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23 de novembro de 2010

PREGUIÇA MATA


Nei Duclós

Ideologia é preguiça: é fácil se escandalizar com uma opinião ou com os fatos sem pesquisar seus motivos. Isso mantém desfocado o núcleo da questão, que deveria ser esclarecida para que houvesse a mínima chance de uma solução. Essa máscara sobre a realidade é colocada de propósito, pois serve a vários interesses. Mas há um paradoxo: quanto mais jogam areia nos olhos da opinião pública, mais insatisfação se acumula no tecido social e, como numa doença oculta, as feridas explodem na superfície, impulsionadas por misteriosos mecanismos internos.

Vamos pegar o caso dos carros, para a conversa não ficar muito esotérica. As estatísticas são conhecidas: média de 40 mil mortes ao ano no trânsito, 159,3 veículos por quilômetro (só perdemos da Coréia do Sul e do México) e um crescimento médio de veículos rodando de 14% por ano nos últimos seis anos. Nesse ritmo, em 2014 o Brasil terá um automóvel para cada quatro habitantes, proporção de país rico. As vendas vão bem porque o crédito é facilitado. Mas os juros altos estão tirando a credibilidade das classes C e D, tidas como boas pagadoras e que agora engrossam os índices de inadimplência.

Escancarar o uso do carro serve para deixar de lado o problema do transporte público, mais difícil de resolver. Para não sofrer nos coletivos, a população abraça o transporte individual sem condições de arcar os custos. Fora dos trilhos, a locomoção empaca e entope a circulação em todo o país.

Para não ter de arrostar as responsabilidades, os poderes oficiais e privados inventaram a tese, bem sucedida, de que a culpa é da própria população, que não dirige direito, com motoristas alcoolizados e imprudentes, falta de educação no trânsito por insuficiência de formação escolar, entre outros fatores. Culpar o indivíduo pelo erro e omissão do Estado é moleza, já que na aparência parece que é isso mesmo. Não se trata de justificar o mau comportamento, evidente, que vemos nas ruas e estradas, mas de entender que esse é o resultado da falta de políticas públicas adequadas.

O abandono vem de cima e deixa o indivíduo à vontade para transgredir. Se a fiscalização for corrupta, a tragédia está posta e não adianta bater boca. Vamos ao trabalho.


RETORNO - 1. Crônica publicada nesta terça-feira, dia 23 de novembro de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2.Imagem desta edição: engarrafamento de fordecos.

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