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17 de novembro de 2010
INTOLERÂNCIA
Nei Duclós
Durante séculos, os feitores deitaram e rolaram impunemente, mas a divida social tem de ser paga por você. É a lógica que impera na zona divisória onde não há mais margem de tolerância, território da cultura e do humor. Monteiro Lobato, coitado, não podia ter uma personagem negra como a cozinheira Tia Nastácia. Por esse pecado hediondo ele paga até hoje com a fama de racista, mesmo que todas as falas pertençam às criaturas da sua ficção. Seria o mesmo que acusar Tolstoi pela mortandade da guerra.
Lembro que no final dos anos 70 a mesma polêmica veio à tona. Foi a época em que uma nova geração descobriu a pólvora e queria ensinar a todos como as coisas devem funcionar nas mentes coletivas. Esse processo se transformou em endemia incurável a partir da chamada Nova República, quando todos aqueles que foram coniventes com a ditadura de repente viraram os heróis da hora. Arrivistas, reacionários e pulhas de todas espécies se auto-intitularam democratas e continuaram no poder, só que num degrau mais acima.
Quem perde são os gênios como Lobato. Tendo publicado toda sua obra, sem cortes, na época do Estado Novo getulista, Lobato é hoje vítima da censura. A começar pelas novas edições que acentuam as palavras, coisa que a célebre coleção de capa verde jamais fez. Deveriam respeitar a reforma ortográfica dele, que se mantém moderna, de vanguarda, enxuta e eterna.
Como “o brasileiro” (que fica muito longe de nós, já que somos italianos, afros, caucasianos, russos, franceses e sei lá o que mais) é muito mal educado, então as pessoas se sentem no direito de te atropelar. Nas filas, no trânsito, por toda parte a brutalidade impera porque há a convicção de que o Outro deve alguma coisa e precisa pagar caro por isso. O que temos então não é uma civilização politicamente correta, é o individualismo no seu auge sob o álibi das grandes causas coletivas.
A tolerância é garantia de sobrevivência. Sem ela, o mundo perde a graça e entra em guerra. Estamos há tempos em guerra civil e me pergunto se o acervo tungado da população seqüestrada, assassinada, roubada em tudo o que é canto, e mais o dinheiro grosso do tráfico de armas, drogas e pessoas entram nas estatísticas atuais de “desenvolvimento”. Teríamos então o crime a favor dos índices aparentemente favoráveis.
Vamos perder Lobato assim como as piadas do papagaio fanho ou as do Pedro Malazarte. Ficaremos sérios no canto sem cruzar o olhar com ninguém, já que o Brasil é machista, então você é suspeito de qualquer gesto. Não faça galanteios que pega mal. Não use certas palavras nem quando forem inevitáveis porque você poderá ser processado. Acredite piamente que nas últimas eleições a vitória foi do gênero e não de outros expedientes, conhecidos. Emigre, se for capaz. Será perseguido até os confins da terra, você, execrável ser criado no Brasil soberano.
Porque é disso que se trata: num país que se entregou totalmente para a especulação estrangeira, qualquer risco de nacionalidade (a piada, o autor genial) é tratada como crime. Mientras tanto, como dizem os hispânicos, a bandidagem dá as cartas em qualquer lugar.
RETORNO - 1. Crônica publicada na edição 317 do jornal Momento de Uruguaiana.2. Imagem desta edição: Lobato concentrado na sua criação.
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