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26 de novembro de 2010

AULAS DE POLÍTICA


Nei Duclós

Não acredito que existam formadores de opinião. Conheço meus compatriotas. Todos nascem com convicções extremas e ai de quem se atravesse no caminho. No berço, já levantamos o dedinho para expressar as certezas que trazemos do Outro Lado. Nós, brasileiros, viemos todos da mesma origem: de um Limbo que é praticamente uma escola de política. Lá, estudamos por toda a eternidade os grandes temas que ficam em roda dos vivos. Quando encarnamos, já chegamos calçados.

Lembro dos embates nos grêmios estudantis do ginásio. Tínhamos brizolistas de nascença e Lacerdas em carne e osso. “Cala boca comunista” “deixa de ser reaça” eram os impropérios mais amenos que se ouviam nos debates. Os argumentos eram lapidares. Para quem achava ser a pobreza uma opção dos perdedores, os conscientes brandiam com um “temos de cortar o mal pela raiz”. Os conservadores deitavam e rolavam, brandindo os conceitos de Deus, Pátria e Família, que eram comuns, como se fossem propriedades deles. Já havia o medo de uma reforma agrária desastrada, um tema que até hoje assombra o país com terra de sobra, assunto institucionalizado e ainda sem solução.

Reproduzíamos em classe o que ouvíamos em casa. Na minha, as discussões eram febris, principalmente na hora da sobremesa. Amigos da família participavam. Tinha gente que saía correndo do próprio almoço para vir participar da contenda. No rádio, pontificavam as arengas, as campanhas, as acusações. Às vezes, um líder importante nos visitava e havia uma grande mobilização, com centenas de carros e caminhões fazendo estrondo pelas ruas.

Quando veio o golpe de 1964, houve surpresa geral. Estávamos acostumados à liberdade. Era estranho ver alunos de outros colégios vir passar uma temporada na nossa classe para admoestar, aconselhar e ameaçar sutilmente. Procuravam culpados, mas só encontravam cdfs. “Você é um aluno estudioso, não vá na onda desses comunistas”, diziam, meio decepcionados com a “colheita”. Aos poucos, fomos perdendo aquele empuxo, aquela força. A campanha presidencial para 1965, que prometia, ficou apenas na intenção. Depois, os líderes tentaram costurar alguma coisa em Montevidéu, mas o fosso entre eles era muito profundo. Nós também, colegas que agora se afastavam para a vida adulta, rompíamos antigas amizades e nos recolhíamos ao silêncio.

Ensaiamos algo em 1968, com as passeatas, mas o AI-5 jogou água na fervura. Houve então, até 1979, uma longa fase de surdez e ringir de dentes. Só muito tempo depois, quando tudo parecia voltar ao normal com o fim dos anos de chumbo, nos reencontramos, veteraníssimos, e nos abraçamos. Lacerda e Brizola tinham ficado para trás. Estávamos intactos, nós, conterrâneos de uma fronteira mítica. De todas as classes sociais, nos reunimos em torno da vivência em comum, do privilégio de sermos contemporâneos.

Rimos agora de nossas brigas. Talvez até ressuscitemos algo, na campanha de 2010, plebiscitária. Mas desta vez, mais maduros, fazemos escolhas fora das certezas trazidas do berço. Adquirimos o poder da reflexão, fruto de tanta dor e tanta vida.

RETORNO - 1.Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana, coluna Jornalismo Literário. 2. Imagem desta edição: Jango e Brizola nos anos em que discutíamos política em sala de aula, no ginásio.

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