentina as descobertas de Poe, Borges e Bioy Casares. Walsh foi fisgado pelo assunto da mesma forma que Joseph Conrad quando seduzido pelo caso do Agente Secreto: de maneira casual, por meio de uma conversa qualquer. Com Conrad foi na rua, com o argentino foi numa partida de xadrez.

O escritor encontra o mote, o plot de sua história e sopra-lhe um coração que bate até depois de seu desaparecimento. No caso de Walsh, que a partir dos resultados pífios dessa investigação acabou radicalizando suas posições, saindo de uma indiferença política para um engajamento armado via Montoneros, a obra cresce à medida em que o tempo se afasta daquele episódio sinistro, precursor do pior que iria vir com a grande mortandade promovida pelo ciclo dos generais. O que encanta é a lucidez do autor, que sabe ser esse caso um defunto, pois ninguém mais atenta para meia dúzia de coitados levando tiros de mesericórdia na noite gelada. E com o excesso de mortos que vieram depois, quem se importa? Mas é essa visão crua do seu trabalho que torna a obra imperecível.

Como ele não se ilude, procura manter o prumo da realidade levantando todos os detalhes do crime e fazendo o papel do detetive que não dá quartel e assume uma postura ética diante do drama, longe da indiferença charmosa que pontua a literatura policial, principalmente com os inovadores Dash Hammet ou Raymond Chandler. Walsh se transforma no seu personagem e morre com ele, quando é fuzilado pelas forças da repressão depois de escrever uma carta aberta à ditadura argentina que derrubou Isabelita Perón, um texto que é um primor de precisão e estilo, considerado por Garcia Márquez uma das jóias da literatura universal.

Talvez não existisse a grande revanche da sociedade argentina hoje contra seus algozes não fossem esses textos de seu ilustre filho e mártir. Foi preciso que ele descesse às catacumbas, trouxesse à luz não um massacre político, mas um crime comum mascarado de lei marcial e que foi desmoralizado pelo trabalho paciente do escritor repórter numa saga que é uma referência poderosa do melhor jornalismo. E que não faz nenhuma concessão nbem para as mais nobres causas: “A gente do povo não morre gritando Viva a pátria! como nos romances. Morre vomitando de medo ou maldizendo seu abandono.”

A Companhia das Letras teve a gentileza de me enviar um exemplar para que eu pudesse ler esta grande obra. Agradeço à editora e espero ter contribuído, com esta resenha, para que Walsh atinja mais o público brasileiro, tão necessitado de referências nesta quadra asquerosa da imprensa brasileira, quando tudo é contaminado pelo interesse político, a mentira e a linguagem em estado terminal, longe do esplendor da melhor literatura de não ficção, que fez a glória de gerações passadas, marcadas pela tragédia, mas que cumpriram um destino mais condizente com a grandeza humana.(Nei Duclós)

6 de novembro de 2010

LINGUAGENS ARTIFICIAIS


A língua portuguesa foi assassinada. Era humanista, generalista, aprofundada, completa, humana, brilhante, maravilhosa. No seu lugar foram colocadas inúmeras linguagens artificiais. Não são mais as linguagens cifradas, das profissões tradicionais, quando um advogado ou médico cercava seu ofício com reservas e barreiras ao leigo exercendo um jargão que identificava seu status. Agora são linguagens pretensamente facilitadoras, que compõem um código bizarro, onde misturam a falsa sabedoria, o pragmatismo rastaquera e a falsidade ideológica. Vamos aos exemplos:

JORNALÊS - Existem exemplos diários, um pior que o outro. Usa palavras como “suposto” (fruto da edição Pôncio Pilatos, que lava as mãos e terceiriza tudo para não se envolver) e expressões como “ao menos” (o maior serial killer em atividade, pois a toda hora morre ao menos 30 pessoas). Cria monstros como “expõe que prioriza”, entre outras barbaridades. É resultado do sucateamento de uma profissão perigosa, que peitava o poder e não se deixava levar pela sedução da bandidagem. Uma profissão que morreu. O jornalês é o cogumelo que brota no seu corpo decomposto.

ATENDIMÊS - É a linguagem-carrossel, que recomeça sempre do mesmo ponto, por mais que você tente desviar o rumo para o que realmente interessa, o motivo porque você está ali tentando comprar, reclamar ou sugerir. Você pode recitar os Lusíadas ou dançar um tango argentino para o sujeito do atendimês que ele vai recomeçar com um “então...” no segundo seguinte. O atendimês te ignora, porque para isso foi concebido para que as corporações deitem e rolem em cima de você enquanto entopem o mundo com sua publicidade.

MARQUETÊS
- É a linguagem que pergunta teu nome para fazer dele a âncora da chatice insuportável. Sabe Pedro, então, Pedro, você compra nosso pacote, Pedro e terá que assinar fidelidade por seis anos, Pedro, mas isso passa rápido, Pedro, pois você terá todas as vantagens...Pedro. Se você disser que não está interessado, o marquetês vai exultar de alegria e perguntará quando poderá passar na tua casa para você enfim assinar o contrato que está tentando evitar.

POLITIQUÊS
– É a linguagem que condena imposto na campanha e a primeira coisa que faz, logo que é eleita, é exatamente criar ou resgatar um bom e velho imposto. Não é que sejam falsos, são simplesmente bandidos. Estão acostumados à submissão da cidadania por isso fazem o que querem e bem entendem, pois aproveitam as demandas e carências para engabelar todo mundo e sair lampeiro contando as cédulas que sobram de tudo que é lugar. O politiquês adora dizer saúde e educação. É o troço que mais dá dinheiro.

CORRETÊS
- É exercido pelos caçadores de Lobatos, defensores tardios de tias nastácias, processadores de opositores, afogadores de opiniões, caluniadores profissionais, festeiros da ilegalidade, reescrevedores da História, sabujos melosos, odientos miseráveis e cagadores de regras em geral. Serve para condenar tudo o que você disser para que o butim encha as bocas escancaradas por cargos providenciados pelo sucateamento da cultura, do talento e da arte.


RETORNO - Imagem desta edição: Engenho, obra de Ricky Bols.

5 de novembro de 2010

O QUE É UMA BIOGRAFIA?


Nei Duclós (*)

Biografia é tudo o que os outros dizem da sua vida, independente do que você faz, pensa ou sente. Funciona assim: alguém seleciona o trecho da própria percepção sobre o que viu um dia você dizer ou fazer e então, a partir esse retalho, constrói toda uma história. Vai desde o nascimento (em circunstâncias ou família suspeitas), passando pelo principal, que é o objetivo de toda biografia: jogar tudo no lixo. Pois para isso servem os biógrafos: para usufruir do destaque (imerecido, claro) do personagem para poder escorrê-lo inapelavelmente água abaixo.

Esse trabalho conta com inúmeros voluntários. Ao longo da existência, a vítima ouvirá a cobrança interminável: “Ué, mas tu não é carpinteiro? Por que então deixou de pregar aquele prego na cúpula da Igreja da Matriz em 1859, quando estava chovendo?” Ou então: “Mas tu não é de esquerda? Então por que decidiste colocar na urna o nome suspeito de pertencer a todas a direitas?” Quando o biografado faz um lance ousado, como peitar na bandidagem que assume o poder posando de revolucionária, imediatamente há um coletivo suspiro de alívio. “Ah, eu sabia, ele sempre foi de direita”.

Mas há uma vantagem quando chega enfim a meta da biografia, o lance de jogar o nome na sarjeta: a pessoa alvo da barbaridade enfim se livra da cobrança. Já está devidamente enquadrada e assim poderá viver longe dos olhos críticos contra uma vivência pautada pela honestidade e a ética. Quando não há esqueletos no armário, inventam armários para de lá tirar...o esqueleto. Se a lama não sujar para sempre a paz do biografado, ele poderá usufruiir de uma vida pacata, sem que ninguém lhe peça documentos para cruzar os umbrais. “Você não toca violão? Então porque não está interpretando uma valsa nestas cordas inúteis?”

Por que acontece isso? Talvez o espírito de porco deva ser uma coisa gostosa de assumir, tanto está disseminado pelo tecido social. A coisa mais engraçada que existe, e disso sabiam os diretores dos antigos pastelões, é alguém levando um tombo. Hoje, na Era da Mediocriade, alter ego da propalada Era do Conhecimento, a moda é derrubar a imagem dos gênios. Já que não existe mais formação à altura do que os grandes nomes da literatura e da ciência produziram, então o negócio é arrastar biografias ilustres para o lixo.

Foi assim que foi decretada a inexistência de Shakespeare, Einstein virou autor de frases falsas de auto-ajuda e todo inventor não é autor do seu invento, agora atribuído à esposa, um vizinho ou mesmo ao Catchorrinho. Por que é bom usar o estilingue contra vidraças tão vistosas. Borra-se ou rouba-se grandes obras de arte e não falta nada para dizer que todo grande artista no fundo, fazia parte de outro time, não ao que sempre pertenceu.

Parece que o velho comadrismo tomou conta da cultura. Por isso gosto cada vez mais de gênios como Jorge Luis Borges, anatemizado por suas posições políticas. Na sua História Universal da Infâmia, aventureiros sem escrúpulos compunham biografias falsas para ludibriar as sociedades cretinas. Pelo menos, havia concorrência ao mau hábito de inventar coisas sobre os outros.


RETORNO - (*)Crônica publicada originalmente no jornal Momento de Uruguaiana, edição número 315. 2. Imagem desta edição: Estátua em Antuérpia, foto de Daniel Duclós.