A primeira edição brasileira do clássico argentino Operação Massacre, de Rodolfo Walsh (1927-1977), escrito e lançado sucessivamente a partir de 1957 (teve quase 40 edições) , acumula as várias camadas de uma narrativa: a do escritor de romance policial que substituiu a ficção para investigar um caso concreto, e nele enterrou sua vida, deixando um rastro de testemunhos pessoais sobre o trabalho do escritor e seu objeto. Trata-se da versão final do livro e de seus prólogos, epílogos e apêndices publicados ao longo dos anos, que aos poucos recortam o caminho percorrido pelas palavras em busca do inacessível, o fato, que sempre é capturado como versão.
Costumam lembrar A Sangue Frio, de Truman Capote, escrito dez anos depois. Mas prefiro resgatar Rota 66, de Caco Barcelos, pela proximidade da metodologia: a minuciosa busca de provas e o cruzamento de informações e testemunhos para se chegar à revelação de que o Estado policial se move pela injustiça e tudo faz para acobertar, justificar e premiar os criminosos, passando ao largo da tradição judicial, dos instrumentos civilizatórios e até mesmo dos arremedos de democracia.
O livro é sobre si mesmo: como compor um texto que traga à luz a barbárie cometida contra 12 argentinos inocentes, fuzilados no calor de uma contra-revolução derrotada, a que tentou restaurar o peronismo nove meses depois do golpe que afastou o líder do poder. Levados para um lixão na periferia de Buenos Aires, no mais completo breu, foram fuzilados à luz dos faróis de uma velha camioneta policial, o que facilitou a fuga de sete sobreviventes. Recompor o evento e seguir os passos de cada um dos personagens, descobrindo como morreram ou conseguiram evitar a morte, foi o trabalho de Walsh, que na época tinha apenas 29 anos.
Apaixonado pela literatura pretensamente fundada por Edgar Alan Poe, Walsh tinha descoberto antecedentes ilustres dos investigadores d crimes, enxergando no Livro de Daniel, da Bíblia, a semente do gênero que no século 19 virou arte literária. Era um especialista e tinha já publicado, além de vários contos, uma antologia onde entravam os escritores que levaram para a Argentina as descobertas de Poe, Borges e Bioy Casares. Walsh foi fisgado pelo assunto da mesma forma que Joseph Conrad quando seduzido pelo caso do Agente Secreto: de maneira casual, por meio de uma conversa qualquer. Com Conrad foi na rua, com o argentino foi numa partida de xadrez.
O escritor encontra o mote, o plot de sua história e sopra-lhe um coração que bate até depois de seu desaparecimento. No caso de Walsh, que a partir dos resultados pífios dessa investigação acabou radicalizando suas posições, saindo de uma indiferença política para um engajamento armado via Montoneros, a obra cresce à medida em que o tempo se afasta daquele episódio sinistro, precursor do pior que iria vir com a grande mortandade promovida pelo ciclo dos generais. O que encanta é a lucidez do autor, que sabe ser esse caso um defunto, pois ninguém mais atenta para meia dúzia de coitados levando tiros de mesericórdia na noite gelada. E com o excesso de mortos que vieram depois, quem se importa? Mas é essa visão crua do seu trabalho que torna a obra imperecível.
Como ele não se ilude, procura manter o prumo da realidade levantando todos os detalhes do crime e fazendo o papel do detetive que não dá quartel e assume uma postura ética diante do drama, longe da indiferença charmosa que pontua a literatura policial, principalmente com os inovadores Dash Hammet ou Raymond Chandler. Walsh se transforma no seu personagem e morre com ele, quando é fuzilado pelas forças da repressão depois de escrever uma carta aberta à ditadura argentina que derrubou Isabelita Perón, um texto que é um primor de precisão e estilo, considerado por Garcia Márquez uma das jóias da literatura universal.
Talvez não existisse a grande revanche da sociedade argentina hoje contra seus algozes não fossem esses textos de seu ilustre filho e mártir. Foi preciso que ele descesse às catacumbas, trouxesse à luz não um massacre político, mas um crime comum mascarado de lei marcial e que foi desmoralizado pelo trabalho paciente do escritor repórter numa saga que é uma referência poderosa do melhor jornalismo. E que não faz nenhuma concessão nbem para as mais nobres causas: “A gente do povo não morre gritando Viva a pátria! como nos romances. Morre vomitando de medo ou maldizendo seu abandono.”
A Companhia das Letras teve a gentileza de me enviar um exemplar para que eu pudesse ler esta grande obra. Agradeço à editora e espero ter contribuído, com esta resenha, para que Walsh atinja mais o público brasileiro, tão necessitado de referências nesta quadra asquerosa da imprensa brasileira, quando tudo é contaminado pelo interesse político, a mentira e a linguagem em estado terminal, longe do esplendor da melhor literatura de não ficção, que fez a glória de gerações passadas, marcadas pela tragédia, mas que cumpriram um destino mais condizente com a grandeza humana.(Nei Duclós)
Nenhum comentário:
Postar um comentário