Páginas

2 de março de 2007

HOMERO VIVEU ENTRE NÓS



HOMERO VIVEU ENTRE NÓS
Jayme Caetano Braun é poeta muito querido e elogiado e sua morte provocou grande comoção. Pode-se dizer que sua poesia é a chave para entender o nativismo, esse movimento criado nos anos 50 e que deu tantos frutos, se espalhando por todo o Rio Grande e atingindo o país inteiro, pois até no meio da mata tem CTG – Centro de Tradições Gaúchas. Essa vasta obra, feita quase toda, senão toda, no improviso, guarda no entanto um segredo.
Esse segredo só poderá ser revelado à medida em que descolarmos o poeta da bandeira na qual se enrodilhou a vida inteira. Pois não se trata apenas de um trovador gauchesco, ou payador, como ele se definia. Mas de um autor em que todos os seus versos formam um único poema, um épico, uma rapsódia do Brasil profundo. Braun, filho de um professor alemão com mulata, é o rapsodo, que ia de cidade em cidade recitando um grande poema de formação, do povo e seus costumes, da história e suas guerras, do tempo e suas glórias e misérias. Tudo dito e escrito na língua de Camões e não num patuá regional. E com todo o vocabulário do pampa, sem que as palavras típicas desvirtuassem a construção clássica, a melodia épica que vem de Camões e chega até nós pela voz de Castro Alves.

Estudioso, letrado, conhecedor da História da sua terra, Braun incorporava o linguajar popular da mesma forma que Hernandez produziu o Martin Fierro. Como notou Jorge Luis Borges, foram poetas estudados que, ao participarem da guerra e ao conviverem com as pessoas simples do povo, é que construíram toda uma cultura gauchesca de sabor especial para quem nasceu nesse territórtio batido pelo minuano. O artista genuinamente popular não desveste a linguagem como faz Hernandez ou Braun, já que tem uma idéia mais pomposa da arte. São os radicais dessa modernidade que virou do século 19 para o vinte que criaram algo que se confundiu com a paisagem: obras até hoje ditas em voz alta.

Vamos ver trechos famosos de poemas de Braun, daqueles que eu ouvia quando criança. Um deles diz: “A pátria é minha família/ não há Brasil sem Rio Grande/ e nem tirano que mande/ numa alma farroupilha”. Outro, tirado do poema Acampamento Farrapo, mostra o seguinte:

"Bandeira de 35, Divino pendão de guerra.
Que guarda gritos de terra entre as dobras andarilhas.
Pano de altar das coxilhas, desfraldado por condores,
prece rezada em 3 cores em sobrehumanos rituais...
O verde, os campos gerais do Rio Grande despenteado,
o matambre amarelado numa alvorada de outubro
e o campo... vermelho rubro, num sol de tarde sangrado.
Troféu mil vezes sagrado, pátria encarnada em um pano,
pedaço de chão pampeano que a historia guasca eterniza.
Foste a primeira divisa do Brasil republicano." (*)

A perfeição do verso, a contundência da metáfora, o engajamento guerreiro, a convocação pela maestria da oratória, a riqueza melódica levam Braun para o alto e para longe de seus pares. E dizer que foi um Homero considerado um simples trovador, que assumia a autoria até de longos poemas pornográficos, já que nada ficou de fora de sua verve: a medicina popular, o erotismo, a negritude, as misturas de raças, as lutas, a prostituição, a família, o amor materno, tudo. Da sala à cozinha, do cercado ao descampado, do amor ao combate, do remorso à exaltação, o rapsodo compôs seu grande épico de formação. Este é o segredo que guarda, que grita para ser revelado inteiramente, com mais provas do que um simples ensaio de instauração literária, como este.



RETORNO - Pedi a continuação do poema Acampamento Farrapo para meu irmão Elo Ortiz Duclós, que sabe as poesias de Braun na ponta da língua e ele me atendeu. O poema funciona como um curso completo de antropologia e história, sem pose e no alvo. Lá vai:

(*)"Bandeira tu ressuscitas, na glória de cada fiapo/ O Acampamento Farrapo embaçado de fumaça./ É o formigueiro da Raça que está reunido em concílio /É o bugre que - de lombilho,vem levantando aos bocejos /São os mestiços andejos, mal encarados e sérios /São castelhanos gaudérios vaqueano de montoneras/ Que bandearam as fronteiras por força de algum instinto/ É o negro chucro, retinto, dos grilhões recém liberto/ É o piá voluntário esperto, guri ainda - rosto liso/ É o chiru velho preciso que pensa mais do que fala/ É o estancieiro de pala que chimarreia sisudo /É o mulato façanhudo de adaga grande à cintura /É a impressionante figura do charrua de melenas/ É o soldado de chilenas e uniforme desbotado/ É o lenço bem colorado num pescoço de Oriental/ É a Tricolor Oficial num tope republicano/ É o carreteiro vaqueano que segue o rastro das tropas/ São abas largas e copas, vinchas quepes e chapéus/ Laços apêros, sovéus, num mar de pilchas gaúchas/ Boleadeiras e garruchas ponchos palas multicores/ Chiripás e tiradores, chocolateiras, cambonas/ São guitarras e cordeonas chamuscads nos fandangos/ Espadas, adagas, mangos e as lanças que os peleadores/ manejavam com primores nas arrancadas sem conta/ todas trazendo na ponta as flameantes Tricolores!/ Que culto estranho - que pampeano rito/ Vivem tais vultos que divergem tanto/ É a liberdade que fundiu num grito/ Todas as vozes do Rio Grande santo! "