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3 de março de 2007

ARQUELOGIA NO DESERTO





Em Pesadelo Refrigerado, Henry Miller identifica a origem do pesadelo norte-americano na idéia de uma nação que despreza a arte e a cultura. (Resenha publicada neste sábado, 3/03/2007, no caderno Cultura, do Diário Catarinense).

Nei Duclós

Não são os vestígios que importam, mas suas fontes humanas. A arqueologia não deveria se ocupar das ruínas, mas do esplendor das mãos anterior a elas. Isso poderia tirar do estudo do passado remoto sua roupagem funerária, sua obsessão por túmulos, suas descobertas que se transformam em museus suntuosos. Descobrir um gesto numa fogueira extinta é mais importante do que ver imobilizado um trono de ouro acompanhando múmias.

A função civilizatória da arqueologia não é o deslumbramento provocado pela precocidade dos ancestrais, mas enxergar o que qualquer civilização esconde quando for comparada ao verdadeiro enigma, a natureza. O que faz o projeto esquecido de uma pirâmide no alto da montanha? Qual o sentido de uma cidade industrial americana colocada ao lado do Grand Canyon? Esses eventos poderão revelar toda a fuligem, precariedade, escândalo e horror que acompanham a modernidade?

É disso que se ocupa Henry Miller no seu clássico livro de viagens, Pesadelo Refrigerado (tradução de José Rubens Siqueira, Francis, 320 páginas, R$ 42), um trabalho arqueológico que despreza os vestígios, a não ser que sirvam para provar sua tese sobre a sujeira da América. Ao detectar a origem do pesadelo - o divórcio entre homem e natureza no país que despreza a arte e a cultura - ele vai atrás do tesouro verdadeiro oculto a quilômetros abaixo das aparências: os gênios, anônimos ou simplesmente desprezados e perseguidos, que fazem a grandeza da sua época e que passam despercebidos pela brutalidade de uma nação que aposta nas vantagens da guerra. Esta, já estava desencadeada na Europa na época em que foi escrito o livro, mas ainda não havia o engajamento, vislumbrado como iminente, do governo Roosevelt, em 1941.

Miller costuma acertar porque não faz concessões, como comprovam algumas frases ciscadas (e colocadas aqui em seqüência, para destacar a contundência de suas análises e profecias) no seu percurso pelo país que o assusta o tempo todo: "Neste mundo, o poeta é anátema, o pensador um tolo, o artista um alienado, o homem de visão um criminoso. O pior sofrimento é o que se encontra no próprio coração do progresso. Todo o mundo branco se transformou em um campo armado. Vamos aprender a aniquilar o planeta inteiro num piscar de olhos - espere só para ver".

Diante do pesadelo, que é o país deserto e insuportável, os gênios pontuam a trajetória do autor envolvendo-o em passeios, conversas, evidências. Inspirado nas palavras de Swamii Vivekananda, o primeiro grande difusor das idéias espirituais da Índia no Ocidente e que fez grande sucesso na virada do século 19 para o 20, Miller aposta nas mentes ocultas, naquelas criaturas que transformam o mundo e jamais vêm à tona, ou quando são vistas, todos fingem não enxergá-las.

Assim, convivem no mesmo espaço de revelações profundas tanto o morador do deserto, homem simples e isolado, que ensina os arqueólogos sobre os verdadeiros motivos de uma tragédia ocorrida milhares de anos antes, quanto pintores considerados fundamentais, como John Marin e Marion Souchon. Revolucionários do som ordenado que mudaram radicalmente a percepção da música, como Edgar Varèse, são vistos com a mesma grandeza de um velho mecânico que fez o Buick do autor cruzar infinitos espaços sufocados por altas temperaturas.

Não se trata, entretanto, de um livro de viagens exótico ou "esnobe", como dele disseram na imprensa brasileira. Por ser radical, por colocar os gênios como milagres que desafiam uma cultura autodestrutiva, Miller provoca o desconforto habitual da fornalha da sua escrita. O leitor não faz uma viagem agradável pelas paisagens físicas e humanas de uma América deslumbrante e aterradora. Não se trata de um livro para confirmar a hegemonia de algo irreversível ou para entreter quem quer que seja. É obra de arte, no que isso tem de mais provocador e gratificante. Mesmo escrito há mais de 60 anos, serve para gerar uma nova visão do país que emergiu da guerra como se fosse o paradigma de uma civilização futurista e nada mais é, segundo o próprio Miller, do que o final de um processo que está destinado a desaparecer, fruto de suas próprias contradições.

"O estilo americano é seduzir o homem por meio da propina até torná-lo um prostituto", diz Miller, para não deixar dúvidas sobre o pseudocharme da civilização hoje vitoriosa no mundo. Ao ser lido depois que todas as suas suspeitas e certezas sobre o que via se confirmaram, entraram em ascensão irresistível e agora chafurdam nas areias do Iraque, Henry Miller, com Pesadelo Refrigerado, encerra o melhor das profecias, que são as percepções colhidas no início dos acontecimentos, quando estes se encontram em estado quase latente em relação ao que poderão desenvolver. A América prestes a entrar na guerra intensificaria todos os seus erros e disseminaria pelo mundo a adoração pelo dinheiro. Isso incomodava na época e hoje é mais atual do que nunca.

A guerra faria a civilização americana chegar ao auge, mas a França, na época sob o tacão nazista, não seria destruída, segundo Miller. A França é o contraponto ao pesadelo refrigerado e seu modelo são os anos 1930, quando Miller rodou por Paris e produziu suas grandes obras, como Trópico de Câncer. A viagem pelo país dilacerado provocava, nos detalhes, como ensinava Proust, um retorno às raízes da emoção do autor, fundamente fincadas nas paragens francesas. Suas madeleines - o doce que desencadeia a memória afetiva em Proust - em Miller são os detalhes de um passeio, uma conversa aleatória.

O que mais encanta no livro é a aguda visão do escritor dos lugares por onde anda sem os óculos do turista inconseqüente. Debocha dos comentários vazios dos que precisam devorar a paisagem amparados pela incultura onívora e chama a atenção para o chão púrpura da hospedaria onde uma turista entediada reclamava do crepúsculo, suave demais para quem precisava enxergar o sol como se fosse uma gigantesca omelete.

Literatura de combate sem ser de guerra, este é um livro que escancara a individualidade necessária nesta época em que tudo se parece, como se estivéssemos numa viagem tediosa por lugares famosos. O que é sagrado para Miller é essa abordagem única de um espírito livre, que, por sua altivez e profundidade, nos ensina mais do que nos deleita, e nos estoca para uma vida mais sincera e habitada. Sua arqueologia atinge o coração das trevas e de lá retira algo que está vivo e não se deixa morrer, mesmo que a guerra pareça interminável.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: foto de Henry Miller tirada no dia 22 de janeiro de 1940, e que está na capa do caderno Cultura, do Diário Catarinense . 2. A edição do Cultura, que tem apenas quatro páginas, é um banquete: Ionesco e Beckett por Dirce Waltrick do Amarante, professora de Literatura Infanto-Juvenil da UfSC; Luigi Pirandello, por Andréia Guerini, professora de Literatura da USFC; e Paulo Emilio Salles Gomes, por Maria Cecília de Miranda M. Coelho, doutora em Letras clássicas da USP. O editor do caderno é o jornalista Dorva Rezende, mestrando da UFSC, que dá banho em muito caderno cultural. 3. Esta resenha está publicada também, a partir deste domingo, dia quatro, na revista Cronopios , que está completando dois anos. No Café Literário, fórum de debates do site, o editor da Cronopios, Edson Cruz, definiu como "grande frase" esta, do início do texto acima: "A arqueologia não deveria se ocupar das ruínas, mas do esplendor das mãos anterior a elas".

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