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31 de março de 2007

O ENGENHO COMO ARTE

Autor do best-seller Soldados de Salamina, o espanhol Javier Cercas expõe, com agudeza barroca, a entranhas de sua literatura em O Ventre da Baleia. (Resenha publicada nete sábado, dia 31 de março de 2007, no caderno Cultura, do Diário Catarinense).

Nei Duclós

Arte é quando o engenho, auto-consciente, atinge o esplendor. Pode-se objetar que uma instalação, uma desconstrução, ou qualquer tipo de ruptura prescinde do conceito tradicional de engenho, até mesmo é concebida contra ele. Mas essa é uma percepção falsa, pois o que conta, nesses casos, é a idéia que engendra esse avesso artístico (hoje já instalado como oficial). É preciso que a concepção transgressora atinja o estado de arte para que o resultado seja visto como tal (o produto da idéia pode ser considerado tosco ou inapropriado, mas não a idéia em si; se for, aí sim deixa de ser arte).

Na literatura, desde o engenhoso fidalgo da Mancha, e com a intensificação das inúmeras vanguardas, esse esplendor auto-consciente faz de cada leitor um aprendiz do ofício e não é por acaso que multipliquem-se os escritores à medida em que aumenta o volume das leituras. A literatura não serve mais para ludibriar ninguém e talvez nunca tenha servido. Foi preciso que a acidez da crítica, as experiências inumeráveis, o destelhamento das ilusões e o mergulho nas engrenagens da sociedade do espetáculo conseguissem seus intentos para descobrimos o quanto os escritores dos séculos anteriores ao período de desmistificação também dispunham do mesmo projeto de entregar a chave dos segredos literários. E o quanto ficou impossível, depois, escrever sem conformar-se com o olho clínico que varre qualquer tentativa de ilusionismo na escrita.

Mas isso não significa que a literatura tenha esgotado seu arsenal de encantos e mistérios. Pandora mítica ou real, a literatura tem sempre a última palavra, apesar dos decretos que tentam fazê-la migrar para outros ofícios. O truque de alguns escritores especiais, exaustos de auto-consciência do que fazem e assim mesmo dispostos a não deixar para a próxima encarnação a composição de uma obra, é deixar-se levar pelas evidências. É, aparentemente, compor com o inimigo, submeter-se aos seus desígnios e deixar para a mente do espectador o fato de que existe um piscar de olhos no final – aquele tipo de gesto identificado com a esperteza do protagonista que consegue ludibriar a todos e reserva para si o carisma de quem tudo fez em nome do triunfo da arte.

O professor de literatura Javier Cercas, autor do celebrado best-seller Soldados de Salamina, entre outros livros, é um artista dessa espécie que deveria ser mais numerosa, mas que é escassa, já que só o talento não basta, é preciso transformá-lo em algo superior. Ele é como o pintor que expressa sua técnica em cada pincelada e deixa exposta as sucessivas camadas de tinta que usa para compor seu quadro. É como um artista tradicional lancetado pela sem-cerimônia do laser, do raio-x e de todas as artimanhas modernas que expõem a minuciosa arquitetura de uma obra, desde sua concepção até o final. Ele faz isso em todos os seus trabalhos, mas em O ventre da baleia (Francis, 304 páginas) , se supera: o domínio pleno do ofício, aliado a uma auto-consciência (do ato de escrever) impiedosa e reveladora, nos joga fora do aquário (ou do ventre da baleia) complacente dos hábitos de leitura que ainda nos mantém presos a uma ultrapassada imaginação narrativa.

Javier Cercas não se aproveita desse fato de que ainda não assimilamos o suficiente os avanços da cultura, apesar das evidências em contrário (nossa obsessão em defender a liberdade de expressão a qualquer custo, enquanto nos refugiamos na comodidade de algum enganador). Ele sabe o quanto somos superficiais nas nossas convicções, por isso nos atualiza, nos lembra o quando houve de transformações radicais na literatura. Em cada cena descrita, há sempre essa webcam permanente de um espírito-que-anda (o fantasma imortal) das letras, atento a tudo e pronto para entrar em ação, como de fato entra.

Isso serve principalmente para os personagens, todos descritos de maneira tradicional no físico, na aparência, nos sinais externos, mas revelados em todas as suas contradições no que imaginam e pensam. Aqui é preciso entender o que é contradição em Javier Cercas. Não se trata do contraponto entre raiva e alegria ou entre tristeza e paz. Mas entre a personagem esculpida em palavras, frases, sílabas, letras, pontuação e a personagem que luta contra sua precária condição de coisa inventada. Há contradição entre essa criatura concreta, feita de linguagem, e a que se forma na cabeça do leitor.

Tendemos a pegar a unha o que existe de tradicional no texto (as costeletas, a bengala, o cabelo curto, o cigarro), mas precisamos conviver com a desdramatização permanente imposta pelo autor: a narração escolhida para lembrar, mas que vai em direção ao esquecimento; a mentira como caminho da verdade; o fluxo interrompido pelo detalhe. O autor que lê a si mesmo o tempo todo deságua inclusive num personagem que tem seu próprio nome, o que é o cúmulo da auto-flagelação imposta pela auto-consciência. O Javier Cercas fictício, que interage com os outros personagens, se destaca assim do protagonista Tomás, mas não do verdadeiro Cercas, que utiliza um truque barato para denunciar sua obsessão pela transparência.

Isso também faz parte de sua caixa de mágicas. Significa que, mesmo levando às últimas conseqüências a devassa do engenho literário, este ainda tem capacidade de atingir o estado de arte, levando de roldão, por sua vez, os truques da crítica que tentou desmoralizá- lo. Pois a literatura a tudo devora, desde que existam escritores como Javier Cercas, uma espécie de ilusionista disfarçado de encanador, que vem consertar o vazamento e acaba inundando o bairro com sua descompostura.

Seu romance, publicado pela primeira vez na Espanha em 1997 e agora traduzido por Bernardo Ajzenberg, funciona como um curso de literatura, sem o capital simbólico do professor para atrapalhar. Ele conta apenas com seu engenho, que identifica leitor e autor em todos os lances, descritos numa oposição básica entre destino e caráter. Todos somos capazes de tentar ser pessoas de destino, ou épicos, que só pensam no futuro e recordam o passado para inventá-lo. Mas acabamos sendo pessoas de caráter, conformados com nossa pequenez e falta de alcance.

O grande perigo é que, ao nos lançarmos na aventura do destino, não haverá meio de voltarmos para casa do caráter. Mesmo que estejamos imobilizados, teremos dentro de nós o vulcão que nos denuncia. E nossas trivialidades se revelarão, como neste romance, de maneira tempestuosa, como as mudanças bruscas de estação, capazes de nos jogar no miolo do furacão. Lá onde encontraremos frustração, miséria, dor, solidariedade e euforia. Teremos então a chance de sermos humanos, ou de descobrir, ao nosso lado, a arte que nasce quando buscamos a perfeição de nossos pequenos e defeituosos engenhos.



29 de março de 2007

Diário da Fonte


GRAVATAS COM SOTAQUE GRINGO

Quando estávamos no auge dos anos 60, alguns amigos meus, que só me conheceram em Porto Alegre usando jeans, camiseta e cabelo comprido, passaram por Uruguaiana numa daquelas viagens latino-americanas. Iam em direção a Buenos Aires ou Montevidéu. Aproveitaram para dar um pulo na minha casa e visitar os pais do poeta. Dona Rosinha abriu então seu impecável álbum de fotografias e mostrou o grande revolucionário envergando smooking, camisa branca com rendas no punho, abotoaduras e gravata. Entregou assim meu passado, para divertimento dos colegas, que depois passaram um tempo me zoando, recordando minha vida pregressa como pessoa certinha. Usava até gravata!

Precisei envergar de novo essa indumentária – terno e o adereço imprescindível da elegância masculina ocidental – quando passei por um bom tempo nas assessorias de imprensa. Tive que aprender a fazer o nó mais simples, o chamado italiano, que basta um laço para resolver o problema. Assim mesmo pedi, envergonhado, para o atendente da loja desempenhar a tarefa. E lá ficou, no início, aquele nó eterno, que eu tinha o cuidado de jamais desfazer, pois não aprendera direito. Depois, peguei o jeito e mais tarde me libertei. Assim mesmo mantenho umas duas ou três gravatas no armário, que uso de vez em quando para assustar as pessoas.

Uma gravata chic de quase 200 dólares deve fazer a cabeça de quem usa e de quem vê o pescoço e o peito adornados pelo brilhareco lustroso, sóbrio ou colorido, mas sempre fazendo presença em alguma reunião importante. Não digo que o rabino Henry Sobel tenha mesmo surrupiado peças da Luis Vitton, Gucci e sei mais o quê, em Palm Beach, como foi noticiado. Mas fico imaginando o que ele sentiu ao levar, se é que levou mesmo, quase 700 dólares em gravatas de primeira linha. Talvez estivesse se preparando para mais uma série de entrevistas nas TVs brasileiras, onde faz parte daquele núcleo escolhido de formadores de opinião para se manifestar sobre tudo.

Sempre achei muito estudado o sotaque gringo de Sobel. Brincava dizendo que ele ensaiava o sotaque, que tanto encanta os brasileiros, cidadania envergonhada de si depositando grandes doses de admiração para quem é de fora das fronteiras. Para mim, não era possível que alguém, tantos anos no Brasil, jamais tenha escorregado no seu sotaque, que é escandido com a propriedade de quem tem a palavra correta para os eventos que nos atazanam. Na agenda dos jornalistas, só é possível ter uma fonte para cada nicho da elite. Tributarismo, por exemplo, é sempre, ou era, o Ives Gandra Martins. Outros especialistas tributários foram praticamente erradicados do noticiário.

Fico pensando nas palavras do rabino, enroladas de maneira tão cândida no seu sotaque, descendo Luis Vitton abaixo, impressionante pela sua lucidez de prontidão. Não se trata de tripudiar sobre o esqueleto no armário de uma celebridade. Nós, os longevos, acumulamos esqueletos no armário de uma forma ou de outra. Em algum momento da nossa extensa vida, surgem oportunidades como a de escrever um discurso para algum tirano, já que ele pagava as contas e havia a perspectiva da happy hour no final do expediente. Em outra ocasião, nos calamos quando devíamos gritar e assim por diante. Mas o caso de Sobel existe algo que assume grande importância.

Ele é a voz politicamente correta dita em tom professoral estrangeiro. Os brasileirinhos ficam mudos diante da sua correção. As palavras proferidas num accent gringo tem essa força de convencimento que nenhuma pessoa sob o tacão do português do Brasil pode almejar. Costumo dizer que não podemos ter nenhum sotaque uma língua estrangeira que caem de pau em cima de nós. Mas qualquer estrangeiro vem aqui e usa seu sotaque carregado e ninguém condena. É até motivo de orgulho alguém descer do pedestal de sua língua superior para fazer concessões ao nosso patuá imprestável.

Claro que, se for provada a culpa de Sobel, os Estados Unidos não sofrerão nada com isso. Ninguém dirá: viu como os gringos também roubam. Dirão (como já estão dizendo nos comentários): ele estava acostumado no Brasil onde se faz qualquer coisa impunemente. É isso que dá vivermos num país em que a vergonha de ser brasileiro foi plantada.


RETORNO - Imagem de hoje: foto de Helcio Toth, escolhida só porque mostra uma gravata em forma de dólar. E também porque é uma baita foto.

28 de março de 2007

A VERGONHA PLANTADA



Um mal entendido na fila do pãozinho deixou o cidadão que estava na minha frente bastante irritado. “Tenho cara de folgado?” perguntava ele para a atendente. “Está escrito na minha testa que eu quero passar à frente de alguém?” Tentei colocar panos quentes, dizendo que a balconista tinha se equivocado. "Nada disso", replicou, "o brasileiro é assim mesmo", querendo com isso explicar o motivo do mau comportamento que ele via naquela trabalhadora do comércio. Aproveitei para exercer minha catequese: “Todos somos brasileiros”, falei para o cidadão inconformado por ter sido confundido com um qualquer. “Pois eu não gosto de ser brasileiro”, disse, encerrando a conversa.

A nacionalidade está ligada, grudada, ao mau comportamento, ao vício, ao crime, à falsidade, à corrupção, à mentira, à indiferença. Nenhum outro povo ou nação carrega semelhante estigma. Somos hoje a grande vergonha do mundo, pelo menos segundo nossa própria percepção. Há um consenso de que o Brasil não presta, que os brasileiros são incorrigíveis e que a nação, portanto, fracassou. Como é uma mentalidade amplamente disseminada, que não encontra contestação, trata-se de um fenômeno de massa, que não pode ser atribuído à geração espontânea.

Não é porque existiram sucessivos governos ligados à corrupção que somos tão auto-destrutivos. A Itália passou décadas dando grande vexames na política e ninguém diz que o italiano é um bunda suja. “Como bom italiano” disse esses dias o Angeli, da Folha, referindo-se a algum hábito seu. Angeli, o mais brasileiro dos cartunistas, se acha italiano. Alguma coisa está errada. A Coréia exibiu por vários anos as brigas coletivas no Parlamento e todo mundo acha a Coréia um encanto. Os alemães mataram quem bem quiseram na Segunda Guerra e ninguém se refere aos alemães como aqueles desgraçados, mas sim como são eficientes e trabalhadores. Os Estados Unidos invadem todo mundo, instauram ditaduras, expõem suas barbaridades na indústria audiovisual e o que mais se escuta é como a América é fantástica. Que civilização, que way of life!

Não é, portanto, porque tivemos ou temos governos corruptos que nos achamos tão miseráveis. Também não é pela impunidade. O Kissinger, por exemplo, que destruiu a democracia e o povo chileno nos anos 70, está solto, e nem por isso os americanos são achincalhados por esse motivo. O Pinochet morreu de velho e os chilenos estão de cabeça erguida. As máfias chinesa e japonesa aprontam nos cinco continentes e não existem países mais admiráveis do que a China e o Japão. Imaginem se as sacanagens apresentadas pelos bandidos orientais transformassem a imagem dos países asiáticos num monte de bosta, como acontece em relação ao Brasil.

Sentimos vergonha do Brasil porque essa vergonha foi plantada, de maneira metódica, obedecendo a um plano político bem elaborado. É a obra fundamental do regime de 1964, que ainda está em vigor, destruir a auto-estima do Brasil para assim a cobiça interna e externa locupletarem-se com o repasto. O que atrapalhava o saque desmesurado de tudo o que o país acumulou de 1930 a 1964, era exatamente a auto-estima. Tínhamos Tom Jobim, Guimarães Rosa, Pelé, Antonio Callado. Não podíamos ser tão pestilentos. Era preciso então matar na fonte o que formavam os gênios – educação e saúde, moeda estável, disseminação em rede do emprego, paz no campo e na cidade.

Veio a Reforma da Educação, do Jarbas Passarinho, e tudo começou a degringolar, até chegarmos às escolinhas de lata. Colocaram a economia na mão de sujeitos como Bob Fields, que se lixava para a existência do país, como foi denunciado na época em que se envolveu num escândalo largamente difundido na imprensa. Ao mesmo tempo em que se destruíam as fontes da auto-estima, se incensavam as nulidades, para provar que a falta de caráter é que dá camisa no Brasil.

Nos meios de comunicação, entregaram-se as concessões das grandes redes para pessoas desprezíveis, como o Gargalhada Sinistra, o Pastor da Merreca, o Jornalista dos Plenos Poderes, o Genro da Caixinha e assim por diante. Na área acadêmica, foi demolido o mito do Brasil Soberano e todas as suas conquistas. Pespegaram o termo ditadura ao nome de Vargas, “esquecidos” do governo constituinte de 1933 a 1937 e o eleito pelo voto popular de 1950 a 1954. O Estado Novo, que foi um golpe contra a porção nazista do exército e que levou o país para a guerra contra o nazifascismo na Europa, a implantação da siderurgia nacional e o equilíbrio das finanças públicas, é visto como um anátema histórico.

Assim também foi destruído o heroísmo, e esqueceram de propósito o longo reinado de Dom Pedro II, tão bem analisado por Monteiro Lobato num texto antológico contra a República Velha e a favor da cordura, do bom senso, da presença poderosa e positiva do Imperador na vida da nação soberana. O objetivo é chamar Lobato de racista, Manuel Bandeira de reacionário, Brizola de caudilho, brasileiro de covarde. O objetivo é dizer que não lutamos por nossa independência, que fizemos quarteladas e que nada há de heróico no país. E se você se insurge contra isso é chamado de saudosista amargurado, monarquista, ditador ou que sei mais o quê.

Assim se destrói a auto-estima. Assim se implanta a vergonha de ser brasileiro.

RETORNO - Imagem de hoje: "Av. Ipiranga, menina com máscara de papelão e seu irmão", de Marcelo Min.

25 de março de 2007

RENATO POMPEU: UM PULO NO ABISMO



(Nota: Leia o que Renato Pompeu escreveu sobre esta resenha no espaço dos comentários e na seção Retorno, abaixo)


Nei Duclós


Renato Pompeu é um autor determinado e radical. Imagina o Brasil como a soma e a síntese do que a humanidade produziu e propõe uma literatura épica, que reflita a grandeza da trajetória da população que aqui aportou. Uma literatura longe das relações de compadrio, do que ele chama de ética do favor, fator de contaminação, segundo a análise de um dos seus inúmeros personagens, dos autores mais considerados da nação.


Seu romance-ensaio, O mundo como obra de arte criada pelo Brasil (Casa Amarela, 212 páginas, R$ 32,00) é uma carnavalização dos elementos dessa literatura possível, como se o Grupo Oficina, de José Celso Martinez, que intensificou a revolução modernista de Oswald de Andrade, saísse às ruas obedecendo a um samba-enredo futurista, tecido pelas oportunidades da internet e pela iminência do caos generalizado fundado pela desordem capitalista. Nesse desfile de real valor, a composição dos detalhes segue as minúcias de um pesquisador obsessivo, expondo todas as nossas qualidades e defeitos e fazendo o contraponto à censura imposta pelos donos do poder, que dão mau exemplo ao mundo ao desprezar o povo que os alimenta.

Por escrever de peito aberto, sem concessões inclusive ao que podemos entender como romance, com diálogos que são mais falas eruditas na boca de personagens populares, Renato chama para si a briga e a polêmica. Impossível não discordar em um ou todos os aspectos que vestem o processo definido por ele, de um país que, exatamente por estar em ruínas, tem condições de recriar-se. Sua proposta é fazer acontecer como nos antigos mitos fundadores fora do etnocentrismo judaico-cristão, mitos que ele descreve com a paciência didática de quem precisa se opor às religiões que vêem a Criação como algo a partir do nada. Podemos estar vivendo o momento criador não apenas de uma nação que serve de modelo ao mundo globalizado, diz ele, mas de um planeta inteiro que poderá fundar-se no equilíbrio social por meio de um governo mundial esclarecido.

É muita ambição para uma obra só, a não ser que Renato esteja nos colocando numa armadilha e faça suas investidas armado de sua ironia, fruto do preparo que suas infinitas horas de leitura lhe proporcionaram. Mesmo que isso seja verdade, não impede que fatalmente é a escassez de obras como esta que fizeram Renato Pompeu arriscar-se nesse pulo no abismo, não temendo cair em contradições e explorando todas as nuances da sociedade de classes brasileira. O ambiente onde ocorre a trama é uma comunidade overground (em oposição à mitologia underground), em que pontificam uma Baronesa (espécie de matrona protetora dos talentos, tal como ocorreu nos anos nascentes do modernismo) e todas as camadas de seus subalternos. Essa comunidade que retrata o país à beira de uma data magna (a virada do milênio) coloca os intelectuais e os artistas em geral sob o tacão da estrutura injusta da ordem política e econômica, mas acena para um convívio utópico de harmonia entre desiguais, tudo pontuado pela disponibilidade total dos sexos, gêneros e corpos.

O leitor, tão propenso a embarcar nas águas de um autor de grande talento, fica entretanto com a pulga atrás da orelha, desconfiando que tudo não passa de um passe de mágica urdido pela capacidade enciclopédica de juntar palavras e atirá-las no colo de uma trama aparentemente simples, para onde convergem toda espécie de leitura. Prefiro seguir o caminho dos que acreditam que ele esteja realmente defendendo essa proposta, fundada no que ele acredita ser uma singularidade da nossa civilização: a miscigenação. Ao colocar um peso enorme na mistura de raças, Renato promove uma espécie de colapso da sua teoria. Pois toda raça é produto da miscigenação. Inclusive o próprio Nietsche alertou que os alemães eram produto da mistura de raças não arianas. Achar que a miscigenação é determinante da nossa cultura é o mesmo que achar que as raças também têm o mesmo peso. Pois o que sai da mistura é uma raça nova, mestiça e não é disso que se trata.

Não deslumbramos o mundo por sermos mestiços. Nosso futebol e música são fruto de políticas públicas do Brasil Soberano. Não foi a malemolência, a flexibilidade, a abertura para todos os tipos de influências, mas sim a instauração do ensino musical e a organização dos esportes, que aproveitou a vivência lúdica da população. Foi na Era Vargas que despontamos para o mundo com o melhor da nossa música (de Villa Lobos a Tom Jobim) e do nosso futebol (do Diamante Negro a Pelé). Não foi porque somos mestiços, como quer Renato Pompeu em seu ensaio, ou pelo menos, nas falas de seus personagens. Erradicar do imaginário, da memória e da História do país o trabalho político de muitos anos de soberania nacional equivale a dizer que somos fruto da geração espontânea. Como revolucionário dialético, um homem de esquerda na melhor acepção do termo em que os processos comandam todas as frases, tendo elas sempre raízes, caules, folhas e frutos, Renato não deveria participar, mesmo sem querer, do enterro de uma experiência política que por várias vezes foi derrubada do poder, até que definitivamente foi expulsa com o golpe de 64.

Sua análise (na pena de um dos personagens) arrasadora da poesia brasileira, em que coloca, de Manuel Bandeira a João Cabral de Melo Neto, como pessoas, apesar de muito talentosas, envolvidas com o tráfico de influências e de troca de favores, é um desastre por não levar em consideração a obra produzida por esses grandes talentos. Não se pode dizer que todos eles estiveram voltados para o próprio umbigo, fazendo poemas épicos da trajetória pessoal, deixando de lado a saga brasileira de cinco séculos. É uma redução trágica, mesmo que possamos concordar com ele de que houve mesmo um relacionamento íntimo entre os pares. Mas não é isso que queremos, favores materiais à parte? Não é a comunhão espiritual com os contemporâneos que cultiva a literatura e a arte? Veja como estamos isolados, excluídos, não por não participarmos de favores e trocas mútuas de interesses, mas exatamente porque nos isolamos deliberadamente, sem conversarmos entre nós, nos deixando cada um num canto, como se fôssemos uma espécie de criaturas contaminadas.

Mas essa é uma leitura individual de uma obra que nos arremessa para uma infinidade de vetores. Ler Renato Pompeu, escritor raro pela coragem e o talento, é um exercício de cidadania. Não feche os olhos para esta obra. É obrigatória, porque venta onde há calmaria, porque acende o fogo quando há inverno, porque traz sombra no deserto, por nos convida a saltar sem rede de segurança. Leia Renato Pompeu, escritor do Brasil Soberano, que faz o inventário das ruínas e propõe uma costura de ourives, pautada pela erudição e a fúria criadora.


RETORNO - Todo grande talento é pautado pela grandeza. Renato Pompeu, jornalista e escritor que é um exemplo para todos nós, não foge à regra. Além do comentário postado aqui, ele me enviou o seguinte e-mail: "Caro Nei, fiquei muito contente com sua resenha. Eu me considero um democrata e, para mim, o democrata não é o que exige o direito de crítica, o que é prerrogativa do tirano, mas o que aceita sem maiores problemas ser criticado. Em segundo lugar, eu gosto de ser criticado como critico os outros - impiedosamente, mas respeitosamente. Foi isso exatamente o que você fez. Abraços do Renato. "

23 de março de 2007

A DITADURA AMARRA AS PONTAS



O serviço está feito na economia, onde reside a verdadeira ditadura que nos governa. Mas como está disfarçada de democracia, então algumas pontas ficam soltas, especialmente na política, e precisam ser amarradas. Um desses nós foi dado recentemente, com o revelador encontro entre Lula e Collor. Qual o significado do evento? O sistema que colocou esses bonecos no poder está mais consolidado do que nunca e eles apenas cumprem a escrita, ou seja, ocupam ou ocuparam o Planalto para fingir que o povo decide. Mas o que fazem é transformar o país num joguete/petisco nas unhas da pirataria internacional. Os dois se trocaram gentilezas e posaram de estadistas que a tudo superam. Enquanto isso, toda a sujeirada para baixo do tapete continua lá, pulsando.

Outra ponta solta da ditadura é o jornalismo, mas isso está cada vez mais está sob controle, apesar de espernearmos aqui na internet, num gesto típico dos desesperados que nada influem. Soube que poderoso grupo, digamos, de comunicação (ô palavrinha execrável) aliou-se a um banco regional para fornecer “conteúdo” tanto na mídia impressa quanto na rede. O que é conteúdo? É o produto de uma operação casada entre publicidade e redação (ou o que resta dela). Conteúdo é o nó que falta para amarrar bem o jornalismo. A China já deu o exemplo: bloqueou 20 mil sites e blogs do Brasil, ou seja, calou, para os chineses, a voz da livre expressão.

Para que serve tanta campanha catastrofista, tipo água sumindo, aquecimento global, virus mortais (lembram do ébola? nunca mais ouvi falar)? Serve para privatizar todos os recursos do planeta. Como os governos são incompetentes para gerenciar o meio ambiente, então as corporações cada vez mais poderosas se encarregam disso. Já estão fazendo misérias no clima, como atestam várias denúncias, que nem vou citar aqui (está tudo na internet). Para tomar conta de tudo, até do ar, é preciso dominar o conteúdo. O mais grave para os ditadores é que a rede dá mostras de vitalidade e pode influenciar mesmo a opinião pública. Mas disso eles estão cuidando.

Quando a noite cair de novo sobre o país, lembre do que você leu por aqui. O que foi escrito durante esses anos estará na vala comum do esquecimento. Vão imperar os conteúdos, fruto das sacanagens da grana. Para conquistar o público, vão oferecer inúmeras vantagens, especialmente a sensação de que são especiais. Não acredite neles. Ninguém é especial. Somos criaturas com espírito livre e nada deveria nos destruir. Mas eles costumam vencer a guerra e nos colocar num limbo insuportável. Lá, no deserto, medrará a flor que força a pedra e busca a luz.

A poesia vai resistir às bombas de nêutrons jogadas sobre o imaginário do mundo. Só a poesia restará, pois é a única que não se rende ao tropel da bandidagem. Mesmo que eles se esforcem em destacar os escritores que estão a serviço da ditadura. Olhe em torno. Veja a carinha lambida do novo produtor de conteúdo. Ele fala para uma platéia anônima, e você faz parte dela. Eles são o máximo, não é mesmo? Estão providenciando coisas para a tua emoção. Eles costumam dizer coisas.


RETORNO - Imagem de hoje: miséria e opulência em Sampa. Foto de Marcelo Min.

20 de março de 2007

GLAUBER E O DOCUMENTÁRIO “DI”


Graças a uma nota de Elio Gaspari no domingo na Folha, consegui enfim ver o documentário Di, de Glauber Rocha, postado num blog. Décadas proibida pela família de Di Cavalcanti, que se sentiu ofendida pelo tratamento dado aos funerais pelo nosso cineasta maior, a pequena peça audiovisual de vinte minutos, realizada em 1976, é uma síntese não apenas da obra de Glauber, mas uma aula da vanguarda legada pelo modernismo e intensificada nos anos 60 e 70 do século vinte.

Falei mal das vanguardas esses dias, mas é apenas má vontade com as contrafações, imitações e cristalizações dos movimentos libertários na arte. Costumo dizer que sem tradição (o que vem antes de nós) não há ruptura e se você trabalhar apenas a ruptura (fazendo dela tradição) então voltamos à estaca zero. Glauber mostra um caminho diferente. Ele presta homenagem ao trabalho de transgressão de seus antecessores (que são suas raízes) e vai em frente. Sua vanguarda, portanto, é legítima e serve antes como um alerta: se não tratarmos nossos contemporâneos (e os que chegaram primeiro por aqui) à altura, teremos que tentar fazer justiça depois que os outros se foram.

O narrador, o próprio Glauber, lembra que falou poucas vezes com Di e chegou até a deixar para lá uma chance de filmá-lo. No velório e no enterro, ele faz um travelling do trabalho primoroso do pintor, inserindo-o entre os grandes criadores da época, uma espécie de Picasso brasileiro. Lê, ao longo de inúmeras montagens, que intercalam cenas, dos que compareceram à cerimônia, com os temas da arte de Di, um longo poema de Vinícius de Moraes sobre a vida de Di e seus necessários excessos. Tudo pontuado por uma trilha musical que vai de marchinhas famosas a ruídos variados. Glauber faz o contraponto entre a transgressão do artista e o tradicional comportamento cerimonioso de familiares, amigos e celebridades que compareceram ao enterro.

Isso deixou a família furiosa, pois parece falta de respeito. Mas foi a maneira de Glauber homenagear não apenas o pintor, mas todo o esforço de vanguarda no Brasil, desde o modernismo. Glauber não suporta a indiferença e o papel que cabe ao Brasil no concerto das nações. Usa a arte brasileira para transfigurar nossa importância, para gritar que estávamos sendo sucateados (o que afinal se cumpriu) e para berrar que devemos prestar atenção no que fazemos aqui e entender a importância da contribuição brasileira ao trabalho de transformação artística em todo o mundo.

Há um paradoxo importante no documentário. Pode ser entendido como datado, excessivamente preso ao tempo em que foi feito, com todos os elementos estéticos e filosóficos de Glauber, que pertencem àquela época de turbulências, que foi enfim sepultada. Ao mesmo tempo, e talvez por isso mesmo, é excessivamente atual, pois nos puxa do fundo do poço onde nos metemos para tentar fazer alguma coisa, ou pelo menos encarnar essa fúria criativa que tanto mudou nossas vidas. Hoje, nem lembramos o quanto devemos ao que foi feito naquele tempo, a não ser por meio do filtro dos resgates mal resolvidos, a cargo dos medíocres de sempre.

Se não revisitarmos Glauber, corremos o risco de voltar ao pré-modernismo. As novas gerações, zeradas pelo nascimento, acabam se impregnando da arte tradicional que tanto bocejo provou nesta terra imensa. Ou então enxergando as vanguardas como um excentricidade ou pior, como algo a ser idolatrado como mito inalcançável. Ao contrário de tudo isso, Glauber é um corredor de revezamento que nos passa o bastão e grita para que cheguemos ao objetivo. E qual é essa meta? O de não deixarmos jamais deixar a peteca cair, entender a especificidade de nossas culturas aqui abraçadas de todo o jeito e seguir adiante sempre, com o olhar rútilo da lucidez sem freios.

Nada a ver com o olhar isento de emoção e cheio dos vícios dos decifradores de cadáveres, tão ao gosto da idiotias geral que tomou conta da nação. É caminhar ao lado do morto lembrando sem parar o que ele significou para a nossa cultura, é amar fora dos laços familiares ou sociais, é mergulhar no que a arte propõe de mais radical e generoso. Vejam Di, de Glauber. Vamos assumir essa obra que nos tira do imobilismo e nos sustenta para a grande guerra que enfim explodiu.


RETORNO - Imagem de hoje: Glauber (à direita) dirige o documentário Di.

19 de março de 2007

SOBRE O HEROÍSMO




Para isso os heróis foram desmoralizados no Brasil: para quem ganha oito paus e meio como ministro seja considerado um herói, conforme definiu o presidente Lula numa de suas notórias e consagradas elocuções desastradas. Triste país que precisa de heróis, dizia Brecht, vindo da terra do heroísmo, a Alemanha. Essa frase serviu para o exercício da má-fé, para que deixássemos de acreditar nas pessoas que conseguiram transcender sua trajetória arriscando a vida.

Para que não haja heróis, é preciso que não tenha havido guerra. Como somos uma nação imberbe, segundo a visão pessimista dos detratores internos (os externos só seguem o que formatamos aqui dentro), jamais lutamos por tamanho território. Para enfrentar a ditadura da época militar, foi engendrado uma versão de desconstrução completa dos nossos heróis. Enquanto outros países humanizam seus mitos, e assim atualizam a sacralização deles, nós decidimos achar que não passamos, desde 1500, de um bando de malfeitores e cretinos. Isso agora é ensinado nas escolas, destruindo o imaginário do País e entregando a nação às culturas que preservam seus heróis. Se somos uma nação que jamais guerreou, apenas fugiu da raia e da reta ou se entregou a rixas sem importância entre bandoleiros, ou a massacres sem sentido, então merecemos mesmo sermos invadidos pelos que chegam mascarados do seu heroísmo.

As homenagens aos nossos heróis jazem abandonadas na maioria das praças, ou pior, enterradas no coração seco da Pátria. Foi-se o tempo em que uma multidão enterrou solenemente em São Paulo, em 1924, o herói Siqueira Campos, o cara que dividiu a bandeira em muitos pedaços e os entregou pessoalmente a cada um dos combatentes na Copacabana de 1922. Ou quando todo estudante conhecia a frase imortal de Caxias, “quem for brasileiro que me siga” na guerra do Paraguai. Mas a guerra do Paraguai foi apenas um genocídio, claro, não lutamos contra um exército bem nutrido e bem armado e que nos invadiu primeiro.

Destruímos Canudos, a república fundamentalista e anti-republicana. O motivo era agradar os latifundiários do Nordeste, obviamente, e não impedir que guetos separatistas se instalassem no território. Brincamos de guerrear com a FEB na Europa, como debocharam cineastas e historiadores. Não houve heróis em Monte Castelo e por isso foi uma ilusão o que eu vi na barbearia em Uruguaiana, quando eu era adolescente: o cara que me cortava o cabelo me mostrando a imagem do horror: sua perna queimada por um lança-chamas na Segunda Guerra.

Também não ouvi a luta medonha dos anos vinte e trinta contadas noite após noite por meu pai e meu tio, que estiveram no front. A Batalha de Itararé, aquela que não houve, deixou inúmeros mortos não computados pela história oficial. Pois é preciso cristalizar a lenda de que não lutamos na medida em que desempenhamos na guerra. A versão vence o fato e todos somos uns poltrões da famosa anedota do brasileiro que se recusava a lutar (aquela do “seje bobo general”).

O povo também não derrubou pelas armas a República Velha, foi apenas uma acerto de elites. Aqueles cem mil voluntários gaúchos, aquele monte de gente morta em 1930, tudo isso é história para boi dormir. As batalhas de 400 mortos na Guerra da Independência contra Portugal, como nos conta José Honório Rodrigues, a mesma coisa. Estávamos, claro, apenas fazendo as vontades da Inglaterra.

A resposta de que receberia os ingleses à bala por parte do marechal Floriano Peixoto também deve ser inventada. O grande bombardeio da cidade de São Paulo em 1924 a mesma coisa. A Guerra dos Farrapos, contra monarquia, era apenas separatista, todos sabem disso. Nosso heróis eram falsos, vis, brasileiros em suma. Esses brasileiros...

Alguma coisa sobreviveu na memória, como a Coluna Prestes, mas essa era difícil de enterrar. A luta no Rio de Janeiro contra o projeto da França Antártica, a expulsão dos holandeses pela população insurgente, disso restaram inúmeras pistas, impossíveis de negar. Mas são ilhas num oceano de inutilidades. O fato de um brasileiro franzino ter ganho a corrida tecnológica do mais pesado do que o ar também não vale muito. Todos sabem que foram os americanos os autores da façanha.

Tantos heróis viraram fumaça. Restaram as caratonhas horrendas dos atuais donos do poder, que se locupletam com a miséria e a entrega do país. Heróis de araque, que merecem a denúncia do que representam: a destruição do Brasil Soberano. Hoje, mandamos soldados para servir de polícia no Haiti. Nos anos 40 do século 20, enviamos soldados para lutar contra o fascismo e o nazismo. Na volta para casa, nossos heróis foram usados pela direita para derrubar o governo que se manteve altivo durante todo o conflito.

RETORNO - Imagem de hoje: Mãos, de Helcio Toth.

17 de março de 2007

DANAÇÃO NO CHILE AUSTRAL



Francisco Coloane, festejado e importante escritor chileno, que só agora chega traduzido pela primeira vez no Brasil graças à editora Francis, nos revela a paisagem, inédita na literatura, do Chile Austral, ambiente para a danação dos homens com suas ambições, fraquezas e terrores. Seu livro de onze contos, Terra do Fogo, nos leva de roldão por praias assustadoras, penhascos gigantescos, neves eternas, bichos estranhos, guerras de extermínio. E principalmente para o coração das trevas dos aventureiros e vítimas que por lá habitaram no século 19, quando o território foi disputado da maneira tradicional, por meio da cobiça e da violência. O livro foi adaptado para o cinema em 2000 por Miguel Littin, num filme que, dizem, é um assombro.

Coloane é fiel à época que eterniza com seu texto impressionante. Ele, como seus personagens, acredita na evolução clássica das criaturas que se transformam para responder às suas necessidades e às pressões do ambiente. Acha, como os primeiros estudiosos das culturas indígenas, que as lendas ancestrais de povos isolados têm ligação com as crenças ocidentais, onde deuses, dilúvios, pecados originais, compõem a saga de uma criação completa, da separação entre terra e céu, nascimento e morte das estrelas, do sol e da lua. Todo esse painel de maravilhas cai no chão duro da maldade humana, onde o que conta é o assassinato do próximo que traz algum ouro na bolsa, ou cometeu algum ato que provoca extrema indignação.

Há lugar para o sarcasmo, a brutalidade contra os indefesos, a solidão irreversível, a mudez de bocas e cenários. O vento oeste sopra sem parar na vegetação e nas pedras, enlouquecendo os homens e chegando na percepção do leitor como um náufrago depositado morto na praia. Não há o que fazer nesse mundo completo, onde tudo está disposto em seus arames farpados. Não podemos ter esperança no velho que se vinga porque lhe roubaram um mascote, no iugoslavo que domina os pistoleiros com armas e suas artimanhas para garimpar riquezas, no viajante que tenta matar o companheiro de jornada, no sobrevivente mal agradecido que esconde seu tesouro de quem lhe salvou a vida. O Mal é o reflexo da paisagem inóspita. Dali ninguém sai. Nenhum navio vai para para o horizonte. Todos encalham nas armadilhas de águas torrenciais e montanhas geladas.

O que conta é a narrativa e não os sucessivos desfechos. Não importa chegar ao fim, pouco existe na última página de cada história. O que vale é esse caminhar no emaranhado de situações que oprimem os personagens. Essa estrutura circular, em que o leitor acaba se entregando ao destino dos personagens, é a metáfora das situações que Coloane retrata, com a paciência de um Joseph Conrad e uma andança que lembra Jack London, autores sempre lembrados quando se fala em Coloane. Mas este se difere de seus pares, pois, segundo seu depoimento (ele morreu em 2002, aos 92 anos) viveu realmente nos lugares que descreve, ao contrário de London, que teria inventado a partir de relatos alheios. E não chega à altura de Conrad, mas é covardia comparar qualquer autor ao maior escritor do mundo.

Coloane encontrou sua linguagem desde os 19 anos, quando começou a publicar, depois de passar um tempo se aventurando por aquelas plagas. Se especializou no que relata e cedo aprendeu que lá, onde tudo está por conquistar, se manifesta primeiro a ferocidade humana, a única capaz de ficar à altura da paisagem devastadora. Livro para ler com atenção redobrada, pois cada detalhe conta e nada do que aparece no livro é reconhecido. Somos, como leitores, os desbravadores dessa literatura que tanto tardou a chegar até nós. É como diz Walter Salles na apresentação: "Cada conto de Terra do Fogo atiça a nossa imaginação e nos projeta para um mundo além-fronteiras".

Falta dizer: o mar e a navegação em barcos e navios de pequeno calado são, neste livro, personagens determinantes, que confinam as pessoas, definem seus destinos e nos embarcam em ondas surpreendentes, encharcando as mãos de graxa e peixe e fustigando os corpos transidos pelos desígnios de deuses cheios de fúria e de caprichos.

15 de março de 2007

SOBRE A INVEJA


Quando não te olham na cara, quando desviam o rosto na hora em que cruzam contigo, quando são flagrados com expressão dura e impassível, quando desconfias nos cochichos algo que não consegues detectar direito, mas sabes que é do Mal, não tenha dúvida: é a inveja em pleno exercício de suas funções. A inveja é o oposto da admiração e seu insumo principal é a proximidade. Pessoas ao teu lado combinam que deves pagar pelo que és, entrar pelo cano, como se diz. Para que funcione, é preciso o discurso pseudo politicamente correto: no fundo, és culpado, uma pessoa injustamente privilegiada, então a inveja tem plena capacidade de se manifestar, medrar, crescer e no fim te engolir.


É fundamental que não desconfies do tamanho do buraco onde estás metido. Eles no fundo não te tratam mal, até sorriem e fingem que te escutam. Mas quando há uma oportunidade, e essa oportunidade é normalmente num ambiente coletivo, já que são covardes, são incapazes de lutar a descoberto, então está feito o embrulho . A covardia é especialista em confundir a própria inveja com alguma espécie de justiça a ser feita. É preciso que tudo volte ao seu leito normal, já que és uma inundação no leito seco. Nem tente intervir no deserto: a areia gosta de ser ela mesma e tudo faz para que qualquer espécie de água afunde nos pés de uma sede irreversível.


Covardes unidos gostam de produzir incêndios. E aguardam o momento certo, em que reuniram forças para te pegar na curva. Te expulsam do convívio, te apunhalam pelas costas e voltam a sorrir para ti. Claro, estão cheios de razões. São sofredores profissionais e não suportam a existência de pessoas que fogem do lugar comum. Querem teu sangue, mas fingem que estão fazendo o que é correto. Vestem-se de boas intenções e de uma pseudo valentia, pois é importante que a covardia não fique à mostra. De que estou falando? De ambientes profissionais, principalmente. Mas nos ambientes de parentesco costuma funcionar mais ou menos do mesmo jeito. Em ambos os casos, a proximidade faz a hora. E se por acaso começarem a te encarar bem nos olhos depois do serviço feito, também não tenha dúvida: todo invejoso, além de covarde, é descarado.


Admirar é invejar alguém à distância? Acredito que não. Admirar é reconhecer a superioridade alheia, é mirar-se no exemplo, é rezar para que a pessoa admirada continue com saúde e produzindo cada vez mais. Isso pode ser feito longe ou perto. Invejar é querer tirar o couro, rogar praga, fazer tudo para que a pessoa perca a parada. É possível admirar quem não está ao teu lado. Mas se por acaso o foco da admiração estiver ao alcance da mão, cuidado. Ela pode se manifestar como inveja. Assim, uma coisa torna-se o oposto da outra. E não existe a chamada inveja boa: existe a admiração, que é do Bem, e a inveja, que é do Mal.


O grande incentivo para a inveja é a precariedade humana. Ou seja, a pessoa invejada não pode reclamar, pois assim estaria reconhecendo sua superioridade. Isso é condenável, sob todos os aspectos. Ninguém é superior, então não tens motivos para se destacar, por que estás reclamando? O que o invejoso quer é teu lugar, ser o que não consegue jamais ser. Mas não fale dessas coisas. Vão achar que mereces mesmo esse tratamento asqueroso, que destrói vidas e carreiras. A saída encontrada é a pessoa invejada recuar até o limite da insânia. Transformar-se numa ameba para não ser mais invejado e assim poder viver em paz.


O triunfo da maldade impregna todos os momentos da vida atual. O Bem recua, cheio de autocríticas, enquanto os medíocres se locupletam na sua faina de destruição. O problema é que o talento jamais deixas de se manifestar. Mesmo no ermo, perdido por aí, longe de tudo e de todos, haverá alguém que vai se aproximar para deixar sua marca de fogo no teu lombo. Só resta então rezar. E dizer, aos gritos, que jamais vencerão, pois Deus distribui as graças à sua maneira para nos testar. Conviva com quem é superior (e quem é superior exerce a ética, que é a verdadeira superioridade de todos os iguais). Assim as graças virão todas para ti, inclusive o talento que nem pensavas ter.


RETORNO - Imagem de hoje: Avemaria, de Fulvio Pennachi. Concedei-nos as graças, Santa Maria, e proteção.

13 de março de 2007

VOLTA





Nei Duclós

Um dia voltei para casa
Nem era verão, tinha aula
Não havia perdão para a falta
Fui a pé de volta no barro
O verão esperava minha volta
Duas latas de cera na casa

Esticaram lustres e móveis
Consertaram fronha e lençóis
O brilho da louça de prata
O sofá sentado na sala
Minha mãe varrendo a calçada
Mãos agarradas ao olhar

Voltei para casa em setembro
Ulisses de corpo partido
Ninguém emprestou-me um navio
Fui a pé pela pedra e o espinho
Um casaco rasgado de linho
O chapéu que jamais me serviu

Não fui recebido por mim
Meu quarto já não existia
Houve vida demais, me perdi
Mas cheguei no esconderijo
Que guardava o tesouro menino
Lá estava e enfim me encontrei

RETORNO - Imagem de hoje: Peter O´Toole e Omar Sharif no imortal Lawrence da Arabia, de David Lean. O que tem a ver com o poema? Não sei. Precisa ter a ver?

10 de março de 2007

O PAPEL DO BRASIL NO PONTO G




Como disse Lula na visita de Bush, o Brasil e os EUA precisam caminhar para o ponto G das negociações (e juntou o polegar e o indicador para ilustrar sua metáfora). Como o ponto G é o estado de orgasmo múltiplo atingido pela mulher, fatalmente o papel do Brasil será o de chegar ao ápice na sua atual posição de pernas abertas. Exatamente a posição oposta a que tínhamos nos dois séculos anteriores.

Sexo todo mundo gosta de fazer, disse Lula dias atrás (vi isso na televisão numa lanchonete, quando tomava uma providencial água de côco). É por isso que o Brasil consolida sua função no concerto internacional das nações: o de país que para que os donos do poder possam gozar. É bom ter um descarado como Lula na presidência: assim a sacanagem fica explícita. Quem votou nele deve estar feliz, me disse o atendente da lanchonete (que talvez tenha tido seu voto distorcido por algum algoritmo, vai saber).

Lula é tomado como exemplo para a América Latina, diz o Nobel em economia Joseph Stiglitz na Folha, sendo considerado de centro e esse foi o motivo, segundo ele, da viagem do presidente americano. O exemplo não é o centro, mas a abertura das pernas. Entreguem-se como um filho da mãe que estarão bem conosco, diz Bush. Deixem dessa coisa de blocos regionais que pega mal, isso lembra atitude independente, um pouco de virilidade, o que é inadmissível. Vocês são fornecedores de mulheres para os gringos, portanto, comportem-se. Lutem para chegar ao ponto G. Aí vocês serão felizes.

Agora vem essa merda de combustível a partir da biomassa (tão defendido pelos trabalhistas) para acabar com o resto da terra arável. Milhões de hectares de produção de alimentos vão migrar para a produção de álcool, etanol etc. Tudo vira commodity, ou seja, faz parte da bolsa de ofertas do circo internacional das finanças. Comida que se foda, terra é produzir grana e não alimentar as pessoas. Nosso ponto G deve ser o de transformar a Amazônia finalmente numa plantation, como existia no Caribe no século 17. Dom Pedro II impediu que a Amazônia fosse devastada. Proibiu até navegação de cabotagem nela. Hoje temos floresta porque tínhamos estadista. Hoje temos gigolôs, os agenciadores do ponto G. Não teremos mais floresta. Ninguém quer saber disso.

Fujo desses assuntos porque abordei demais aqui e não gosto de ficar me repetindo. Mas o presente condena e me faz voltar a ponto de partida. Se esses sujeitos traidores fazem isso com a nação, pergunto: o que faz a cidadania em pânico além de sentir pânico? Se manifesta, grita, se insurge, mas tudo fica igual. Meia dúzia de gatos pingados se opõem publicamente à visita de Bush. É um país de mãos amarradas. Vivemos o mais cruel e nefasto processo político: toda a luta de mais de 40 anos foi por águas abaixo com o governo Lula. Vendo um policial chutar um manifestante na capa da Folha, noto que tudo continua igual. É como se Nixon visitasse Médici. Só que naquela época não tínhamos o descaramento do ponto G.
RETORNO - Imagem de hoje: Dom Pedro II, que fez do Brasil uma nação. Estamos tão atrasados, que conseguimos ser piores do que o Império.

9 de março de 2007

ESSE OBSCURO OBJETO DE DESEJO




O livro não-descartável é a personagem principal de uma novela que resgata a paixão pelo conhecimento

Nei Duclós

Qual o objetivo do desejo? Testar o próprio limite, nos diz Carlos Maria Dominguez em sua impressionante novela, A Casa de Papel (Francis, 100 páginas). Amontoar livros até ser enterrado pela própria biblioteca, por exemplo. Como os outros vícios, os livros também são perigosos, adverte o autor (argentino, que vive no Uruguai, premiadíssimo). Podem participar de um ou mais crimes. Quais as pistas deixadas por Dominguez?

São elas: todos os livros são imprescindíveis, mas eles exigem mais de uma vida para que você saiba o que merece saber; como você não consegue chegar até o teto da sua ambição, acaba adquirindo a cor dos pergaminhos, como o personagem Delgado, o homem que dá a chave para entender o enigma que envolve o narrador. Você pode ser um colecionador (como Delgado) ou um estudioso (como Carlos Brauer, a personagem chave da trama). O primeiro pode manter a sanidade (o ego dividido entre a sobrevivência e o prazer da leitura), enquanto o segundo pode enlouquecer. Por que Carlos Brauer enlouqueceu?

Porque, aposentado e com boa herança, dedicava todo seu tempo à sua paixão. Porque descobriu afinidades entre autores de nações opostas, que se tornam assim complementares. Porque enxergou uma arquitetura subliminar no design de letras e linhas nas páginas impressas, o que significa uma partitura oculta que acompanha, em silêncio, a leitura. Porque não quis para sua biblioteca o destino de tantas outras, dilapidadas pelos espertalhões, decomposta para melhor proveito de um mercado de antiguidades e por fim disputada em seus exemplares raros em detrimento de outros considerados menores, o que é um crime contra a obsessão que reuniu todos os títulos.

Carlos Brauer enlouqueceu porque tentou organizar sua biblioteca no espaço que não dispunha, num fichário excêntrico que no fim o acaso queimou. E, talvez, porque não se ligou aos contemporâneos com a mesma intensidade com que acumulou seus livros. Deixou marcas da sua passagem em corações afins, como a catedrática inglesa tão culta quanto ele e que foi capaz de morrer atropelada lendo poemas de Emily Dickinson. Seu crime foi ter deixado passar a oportunidade de um amor que o libertasse da loucura e que no fim não deixou vestígios, a não ser um velho exemplar de “A Linha da sombra”, de Joseph Conrad.

A indiferença existente no mundo dos livros não era a mesma de Brauer em relação a seus semelhantes. O estudioso que se deixou soterrar pela própria biblioteca não compartilhava com o universo de patranhas de autores, livreiros, editores, jornalistas, professores. Era um out-sider no mundo encadernado e de brochuras infinitas. Procurava (ou seria o narrador?) a porção européia dos autores latino-americanos. Procurava mais do que isto: as respostas para os mistérios que os livros encerram ou acobertam. Mas não acha o principal: o amadurecimento de uma vida que só se consegue com renúncia e não com auto-piedade ou autofagia.

Brauer se refugiou na praia e construiu uma casa que tinha os livros como tijolos. Procurou desesperadamente o livro de Conrad, que é sobre o rito de passagem entre a vida juvenil e a adulta, mas não sabia o significado dessa busca. Quando o encontrou e remeteu pelo correio até a catedrática inglesa, já era tarde demais. Uma vida tinha se desperdiçado. O narrador precisou ir até os confins da sua terra para entender a tragédia. Descobriu, no caminho, o vazio das multidões brincando com as novidades eletrônicas, apartadas, como os autores frustrados ou célebres, de uma vida espiritual plena, que só se consegue quando há ascendência do humano sobre o papel, da vida sobre a imobilidade da representação.

Uma lição que Dominguez nos apresenta como um conto policial que dispensa a astúcia dos protagonistas, mas não deixa de lado os pequenos assassinatos das nações globalizadas. E que mergulha na história universal do livro como um guia de primeira grandeza, sem exibicionismos, pois sabe onde existe o conteúdo que faz falta: aquele que não ilude com as filigranas da falsa sabedoria, mas que leva pela mão até o tesouro oculto da cultura acumulada por séculos de celebração e dor.

Por isso, é preciso ler a literatura de Carlos Maria Dominguez nesta época em que as inutilidades se acumulam nas vitrines (alugadas) das grandes livrarias. Às vezes, na longa espera de um avião, a companhia de um livro como este é mais útil do que a perda de tempo num título qualquer de auto-ajuda ou de filosofia barata (aquela que economiza neurônios ao ser consumida).

RETORNO - Esta resenha foi publicada na edição deste mês da revista Empreendedor, seção Leitura.

8 de março de 2007

O AÇOUGUEIRO INFILTRADO





Martin Scorsese não é um cineasta, é um açougueiro em pleno exercício do seu ofício. Ao criar seu pastiche de um filme chinês (Infernal Affairs, 2002) , Os Infiltrados (2006), ele celebra o Mal como única realidade do humano e se dispõe a deixar um rastro de sangue em cada cena. A primeira frase do filme diz tudo: o personagem não é produto do meio, do ambiente, antes quer que o meio seja produto dele, do indivíduo imerso na crueldade. É virar do avesso uma evidência que nos legou o humanismo marxista, a denúncia de que somos fruto do que nos cerca. Scorsese faz a contrafação de que a sociedade é o resultado do horror que existe dentro dos indivíduos.

Como cada pessoa humana carrega a maldição decretada por Scorsese, a realidade nada mais é do que uma sucessão de assassinatos, já que o único objetivo do filme é ensinar a matar. E matar tudo, sem dó nem contemplação, pois para isso viemos ao mundo, para nos entregarmos ao império da morte. Não há dignidade, nem princípios, apenas o pragmatismo inspirado pela cultura do dinheiro e da violência. Scorsese cumpre assim seu papel de fingir ser um cineasta-autor, quando não passa de instrumento da desertificação geral, imposto pelo imperialismo e acatado por ele como se fosse a palavra final sobre nosso destino.

O macartismo destruiu o melhor do cinema americano, expulsando principalmente os autores da produção cinematográfica. Nesse vácuo surgiram sujeitos como Scorsese, Oliver Stone e Tarantino. Eles clonaram a função de autor, que cabia antes a Arthur Penn e Nickolas Ray, entre outros cineastas da denúncia e da transgressão, para provar que a direita pode exibir seus dotes com um verniz do falso talento. Scorsese se contrapõe a todo o grande cinema que está sendo concretizado hoje por cineastas importantes, como Clint Eastwood, entre outros, e roteiristas e produtores esclarecidos. Levou o Oscar talvez por insistência ou por algo sinistro sobre o qual nada sabemos. Porque seu novo filme é vazio, tosco e sem sentido.

Ele consegue acabar até com grandes atores, como Jack Nickolson, que não consegue devencilhar-se da comédia e faz um vilão exacerbado e inverossímel, com sua filosofia barata sobre a realidade da bruta situação dentro do império. Matt Damon, também um bom ator de outros filmes interessantes, torna-se um marionete nas mãos do açougueiro. E temos Leonardo de Caprio, canastrão ex-imberbe que agora faz cara de mau, no melhor estilo dos grandes maus atores que ele idolatra. Notem o papel ridículo que cabe às mulheres no filme: a psicóloga que se entrega aos dois galãs, a prostituta que se submete ao velho safado, a policial filmada em seu traseiro.

Isso é Scorsese, que tanta gente gosta. Eu abomino. Vi o filme porque está celebrado, premiado e tudo o mais. Mas quando chegaram finalmente os créditos, me senti vazio e furioso. E não se trata de condenar a violência dos seus filmes. O Álamo tem violência o tempo todo, mas esta faz parte de um trabalho de resgate histórico e de atualização dos mitos que construíram o perfil da América. A violência, em Scorsese, está a serviço da maldade elevada à categoria de verdade irreversível. Scorsese é um infiltrado no cinema de autor. Merece repúdio.

RETORNO - Imagem de hoje: cena de "Os Infiltrados", com um desperdiçado Matt Damon e um Leonardo de Caprio fazendo cara de mau.

7 de março de 2007

LABIRINTO EM DESTERRO (*)



Nei Duclós

Nunca sei ao certo se existem duas ou três travessas antes de chegar ao terminal. A dúvida vem da falta de direção e de memória urbana, desvantagens que fazem parte da minha natureza, e que se manifestam nos passos indecisos toda vez que me aventuro por aquela região. Tento até decorar o nome das pequenas ruas que nascem da curva da cidade onde fica um colégio, um edifício da Marinha e alguns órgãos públicos fora de mão, como a secretaria do Trabalho. Elas desembocam na praça central, que divide a cidade em duas porções bem distintas. Esta, de que falo, e que é formada por ruazinhas estreitas, sombreadas em excesso e com um ar de abandono que deve ser assustador em domingos e feriados (quando me encontro bem longe do centro, refugiado num canto da ilha-cidade). E a outra, comercial, aparentemente buliçosa e viva, mas que também oferece um espetáculo aterrador, pela solidão em contraste com a vibração anterior, quando não há expediente e todos se recolhem nos imensos espaços vazios desta capital agora atulhada de gente.

Sim, é uma cidade de mistérios. Lembra a explicação que vi num documentário sobre a estrutura do átomo. Há um centro, o núcleo, dizem os físicos, e muito longe dali, depois de longos espaços vazios, o bulício dos elétrons. A matéria é composta de “nadas” imensos pontuados por alguma presença indecifrável, como é o caso de partículas atômicas. Talvez a região que visito regularmente (devido a uma atividade extra que agora não convém abordar) não exclua essa essência das coisas, a de que existem vácuos entre objetivos bem concretos e distintos, que acabam nos confundindo quando deixamos o carro e a condução de lado e nos aventuramos numa caminhada. Sempre que apareço por lá, em busca de um ponto bem objetivo, troco as pernas achando que entrei na rua certa. Mas, invariavelmente, me confundo.

Essas ruelas estranhas oferecem insumos para minha desorientação. Elas são interligadas por pequenos corredores, portanto não temos nenhuma dúvida de que acharemos o lugar que procuramos, já que se pode voltar atrás utilizando esses atalhos naturais. Mas isso faz parte da armadilha. Você tem a certeza de que está indo na travessa certa, descobre que está enganado quando chega ao fim dela (pois onde quero chegar fica na última quadra, no lado oposto da praça). Aí preciso contornar para entrar na outra rua ou então dar meia volta e pegar o corredor providencial. O problema é que as ruas misteriosamente se multiplicam, por mais que isso possa parecer estranho. Eram duas, ou três, mas parece haver uma infinidade de opções, que me fazem derreter quando há verão e temer pela saúde diante do vento encanado, quando há inverno.

Depois de reter na memória, por muitos anos, o caso do cientista que enlouqueceu quando foi estudar a infinidade de números que existem entre dois números inteiros – conjunto que ele batizou de Aleph – descobri, graças à internet e à curiosidade aguçada pela ignorância, que o dedicado estudioso é o matemático alemão Georg Cantor. Na primeira vez que mencionei seu sobrenome, fui corrigido na pronúncia, pois o filósofo em questão jamais teve qualquer ligação com a profissão de crooner. Assim, pronunciando Cantor como quem passa a mãos pelos cantos do problema para ver se é possível descobrir alguma solução, vi que entre a sede dos Correios, situada em frente à praça, e o terminal, existe um número infinito dessas ruas enigmáticas.
Quando chega a vez de ir lá confirmo essa suposição. Nunca chego ao lugar limite, onde as pessoas vão pegar os ônibus, pois antes dele há essa encruzilhada de caminhos. Costumo descobrir uma nova alameda na procura interminável em direção ao lugar que eu desejo chegar. Há um aleph urbano escondido nessa parte baixa da cidade e só tive certeza disso quando prestei mais atenção ao que elas guardam em suas portas encardidas, seus edifícios tombados, seu ar de província do século 19. Tem pastelaria, sebo, padaria, armarinho, xerox e outros estabelecimentos indecifráveis, que talvez estejam lá apenas para atender fantasmas. Foram esquecidos pelo resto da cidade, mais ocupada em grandes viadutos, fluxos migratórios, a violência que aos poucos se instala na outrora pacata Desterro.

É uma espécie de reserva urbana contrariada por exercer o seu papel. Vejo essa falta de sintonia nos habitantes que ficam parados por lá ou passam me olhando com curiosidade. Eles têm o aspecto de antigas fotografias, vestem roupas que costumava ver na minha infância e encarnam tipos há muito desaparecidos. O mendigo-filósofo, o desocupado prestativo, a aposentada especialista em cada lugar perdido naquele ermo. Costumo perguntar sempre onde fica o local exato que busco e sou atendido. Mas basta eu me afastar um pouco para me envolver novamente no novelo a que me submeto de maneira recorrente.

Talvez seja eu o fantasma que procura algo que não consegue mais achar. Visito um lugar que nem no passado mais se encontra, mas existe nessa realidade simultânea, nesse momento único de que é feito o universo de todas as eras. Sou levado pela minha providencial falta de orientação e de memória urbana. Esqueço o que vejo para me perder no aleph dos desterrados, onde há sempre uma rua inusitada, um corredor que leva a outras paragens, uma calçada caída diante de uma vitrine obscura. Sou o visitante sem rosto diante da identidade perdida de antigos e novos moradores. Sou o migrante com a percepção avariada que se defronta com o enigma da cidade que se recusa a desaparecer totalmente. Suo a camisa para chegar onde quero. Normalmente consigo. Mas basta ter de voltar para saber que estarei novamente perdido, à mercê de uma demência misteriosa.

Não posso mais me estender sobre isso, pois acabei me convencendo que nenhum segredo existe para ser revelado. Já me acostumei a me perder nesse labirinto. Já me incorporei nos elementos da paisagem que se desdobra. E não adianta ter a praça em frente e o terminal na fronteira do enigma. Quem parte do número um para chegar ao número dois fatalmente vai se comprometer com a infinidade de algarismos que podem ser colocados depois da vírgula.

Georg Kantor, criador (ou um dos criadores) da teoria dos conjuntos, que uso indevidamente aqui para ilustrar minha experiência, morreu pobre, esquecido, com alta dosagem de depressão. Eu não me incomodo mais em conviver com o mistério e nem pretendo achar uma solução. Isso talvez me salve, enquanto compartilho minha dúvida com os habitantes eventuais dessa região de sombras, de cheiros antigos e de encanto permanente. Escrevo para não perder o fio desse novelo, mas sei que, se usar a linha infinita para voltar à porta da entrada, fatalmente serei enredado novamente. Prefiro fazer o que preciso, tomar uma das travessas e rezar para chegar finalmente à praça.


RETORNO - 1. (*) Conto/crônica publicado(a) hoje, dia 7 de março de 2007, na seção Literário do Comunique-se. 2. Imagem de hoje: o limite do labirinto - à direita, a Praça XV, em Florianópolis; à esquerda, o início do mistério.

6 de março de 2007

DOIS FILMES FORA DO CIRCUITO






Consta que dois filmes que vi em dvd nem passaram pelo circuito das salas de cinema. São cerebrais demais, apesar de superproduções. Têm diálogos demais, apesar de haver ação o tempo todo. Têm idéias demais, mesmo sendo apresentados como um blockbuster qualquer.
Ou seja, são filmes excelentes que fogem do esquema da burrice reinante, ao envolver atores de primeira linha, diretores-autores e roteiristas cult. O tema que abordam é o mesmo de sempre: a América, sua paixão e seu delírio; o mito americano, suas contradições, carisma e culpas. A intenção é tornar possível viver na América de hoje recosturando a idéia de nação, numa confecção mais ampla, para tirar o pó do charlatanismo pseudopatriótico e reencontrando as fontes de uma legitimidade que agora lhes escapa com a guerra do Iraque. Mas quais são estes dois filmes deslumbrantes? A grande ilusão (All the king´s men), de 2006, e O Alamo, de 2004.

Ambos usam histórias que geraram filmes anteriormente, mas nada têm a ver com esses ancestrais. “A grande ilusão” tem um antecedente ilustre, feito em 1949, e é baseado no escritor, ganhador do Pullitzer com esta obra, Robert Penn Warren, um sulista idolatrado também como poeta. A história é baseada no governador da Luisiana, Huey Long, que nos anos 30 peitou grandes corporações de petróleo e a máfia corporativa que mandava nos serviços públicos, e que acabou assassinado quando era senador. Huey pregava seu programa, oposto ao do New Deal de Rossevelt, sobre distribuição de renda na América da Depressão. Tinha o voto do povo e dava dor de cabeça. Claro que seu assassinato “nada tem a ver” com o que pregava, chega de teoria da conspiração, certo?

Robert Warren, que fora contratado como professor na universidade criado por Long, mergulha, no seu romance, em dilemas éticos de um jornalista que assessora o governador fictício. No filme, Jude Law faz o jornalista e Sean Penn o governador. A maldade da crítica americana não perdoou e disse que Penn parece Joe Belushi imitando Joe Cocker em Woodstock. Torceram o nariz para a magnífica performance de Penn, este ator que emerge para o primeiro posto enquanto Al Pacino se aprofunda em bobagens de todo o tipo. A direção é de Steven Zaillian, mais conhecido como o festejado roteirista de A Lista de Schindler. Ele opta por um clima noir, com narração de um cínico lúcido, como nos antigos filmes de detetive.

Há ainda coadjuvantes de luxo, como James Gandolfini (um surpreendente mafioso que ascende pela política), Anthony Hopkins, perfeito como o juiz que tenta encobrir o passado, Mark Rufallo, que faz o dândi em decadência que acaba se envolvendo nas artimanhas da política, e Kate Winslet, rejeitada pelo seu grande amor, o jornalista que tem dúvidas sobre a própria sexualidade (tanto é que esnoba a princesa e se atira nos braços do político carismático e, por força das circunstâncias, corrupto). O filme é, além disso, uma aula sobre a geografia da Luisiania, de New Orleans a Baton Rouge. Há tanto o que ver e notar que fica difícil fazer uma resenha que paire acima de seus elementos de formação. É preciso citar bastante, o que me deixa pouco à vontade para analisar sem as amarras desse fardo de informações.

Mas a gente tenta. “Todos os homens do rei” (título inspirado em Lewis Carrol e depois clonado em “All the president´s man”, sobre Watergate – eu não disse? é elemento demais) é uma necessidade da cidadania em pânico hoje diante do governo Bush. A podridão da política que enlameia os talentos e as consciências invade as mentes cansadas dos criadores contemporâneos de cinema, que procuram se refugiar, não na negação da América, mas na abordagem de suas culpas antigas.

Uma dessas culpas é o roubo do Texas dos mexicanos. Como fazer algo convincente sobre um episódio tão sinistro? Pois “O Alamo” consegue. Não tira a razão dos mexicanos, mas justifica a luta pela situação criada na época, em que americanos, mexicanos e texanos se uniram para fazer um país independente. Segundo o filme, o novo estado é fruto de uma luta e das necessidades de uma população ameaçada pela ditadura do centralismo. Sabemos que os americanos não suportam vizinhos e tudo fazem para engoli-los. Assim mesmo, o Alamo é um filme soberbo e merece ser visto. Dirigido por John Lee Hancock (que substituiu Ron Howard, que exigira o dobro do orçamento) e com roteiro, entre outros, de Stephen Gagham (um dos mais prestigiados roteiristas atuais), o filme tem no elenco Denis Quaid (que substituiu Russel Crowne depois que Howard se retirou da direção) como o General Sam Houston; Billy Bob Thornton, estupendo, como um Davy Crockett que desdramatiza o próprio mito para reencarná-lo em nova roupagem, mais adequada aos novos tempos, e o genial Emilio Echevarria, que faz um napoleônico general Antonio Lopez de Santa Ana. É de Emilio a melhor fala do filme: se não houver sangue e lágrima agora, diz, as próximas gerações de mexicanos vão mendigar migalhas dos americanos.

Estão aí os principais dados. Resta pouco espaço pra a análise: a América precisa ser recosturada para continuar existindo. Não basta deitar sobre mitos antigos, defasados (o velho Crockett foi interpretado por John Wayne nos anos 60). É preciso regatar a História e redescobrir nela os motivos dos eventos, a lógica da nação, a linhagem das personalidades. Thornton, quando descreve um massacre de índios, é lapidar: a memória é resgatada praticamente sem emoção, mas provoca náuseas na platéia e no próprio narrador. Mas há o tom de que aquilo foi definitivo e nada pode mudar. A América se encara de frente e lambe suas feridas, mas não abre mão de suas conquistas. Injusto? Certamente. Mas do jeito que é filmado, absolutamente brilhante.
RETORNO - 1. Imagens de hoje: Thornton ao centro, na foto de cima e Sean Penn, na de baixo. 2. Só a cena da batalha que definiu a posse de O Alamo levou um mês para ser filmada. É de tirar o fôlego. 3. O making of de O Alamo é magnífico, cheio de detalhes sobre a saga que foi fazer o filme. 4. É importante dizer: nem o novo Alamo é um faroeste nem o novo All the King´s men é um filme noir, apesar dos cruzamentos. Ao substituir a velha roupagem dos mitos, o cinema se transforma em outra coisa. Ainda não sabemos o que é.

3 de março de 2007

ARQUELOGIA NO DESERTO





Em Pesadelo Refrigerado, Henry Miller identifica a origem do pesadelo norte-americano na idéia de uma nação que despreza a arte e a cultura. (Resenha publicada neste sábado, 3/03/2007, no caderno Cultura, do Diário Catarinense).

Nei Duclós

Não são os vestígios que importam, mas suas fontes humanas. A arqueologia não deveria se ocupar das ruínas, mas do esplendor das mãos anterior a elas. Isso poderia tirar do estudo do passado remoto sua roupagem funerária, sua obsessão por túmulos, suas descobertas que se transformam em museus suntuosos. Descobrir um gesto numa fogueira extinta é mais importante do que ver imobilizado um trono de ouro acompanhando múmias.

A função civilizatória da arqueologia não é o deslumbramento provocado pela precocidade dos ancestrais, mas enxergar o que qualquer civilização esconde quando for comparada ao verdadeiro enigma, a natureza. O que faz o projeto esquecido de uma pirâmide no alto da montanha? Qual o sentido de uma cidade industrial americana colocada ao lado do Grand Canyon? Esses eventos poderão revelar toda a fuligem, precariedade, escândalo e horror que acompanham a modernidade?

É disso que se ocupa Henry Miller no seu clássico livro de viagens, Pesadelo Refrigerado (tradução de José Rubens Siqueira, Francis, 320 páginas, R$ 42), um trabalho arqueológico que despreza os vestígios, a não ser que sirvam para provar sua tese sobre a sujeira da América. Ao detectar a origem do pesadelo - o divórcio entre homem e natureza no país que despreza a arte e a cultura - ele vai atrás do tesouro verdadeiro oculto a quilômetros abaixo das aparências: os gênios, anônimos ou simplesmente desprezados e perseguidos, que fazem a grandeza da sua época e que passam despercebidos pela brutalidade de uma nação que aposta nas vantagens da guerra. Esta, já estava desencadeada na Europa na época em que foi escrito o livro, mas ainda não havia o engajamento, vislumbrado como iminente, do governo Roosevelt, em 1941.

Miller costuma acertar porque não faz concessões, como comprovam algumas frases ciscadas (e colocadas aqui em seqüência, para destacar a contundência de suas análises e profecias) no seu percurso pelo país que o assusta o tempo todo: "Neste mundo, o poeta é anátema, o pensador um tolo, o artista um alienado, o homem de visão um criminoso. O pior sofrimento é o que se encontra no próprio coração do progresso. Todo o mundo branco se transformou em um campo armado. Vamos aprender a aniquilar o planeta inteiro num piscar de olhos - espere só para ver".

Diante do pesadelo, que é o país deserto e insuportável, os gênios pontuam a trajetória do autor envolvendo-o em passeios, conversas, evidências. Inspirado nas palavras de Swamii Vivekananda, o primeiro grande difusor das idéias espirituais da Índia no Ocidente e que fez grande sucesso na virada do século 19 para o 20, Miller aposta nas mentes ocultas, naquelas criaturas que transformam o mundo e jamais vêm à tona, ou quando são vistas, todos fingem não enxergá-las.

Assim, convivem no mesmo espaço de revelações profundas tanto o morador do deserto, homem simples e isolado, que ensina os arqueólogos sobre os verdadeiros motivos de uma tragédia ocorrida milhares de anos antes, quanto pintores considerados fundamentais, como John Marin e Marion Souchon. Revolucionários do som ordenado que mudaram radicalmente a percepção da música, como Edgar Varèse, são vistos com a mesma grandeza de um velho mecânico que fez o Buick do autor cruzar infinitos espaços sufocados por altas temperaturas.

Não se trata, entretanto, de um livro de viagens exótico ou "esnobe", como dele disseram na imprensa brasileira. Por ser radical, por colocar os gênios como milagres que desafiam uma cultura autodestrutiva, Miller provoca o desconforto habitual da fornalha da sua escrita. O leitor não faz uma viagem agradável pelas paisagens físicas e humanas de uma América deslumbrante e aterradora. Não se trata de um livro para confirmar a hegemonia de algo irreversível ou para entreter quem quer que seja. É obra de arte, no que isso tem de mais provocador e gratificante. Mesmo escrito há mais de 60 anos, serve para gerar uma nova visão do país que emergiu da guerra como se fosse o paradigma de uma civilização futurista e nada mais é, segundo o próprio Miller, do que o final de um processo que está destinado a desaparecer, fruto de suas próprias contradições.

"O estilo americano é seduzir o homem por meio da propina até torná-lo um prostituto", diz Miller, para não deixar dúvidas sobre o pseudocharme da civilização hoje vitoriosa no mundo. Ao ser lido depois que todas as suas suspeitas e certezas sobre o que via se confirmaram, entraram em ascensão irresistível e agora chafurdam nas areias do Iraque, Henry Miller, com Pesadelo Refrigerado, encerra o melhor das profecias, que são as percepções colhidas no início dos acontecimentos, quando estes se encontram em estado quase latente em relação ao que poderão desenvolver. A América prestes a entrar na guerra intensificaria todos os seus erros e disseminaria pelo mundo a adoração pelo dinheiro. Isso incomodava na época e hoje é mais atual do que nunca.

A guerra faria a civilização americana chegar ao auge, mas a França, na época sob o tacão nazista, não seria destruída, segundo Miller. A França é o contraponto ao pesadelo refrigerado e seu modelo são os anos 1930, quando Miller rodou por Paris e produziu suas grandes obras, como Trópico de Câncer. A viagem pelo país dilacerado provocava, nos detalhes, como ensinava Proust, um retorno às raízes da emoção do autor, fundamente fincadas nas paragens francesas. Suas madeleines - o doce que desencadeia a memória afetiva em Proust - em Miller são os detalhes de um passeio, uma conversa aleatória.

O que mais encanta no livro é a aguda visão do escritor dos lugares por onde anda sem os óculos do turista inconseqüente. Debocha dos comentários vazios dos que precisam devorar a paisagem amparados pela incultura onívora e chama a atenção para o chão púrpura da hospedaria onde uma turista entediada reclamava do crepúsculo, suave demais para quem precisava enxergar o sol como se fosse uma gigantesca omelete.

Literatura de combate sem ser de guerra, este é um livro que escancara a individualidade necessária nesta época em que tudo se parece, como se estivéssemos numa viagem tediosa por lugares famosos. O que é sagrado para Miller é essa abordagem única de um espírito livre, que, por sua altivez e profundidade, nos ensina mais do que nos deleita, e nos estoca para uma vida mais sincera e habitada. Sua arqueologia atinge o coração das trevas e de lá retira algo que está vivo e não se deixa morrer, mesmo que a guerra pareça interminável.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: foto de Henry Miller tirada no dia 22 de janeiro de 1940, e que está na capa do caderno Cultura, do Diário Catarinense . 2. A edição do Cultura, que tem apenas quatro páginas, é um banquete: Ionesco e Beckett por Dirce Waltrick do Amarante, professora de Literatura Infanto-Juvenil da UfSC; Luigi Pirandello, por Andréia Guerini, professora de Literatura da USFC; e Paulo Emilio Salles Gomes, por Maria Cecília de Miranda M. Coelho, doutora em Letras clássicas da USP. O editor do caderno é o jornalista Dorva Rezende, mestrando da UFSC, que dá banho em muito caderno cultural. 3. Esta resenha está publicada também, a partir deste domingo, dia quatro, na revista Cronopios , que está completando dois anos. No Café Literário, fórum de debates do site, o editor da Cronopios, Edson Cruz, definiu como "grande frase" esta, do início do texto acima: "A arqueologia não deveria se ocupar das ruínas, mas do esplendor das mãos anterior a elas".

2 de março de 2007

HOMERO VIVEU ENTRE NÓS



HOMERO VIVEU ENTRE NÓS
Jayme Caetano Braun é poeta muito querido e elogiado e sua morte provocou grande comoção. Pode-se dizer que sua poesia é a chave para entender o nativismo, esse movimento criado nos anos 50 e que deu tantos frutos, se espalhando por todo o Rio Grande e atingindo o país inteiro, pois até no meio da mata tem CTG – Centro de Tradições Gaúchas. Essa vasta obra, feita quase toda, senão toda, no improviso, guarda no entanto um segredo.
Esse segredo só poderá ser revelado à medida em que descolarmos o poeta da bandeira na qual se enrodilhou a vida inteira. Pois não se trata apenas de um trovador gauchesco, ou payador, como ele se definia. Mas de um autor em que todos os seus versos formam um único poema, um épico, uma rapsódia do Brasil profundo. Braun, filho de um professor alemão com mulata, é o rapsodo, que ia de cidade em cidade recitando um grande poema de formação, do povo e seus costumes, da história e suas guerras, do tempo e suas glórias e misérias. Tudo dito e escrito na língua de Camões e não num patuá regional. E com todo o vocabulário do pampa, sem que as palavras típicas desvirtuassem a construção clássica, a melodia épica que vem de Camões e chega até nós pela voz de Castro Alves.

Estudioso, letrado, conhecedor da História da sua terra, Braun incorporava o linguajar popular da mesma forma que Hernandez produziu o Martin Fierro. Como notou Jorge Luis Borges, foram poetas estudados que, ao participarem da guerra e ao conviverem com as pessoas simples do povo, é que construíram toda uma cultura gauchesca de sabor especial para quem nasceu nesse territórtio batido pelo minuano. O artista genuinamente popular não desveste a linguagem como faz Hernandez ou Braun, já que tem uma idéia mais pomposa da arte. São os radicais dessa modernidade que virou do século 19 para o vinte que criaram algo que se confundiu com a paisagem: obras até hoje ditas em voz alta.

Vamos ver trechos famosos de poemas de Braun, daqueles que eu ouvia quando criança. Um deles diz: “A pátria é minha família/ não há Brasil sem Rio Grande/ e nem tirano que mande/ numa alma farroupilha”. Outro, tirado do poema Acampamento Farrapo, mostra o seguinte:

"Bandeira de 35, Divino pendão de guerra.
Que guarda gritos de terra entre as dobras andarilhas.
Pano de altar das coxilhas, desfraldado por condores,
prece rezada em 3 cores em sobrehumanos rituais...
O verde, os campos gerais do Rio Grande despenteado,
o matambre amarelado numa alvorada de outubro
e o campo... vermelho rubro, num sol de tarde sangrado.
Troféu mil vezes sagrado, pátria encarnada em um pano,
pedaço de chão pampeano que a historia guasca eterniza.
Foste a primeira divisa do Brasil republicano." (*)

A perfeição do verso, a contundência da metáfora, o engajamento guerreiro, a convocação pela maestria da oratória, a riqueza melódica levam Braun para o alto e para longe de seus pares. E dizer que foi um Homero considerado um simples trovador, que assumia a autoria até de longos poemas pornográficos, já que nada ficou de fora de sua verve: a medicina popular, o erotismo, a negritude, as misturas de raças, as lutas, a prostituição, a família, o amor materno, tudo. Da sala à cozinha, do cercado ao descampado, do amor ao combate, do remorso à exaltação, o rapsodo compôs seu grande épico de formação. Este é o segredo que guarda, que grita para ser revelado inteiramente, com mais provas do que um simples ensaio de instauração literária, como este.



RETORNO - Pedi a continuação do poema Acampamento Farrapo para meu irmão Elo Ortiz Duclós, que sabe as poesias de Braun na ponta da língua e ele me atendeu. O poema funciona como um curso completo de antropologia e história, sem pose e no alvo. Lá vai:

(*)"Bandeira tu ressuscitas, na glória de cada fiapo/ O Acampamento Farrapo embaçado de fumaça./ É o formigueiro da Raça que está reunido em concílio /É o bugre que - de lombilho,vem levantando aos bocejos /São os mestiços andejos, mal encarados e sérios /São castelhanos gaudérios vaqueano de montoneras/ Que bandearam as fronteiras por força de algum instinto/ É o negro chucro, retinto, dos grilhões recém liberto/ É o piá voluntário esperto, guri ainda - rosto liso/ É o chiru velho preciso que pensa mais do que fala/ É o estancieiro de pala que chimarreia sisudo /É o mulato façanhudo de adaga grande à cintura /É a impressionante figura do charrua de melenas/ É o soldado de chilenas e uniforme desbotado/ É o lenço bem colorado num pescoço de Oriental/ É a Tricolor Oficial num tope republicano/ É o carreteiro vaqueano que segue o rastro das tropas/ São abas largas e copas, vinchas quepes e chapéus/ Laços apêros, sovéus, num mar de pilchas gaúchas/ Boleadeiras e garruchas ponchos palas multicores/ Chiripás e tiradores, chocolateiras, cambonas/ São guitarras e cordeonas chamuscads nos fandangos/ Espadas, adagas, mangos e as lanças que os peleadores/ manejavam com primores nas arrancadas sem conta/ todas trazendo na ponta as flameantes Tricolores!/ Que culto estranho - que pampeano rito/ Vivem tais vultos que divergem tanto/ É a liberdade que fundiu num grito/ Todas as vozes do Rio Grande santo! "