Hoje encerro a série de três artigos sobre o livro A terra dos longos olhares, da Editora Holoedro, cuidando de alguns textos que ficaram de fora dos anteriores e me aproximando um pouco dos poemas que constam nesta antologia. Vou reunir mais tarde tudo num só ensaio, que será publicado no site. Por enquanto, a abordagem sobre identificação e estranhamento, que me pegou pela unha a partir de ontem, não provocou nenhum comentário, sinal de que a fronteira aguarda o desfecho das divulgações para debater os temas abordados pela crítica, da qual, a meu modo, também faço parte. Vamos começar por No sul, há muito tempo, de Tabajara Ruas, que é exemplar do que procuro dizer sobre esta publicação, que nos leva, como toda fronteira, até o limite entre o que estamos acostumados a ver e ser e o que nos espera na dobra de uma esquina ou na curva do tempo.
RASTRO - De que trata o conto do Taba? De uma perseguição. Um cavaleiro vindo de longe pergunta por um fugitivo. As pessoas consultadas despistam e ele se vai. Mas o procurado está no meio de quem negou a identidade do foragido. Ou seja, existe uma comunidade, gerada pela guerra, identificada como uma tropa, e situada no fim do mundo. O general a paisana chega sem ninguém saber quem é. É uma identidade oculta, que provoca estranhamento. Está buscando uma pessoa para tratar dos cavalos usados na luta. Mas essa pessoa está amarrada, pronta para morrer, só que o estranho não sabe quem ele é. O rastreador procura um índio, e o prisioneiro do posto militar é também um índio. Os dois são a mesma pessoa, mas o perseguidor não sabe disso e acaba indo embora, deixando a vítima para ser esfolada e perdendo assim a chance de conseguir o que procura. É um feixe de identidades ocultas, que se retorcem em cenas de estranhamento: visitante x acampados, índios x soldados, rastreador x fugitivo, militar fardado x militar a paisana. Em poucas páginas, Taba reúne o principal conflito de uma fronteira: identificação x estranhamento.
PASSEIO - O casal de Passeio no povo, de Colmar Duarte, vai no mesmo rastro. O peão que ajuda a moça pobre e torna-se seu amante descobre que há um outro, que o ataca numa tocaia. Ele quer contar a verdade para o capataz e justifica-se dizendo que jamais falou mentiras. Mas quem vai ouvir sua história é o irmão do outro, que acabou assassinado. Onde colocar a verdade, o que fazer com a coragem, tão familiares e que acabam se defrontando com uma situação de total estranhamento? O atacante que erra pênaltis em Sibila o instrumento..., de Elder Oliveira, por ser ruim de bola, não faz parte da confraria do futebol. Os torcedores querem enviá-lo para jogar rugby. Em O visitante ilustre, de Genaro Alfano, o paisagista de Napoleão, Alexandre Bonpland tenta se refugiar no Brasil, mas não é aceito, e acaba indo para o outro lado da fronteira. Pessoas de fora, insumo principal dos habitantes da fronteira, são a encarnação do estranhamento que chega de longe e não é compreendido.
ALEGORIAS - No poema Vida, Luis Humberto Janceski tece um lamento pela biografia não realizada plenamente, ou seja, pela perda da identidade ("Minha vida é certa/ mas está errada"). A vida normal, aceita, certinha, não serve ao poeta. Ele é o estranho de si mesmo. A busca de uma identificação encontra, em Rubens Montardo Junior, a relação a dois. Para ele, todo verso é o último, e o amor é a intensidade que falta a essa vida normal. Nas canções de Bebeto Alves, personagens como o sambista naval ou o louco Loló trazem para a fronteira, território do estranhamento, as pessoas não codificadas pela mesmice e que batizam a terra com outras alegorias. Em Ubirajara Raffo Constant, a homenagem ao carpinteiro Alípio é o reconhecimento da arte de um ancião que faz ponte com a infância. A identificação entre as duas pontas do tempo é feita pela arte, um ofício à margem, mas que forma consciência, caráter e inventa escritores. Há segredos no espelho de Tukano Neto, mas eles não podem ser revelados. Amor, tragédia, sonho: não há o que mencionar neste silêncio forçado, imposto pela mesmice e contra o qual o poeta se rebela. A saudade, tanto em Tukano Neto quanto em Rafael Gomes, é o tempo cobrando a conta da vida que se esvai na normalidade e que fustiga a emoção e o gosto jamais saciado da aventura.
SOLIDÃO - A contrição de poetas urbanos, que sofrem diante da tradição do movimento e da luta, faz parte desse universo confinado, dividido entre normalidade e ruptura, entre ausência e fantasia. Onéu Prati Molina procura trazer a figura do poeta para essa vida igual em tudo, para que possa explodir. Marina Coello aposta na ternura feminina para contrapor-se a essa parede que cerca a palavra, enquanto Luiz de Miranda, que neste 2005 chega aos gloriosos 60 anos de idade, nos brinda com uma Pequena elegia do abandono, onde prefere a solidão à companhia fria. Miranda quer ficar sozinho se não houver esperança de encontro. De sua coragem deixai-me que lhes diga: é um poeta único, que luta todos os dias por uma vida fora das garras, das correntes. Carlos Omar Villela Gomes, ao lembrar Dos que se foram, dá o testemunho dos parentes mortos, e convoca a ressurreição. A poesia da fronteira, assim, tece a vida paralela, a que poderia ter sido, banhada de impossibilidades, mas que alimenta o sonho par enfrentar a dura rotina diária. É uma alternativa à identificação dos hábitos e uma proposta de estranhamento por meio da palavra emocionada.
RETORNO - Por último, mas não menos importante: as fotos da capa são todas de Anderson Petroceli, o fotógrafo maior da fronteira. O entardecer no pampa e no rio, e o dia claro, dividido entre rebanho e nuvem, convidam o leitor para esta viagem gratificante.
Blog de Nei Duclós. Jornalismo. Poesia. Literatura. Televisão. Cinema. Crítica. Livros. Cultura. Política. Esportes. História.
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30 de setembro de 2005
29 de setembro de 2005
ENCONTRO NO ESCURO
Cultura é encontro entre pessoas. Não um encontro qualquer, mas um acerto de contas. Uma conversa em círculos, que busca saídas de espiral. Um mergulho para assomar em outras superfícies. O impulso gerador do encontro é o resgate, pautado pela impossibilidade, já que o passado sempre some e nossas mãos ficam vazias com o que perdemos. O Tempo, essa traição constante, é o insumo que alimenta a fábrica da palavra no livro A terra dos longos olhares, encontro de 30 autores nascidos ou moradores em Uruguaiana. Ele foi editado para significar "a pedra fundamental de um lugar aonde podemos voltar" , segundo a organizadora, professora Lucia Silva e Silva. O Tempo, matéria-prima não maleável, não se conforma às intenções dos autores, mas por intermédio deles mostra algumas garras. O livro é uma chance de enxergarmos o que realmente fazemos com verbo que nos foi confiado e que em nossas vidas ganhou caminhos diversos, opostos, mas que insistem em se identificar (ou se excluir) mutuamente.
FORMAÇÃO - "O importante não é o lugar de onde viemos", me disse um dia Tabajara Ruas (um dos autores do livro, com o conto No Sul, há muito tempo). "Mas para onde estamos nos dirigindo". Aparentemente, somos escritores ligados por uma formação em comum, procurando exercer os valores que nos criaram, que crescem de importância à medida em que o Brasil vai sendo sucateado. O apelo dessa raiz é forte, mas o livro aponta, felizmente, para a extrema diversidade. Não podemos ser colocados na vala comum de uma confraria, já que somos agentes e vítimas da dispersão promovida pelo Tempo. No texto que enviei para fazer parte do livro, O dia de prata no meio do mato, reconheço que é impossível resgatar a vivência, do menino que fui, com meu pai, que se foi. A representação dessa descoberta é o peixe que escapa para sempre, logo depois de parecer estar solenemente fisgado. Tínhamos o Tempo, o Passado, nas mãos, mas ele se foi e se despediu. O que fica dessa busca? A revelação brutal do Outro, que somos nós. A morte, velório e enterro de Selene, a prima que foi criada depois de ser abandonada pela mãe e entregue pelo pai, no conto premiado de Vera Ione Molina, Passagem, é essa revelação da estranheza em relação ao semelhante. A prima veio de outro ventre, cresceu junto à família, onde foi excluída pela avó, rebelou-se aos 16 anos, abriu caminho do seu jeito e agora está morta, diante do choro dos amigos e parentes. Quem é essa criatura que não nos acostumamos a ver sempre a Mesma, mas que nos colocou diante do enigma que é o humano fora do circo doméstico e que é adotada como um corpo estranho?
TIRO - Essa cerzidura perfeita em suas minúcias no conto de Vera nos abre a porta para entender todo o livro. Ricardo Peró Job publica, mais do que um conto sobre a guerra, exatamente esse olhar sobre o Mesmo que se torna o Outro. O filho do bolicheiro, tão reconhecível pela convivência na infância, hoje será punido por deserção. O próprio narrador é escolhido para participar do desenlance. Nós somos os assassinos do que parece ser idêntico a nós, somos forçados a ver o que nos recusamos ver e a tomar uma atitude. O que estava encoberto pela superfície do hábito emerge como um tiro de fuzil. Quem é essa menina doce que descreve o desespero da avó afastada do seu leque precioso no conto Objeto de Desejo, de Silvio Genro? Ela é a algoz num jogo mortal com sua vítima. Não é uma criança qualquer, é o Terror sob a capa da falsa harmonia. O Pânico diante do semelhante, o estranhamento levado às últimas conseqüências, está em Arremesso de Peso, de Túlio Urach, em que o humano é virado do avesso para revelar as vísceras.O que parecia ser um atleta é um monstro. O pacto sinistro, no conto Encruzilhada, de Ricardo Duarte, e a desmistificação das aparências, em Olha que coisa mais linda..., de Fernando Pereira a Silva, aprofundam essa pesquisa sobre os semelhantes, para detectar neles o inóspito, o inaudito, o não visto. O amor, em Duarte, e o tesão, em Fernando, são passaportes para que a estranheza enfim aporte na cidade que parece ser sempre igual.
ÂNCORA - Esse encontro no escuro, em que as cenas ficam à mostra por alguns instantes (os momentos da leitura), não elimina a existência de algumas âncoras. Se estamos no mesmo barco, onde pipocam flashes sobre o inusitado, é preciso que alguém cuide do porão, do remo, do combustível. Disso se encarrega Daniel Fanti, autor de admirável obra sobre a História da cidade e que nos leva pelas balsas do rio Uruguai por meio de um personagem que dedicou a vida ao jogo bruto do extrativismo e do transporte pelas águas. Ou Lourival de Araújo Gonçalves, com seu minidicionário de uruguaianês. E principalmente um outsider, Hique Gomes, filho de uruguaianense, que vai atrás do que se escondia por trás de uma canção de Bebeto Alves (também presente na antologia com algumas Canções) e descobre o silêncio como fonte da milonga. Ou ainda Luiz Flodoardo Silva Pinto, sobre a relação do missioneiro com a fronteira e Pedro Grassi, sobre visitantes ilustres. Há ainda os poemas: mas isso é assunto para amanhã.
RETORNO - Escrever é reescrever. Fiz alguns acertos, que modificam um pouco a versão publicada às três e meia da tarde. Esta, antes das seis, está mais caprichada.
FORMAÇÃO - "O importante não é o lugar de onde viemos", me disse um dia Tabajara Ruas (um dos autores do livro, com o conto No Sul, há muito tempo). "Mas para onde estamos nos dirigindo". Aparentemente, somos escritores ligados por uma formação em comum, procurando exercer os valores que nos criaram, que crescem de importância à medida em que o Brasil vai sendo sucateado. O apelo dessa raiz é forte, mas o livro aponta, felizmente, para a extrema diversidade. Não podemos ser colocados na vala comum de uma confraria, já que somos agentes e vítimas da dispersão promovida pelo Tempo. No texto que enviei para fazer parte do livro, O dia de prata no meio do mato, reconheço que é impossível resgatar a vivência, do menino que fui, com meu pai, que se foi. A representação dessa descoberta é o peixe que escapa para sempre, logo depois de parecer estar solenemente fisgado. Tínhamos o Tempo, o Passado, nas mãos, mas ele se foi e se despediu. O que fica dessa busca? A revelação brutal do Outro, que somos nós. A morte, velório e enterro de Selene, a prima que foi criada depois de ser abandonada pela mãe e entregue pelo pai, no conto premiado de Vera Ione Molina, Passagem, é essa revelação da estranheza em relação ao semelhante. A prima veio de outro ventre, cresceu junto à família, onde foi excluída pela avó, rebelou-se aos 16 anos, abriu caminho do seu jeito e agora está morta, diante do choro dos amigos e parentes. Quem é essa criatura que não nos acostumamos a ver sempre a Mesma, mas que nos colocou diante do enigma que é o humano fora do circo doméstico e que é adotada como um corpo estranho?
TIRO - Essa cerzidura perfeita em suas minúcias no conto de Vera nos abre a porta para entender todo o livro. Ricardo Peró Job publica, mais do que um conto sobre a guerra, exatamente esse olhar sobre o Mesmo que se torna o Outro. O filho do bolicheiro, tão reconhecível pela convivência na infância, hoje será punido por deserção. O próprio narrador é escolhido para participar do desenlance. Nós somos os assassinos do que parece ser idêntico a nós, somos forçados a ver o que nos recusamos ver e a tomar uma atitude. O que estava encoberto pela superfície do hábito emerge como um tiro de fuzil. Quem é essa menina doce que descreve o desespero da avó afastada do seu leque precioso no conto Objeto de Desejo, de Silvio Genro? Ela é a algoz num jogo mortal com sua vítima. Não é uma criança qualquer, é o Terror sob a capa da falsa harmonia. O Pânico diante do semelhante, o estranhamento levado às últimas conseqüências, está em Arremesso de Peso, de Túlio Urach, em que o humano é virado do avesso para revelar as vísceras.O que parecia ser um atleta é um monstro. O pacto sinistro, no conto Encruzilhada, de Ricardo Duarte, e a desmistificação das aparências, em Olha que coisa mais linda..., de Fernando Pereira a Silva, aprofundam essa pesquisa sobre os semelhantes, para detectar neles o inóspito, o inaudito, o não visto. O amor, em Duarte, e o tesão, em Fernando, são passaportes para que a estranheza enfim aporte na cidade que parece ser sempre igual.
ÂNCORA - Esse encontro no escuro, em que as cenas ficam à mostra por alguns instantes (os momentos da leitura), não elimina a existência de algumas âncoras. Se estamos no mesmo barco, onde pipocam flashes sobre o inusitado, é preciso que alguém cuide do porão, do remo, do combustível. Disso se encarrega Daniel Fanti, autor de admirável obra sobre a História da cidade e que nos leva pelas balsas do rio Uruguai por meio de um personagem que dedicou a vida ao jogo bruto do extrativismo e do transporte pelas águas. Ou Lourival de Araújo Gonçalves, com seu minidicionário de uruguaianês. E principalmente um outsider, Hique Gomes, filho de uruguaianense, que vai atrás do que se escondia por trás de uma canção de Bebeto Alves (também presente na antologia com algumas Canções) e descobre o silêncio como fonte da milonga. Ou ainda Luiz Flodoardo Silva Pinto, sobre a relação do missioneiro com a fronteira e Pedro Grassi, sobre visitantes ilustres. Há ainda os poemas: mas isso é assunto para amanhã.
RETORNO - Escrever é reescrever. Fiz alguns acertos, que modificam um pouco a versão publicada às três e meia da tarde. Esta, antes das seis, está mais caprichada.
28 de setembro de 2005
O POUSO INTRANQÜILO
Dois livros chegam graças ao fim da greve dos Correios. O primeiro é A Terra dos longos olhares (Editora Holoedro), organizado pela professora Lucia Silva e Silva, da Uergs, e que enfeixa contos, crônicas, poemas e até um minidicionário, de 30 autores de Uruguaiana, um trabalho que revela a força, a diversidade e o alcance da literatura gerada pelos nascidos naquela fronteira. O outro é o aguardado Quando alegre partiste (Editora Francis), de Moacir Japiassu, que tem como subtítulo "Melodrama de um delirante golpe militar", que é, exatamente, o famigerado (de famoso) golpe de 1964. Tenho a honra de ser o autor da orelha deste que é o terceiro romance do mestre considerado por todos nós e que tem como prefaciador o Augusto Nunes. Estou muito bem acompanhado: no livro feito no pampa, compareço com aquela pescaria inesquecível, meio memória, meio ficção, que está ao lado de textos surpreendentes dos meus pares, que vou comentar aos poucos por aqui; e no lançamento do Japi, faço parte da seleção brasileira, pois junto com Nunes, que é top de linha do jornalismo pátrio, apresento este que é um dos maiores romancistas do Brasil. Tenho muita sorte. Japi, Tabajara Ruas e Urariano Mota, exatamente o trio de grandes escritores que hoje dispomos, são meus amigos. Mas o que quer dizer o título desta edição do DF?
LUCIDEZ - Em dois textos de apresentação, um na orelha e outro no prólogo, a professora Lucia Silva e Silva nos brinda com lúcida intervenção. Diz, primeiro, que nesta época de desenraizamento (ela prefere o termo globalização), estamos vivendo um resgate de origens, que contraria a tendência anterior, quando precisávamos ganhar o mundo. Com isso justifica o lançamento: "Juntar escritos de conterrâneos em um livro, mais do que um simples encontro, é pactuar pela sobrevivência de valores cujo desaparecimento nos atemoriza. É lançar a pedra fundamental de um lugar aonde podemos voltar". E, depois, ao justificar o título do livro, ela nota que a campanha gaúcha nos leva a aguçar o olhar, "na maioria das vezes sem interrupções, sem a oportunidade de pouso tranqüilo". Li alguns textos do livro. De cara, ou de primeira, como dizemos lá, destaco a presença de Pedro Augusto Grassi, assunto recorrente na casa dos meus pais, advogado e jornalista, que conta como a cidade reunia personalidades como Monteiro Lobato ou José Lins do Rego na passagem para os países do Prata. Alberto Moura, que mostra as origens dos nomes das ruas da cidade, lembra que a Guerra do Paraguai foi a principal inspiração para a escolha e lamenta a falta de critérios que ultimamente descaracteriza o mapa urbano. O que é preciso também destacar é a radicalidade dos textos, fruto do pouso intranqüilo de viventes como nós sobre temas como sexo, humor, violência, destino, infância. Ricardo Duarte, com sua cena de um pacto tremendo, me surpreendeu à primeira leitura. Mas tem muito mais. Fernando Pereira da Silva sobra na sua narrativa cheia de detalhes sobre a ilusão provocada por olhares fechados na vida monótona e que enxergam o que não existe em personagens de fora . Colmar Duarte cria o suspense de uma briga provocada por mulher e desveste a vaidade de uma coragem flagrada numa situação limite. Continuo a comentar amanhã.
ORELHA - Hoje, prefiro reproduzir aqui a orelha que fiz para o livro de Japi. Diz o seguinte: "A literatura escancarada deste livro abre um rombo no pano de fundo da História. Nessa brecha Moacir Japiassu coloca sua manopla de ourives e de lá arranca os cabelos da Medusa. As cobras criadas expostas ao leitor ainda se contorcem e exalam o mau cheiro da Memória. A colheita não é uma estante arrumadinha, mas a espiral de uma insônia regada a bolero, tango, samba-canção, tabaco e álcool.
Não se trata de copidescar esse texto ruim conhecido como golpe de 1964, ou criar a reportagem das gerações colhidas pelo Destino. Mas sim descobrir a composição de um improviso, os fatos que amargaram toda uma época, dispostos numa feira que tranca a rua e é impossível de ignorar.
Por ser do ramo, Japiassu nos revela como a imprensa, nos trechos transcritos ao longo do livro, foi acumulando camadas de mistificação enquanto o corpo dos protagonistas, as palavras usadas em cada capítulo, mofam nas prisões, somem de apartamentos e redações e cruzam barreiras em direção ao exílio. A partitura não leva ao lamento, nem ao berro, já que o artífice que enreda o leitor não descuida de sua mira. A peça exibe a sonora investida de uma sabedoria, que começa pela sobrevivência e atinge o esplendor pela escolha dos tambores.
Este é um romance que faz barulho pela natureza de barco cruzando pelo avesso a corredeira. Pela invasão de humanidade em pleno feriado nacional da consciência. Pela crueza do testemunho servindo de repasto para um ofício maldito. Faz maré pelo que detona, a partir de uma juventude que aprendeu a morrer. E de uma esperança que prefere ser brutal a ser senil.
Este é um livro cruel pelo que nos diz frente a frente. Como um irmão que nos conhece há tempos. Como um guerreiro que sabe a hora de partir. É quando ele nos revela que não há conforto na despedida. Mas que ainda temos uma chance, quando cultivamos mais do que a vingança, e atingimos a plenitude de uma selvagem alegria". (Nei Duclós)
RETORNO - A professora Lucia dá o crédito devido a Vera Ione Molina e Ricardo Peró Job, que além de fazer parte dos autores reunidos no livro, lideraram os trabalhos. Vera e Ricardo, criadores do caderno cultural Encontro, são também responsáveis, junto com o jornalista Francisco Alves (autor de Quente & Frio, que está no livro, conto sobre hilário assalto em Porto Alegre) são responsáveis pela revista Fronteira Livre, que está ótima. São agitadores culturais tão dinâmicos que produzem mais do que podemos comentar numa só edição do DF.
27 de setembro de 2005
TODOS CONFEREM
O atacante consegue fazer o gol. Segundo os comentaristas, ele foi lá e "conferiu". No pênalty a mesma coisa. O cara chutou, marcou, é porque ele conferiu. Enlouqueceram todos? O verbo tomou conta das mentes humanas, como um vírus vindo do espaço. Você não é um espectador, você é um fiscal, está sempre conferindo. Você não revê a jogada, você faz uma auditoria, vê se aquilo é aquilo mesmo, está conferindo. No próximo bloco, você poderá conferir o que anunciamos agora. Você ainda não viu a reportagem, mas já está sendo convidado para conferir dali a alguns minutos. Quando o que foi anunciado for para o ar, você não terá o privilégio de ver, já que estará ocupado no ofício de fiscalizar. Pode ser turismo, política, catástrofe. Você confere. Todos repetem isso, como num pesadelo.
MENTIRA - Ninguém rompe com o hábito, todos se entregam a uma conferição sem limites. As apresentadoras e dores piscam o olho convidando-o ao verbo recorrente. Fazem assim um sinal para dizer que você é importante, participa com seu escrutínio para não deixar nenhuma dúvida sobre nada. Tudo o que eles divulgam está sujeito assim ao ato do público ficar conferindo, dando foros de verdade ao que todos sabem, nem precisa conferir, é pura mentira. Só que a mentira, de tanto ser repetida, e de tanto passar, de maneira falsa, pelo crivo do espectador, soa como verdade (o pobre do espectador é um expectante, não confere nada). O troço foi conferido, ou então está exposto ao ato de conferir, portanto deve ser sério. Não é. Toda vez que mandam você conferir, puxe a sua Lugger. Carregada.
PSIU - Os puros do PT debandam, a maioria para o PSOL. São culpados. Não conferiram o que faziam das suas posições, de suas purezas, de suas virgindades. Deixaram que as quadrilhas tomassem conta do partido, dos governos. Fecharam os olhos para os fisiologismos. Deixaram que os ditadores expulsassem os militantes. Calaram, aceitaram, na ilusão de que tinham tomado o poder para transformar o país. O país transformou o partido. Agora refugiam-se em outro nicho, para continuar pontificando de maneira arrogante. Enquanto isso, o PT torna-se o novo PDS. Fica assim ao lado do PP, PMDB, PSDB e usa o PC do B para tomar conta do Parlamento. O PT é o novo centrão, cheio da grana. Para isso derrotaram o Brizola, ludibriaram o Brizola, desmoralizaram o Brizola, riram do Brizola, excluíram o Brizola. Foi para isso que destruíram o Brizola: para se locupletarem no centrão bem fornido da política fisiológica. Psiu, PSOL: não adianta nada, vocês são o PT de ontem, a mesma coisa. Um monstro inventado pela ditadura civil para erradicar o Brasil soberano. Psiu, PSOL: o Brasil já fez sua revolução francesa, foi a de 1930. Já houve a recondução dos Bourbon ao poder, foi 1964. Estamos em pleno Napoleão III, a História repetida como farsa do governo petista. Psiu, PSOL: estamos em pleno 18 Brumário de Karl Marx. Vocês serão amanhã o PT de hoje, como são hoje o PT de ontem. O que há na política é a reacomodação da canalha: todos mudam de lugar na dança das cadeiras para tudo continuar como está. A direita já fez isso e está bem acomodada no tucanato, no pefelismo e no pepismo. Agora é a vez da esquerda. Tudo farinha do mesmo saco. Tudo uma covardia só.
DESPEDIDAS - Nesta época de trevas, todos morrem, numa representação do quanto perdemos. Miguel Arraes, Apolônio de Carvalho, Ronald Golias: o Brasil se despede. Ficamos nós, os medíocres, enterrando o gênio, como disse Darcy Ribeiro no velório de Glauber.
26 de setembro de 2005
RECEITAS CONTRA O CORPO
Sobra programa e reportagens sobre como devemos nos alimentar. Mudar de dieta é o maior crime que podemos cometer contra nosso corpo. Se você sobreviveu tomando café com pão de manhã, arroz/bife/feijão/salada ao meio dia e sopa à noite, não vá querer virar zen-budista da alimentação ou macrobiótico, substituindo proteína por acelga, carboidrato por alpiste, macarrão por gelatina. É o politicamente correto do bucho. Estarás frito se fores nessa onda.
QUIABO - A indústria alimentícia adora te assustar para que percas completamente a noção do que precisas para continuar em pé. Te impõe coisas sem saber onde o bicho pega na tua vida diária, no teu país ou região. Nada sabe da tua biografia, das tuas doenças, de teus temores, da tua memória. Mas a toda hora colocam um monte de elefantes na tua cara e te dizem: se você não correr todos os dias, se você não subir montanhas, se você não assumir teu lado jóóvem, se continuares sendo tu mesmo, vais escapar das nossas garras, por isso te horrorizamos com pessoas de avental dizendo sandices, com gordalhões andando penosamente. Coma muita nectarina, nabo e quiabo. Devore hectolitros de suco de pena de ganso. E minta, minta muito que você cuida de sua alimentação, porque sabemos: queres mesmo é fazer aquela boquinha na madruga. Contrarie para ver a gastrite que vai acontecer.
LATA - Para te encher de culpa, os programas turísticos mostram como no Exterior se come bem e como as pessoas lá são felizes. Aquele pastelzinho português, aquele strudel alemão, aquela raviolada em Nápoles. Aqui, é só tristeza: dê-lhe sanduíche e comida de brasileiro. Pois cansei de tudo isso. Perdi a forma do meu corpo de tanta dieta que fiz (300 gramas no almoço, farelo matinal, sopinha rala à noite). Foi uma sanfona só. Acabei maior do que antes. Dez anos de insistência e chega. Uma boa goiabada com queijo depois do feijão com lingüiça às segundas-feiras, um cafezaço com queijo branco de manhã, um churrasco de vez em quando, uma cuca caseira antes do anoitecer chuvoso. Agora que está tudo perdido, tento voltar a mim mesmo. Lá em casa, em Uruguaiana, o café da manhã era esplendoroso. Nada tinha a ver com os breakfest de hotéis (que adoro) de hoje, mas era aquele pãozinho honesto com leite idem e café quase forte. Ao meio dia, o guisadinho com purê e sala de alface (para que mais?) e tomate. As quatro da tarde, mais café, junto com a gurizada da vizinhança. E à noite, qualquer coisa boa para a gente cruzar o que faltava da jornada. Sempre havia a hora do tô-com-fome, em que batíamos a lata de pão aí pelas onze. Mas a lata fazia barulho e bastava destampar a bicha para algum adulto acordar e dar o flagra. O melhor era a bolacha Argentina, de massa branquíssima e que ficava melhor a cada dia. Bolacha mesmo, daquelas batutas, com miolo inesquecível. Aliás, os argentinos sempre foram bambas em comida. Duraznos em calda La Dona, caramelos de leche, carne recém abatida, tudo era festa com los hermanos. Vínhamos de Libres carregados.
FORTE - Quando hoje comentam minha aparência (que é a maior grosseria que pode ser feita para uma pessoa) , gosto de lembrar que, quando tinha aí uns 70 quilos, ninguém elogiava, todo mundo dizia: que horror, estás doente, não comes. Mas sempre tive, como dizia meu pai, ácido de bateria no estômago. Nesta altura do campeonato, quase completando 57 anos, o tal ácido faz falta. Gostaria de digerir mais para enfrentar os outros. Ei, como estás forte. É verdade, tão forte que te darei agora mesmo uma bolacha nessa cara lambida.
RETORNO - Comentar a aparência é exercer a máxima: todo elogio traz embutido um esculacho. Estás bem, dizem, estás bem. E te olham com pena. Bleargh. A aparência, por não ser notada por quem aparece, deve ser de foro íntimo, e não propriedade alheia. Olhe nos olhos. É lá que pessoa se encontra. Só que vivemos na barbárie das superfícies e não na civilização dos mergulhos.
25 de setembro de 2005
O NÃO-LUGAR DOS TERMINAIS
As linhas de ônibus de Florianópolis não conectam mais os destinos dos passageiros. Elas concentram e despejam a população em terminais, espaços de confluência que não pertencem à estrutura urbana tradicional. O Tican, Terminal de Canasvieiras, por exemplo, não fica em Canasvieiras nem nas comunidades vizinhas (Ingleses, Cachoeira, Ponta das Canas, Capivari, Rio Vermelho). Está situado numa espécie de limbo, num ponto de passagem que não é vila, nem bairro, nem cidade. Está isolado, cercado por alguns instrumentos , como um colégio, vendas e algumas casas. Praticamente ninguém mora ali. O Terminal do Centro situa-se no aterro, que não foi incorporado à cidade, antes é um deserto composto de um centro de convenções, dois terminais (existe ainda o Maria Rita, intermunicipal), um sacolão e um vasto estacionamento, além de acessos à ponte e às estradas internas da ilha. Os terminais, no fundo, confinam a população, num esforço de organizar as forças dispersas em trânsito, para que assumam um fluxo multiplicável de consumo e adquiram uma ordem mensurável, disposta de maneira hierárquica, idêntica a que encontramos no mundo do trabalho. É uma obra da ditadura civil, a mesma que quer desarmá-lo para sempre, prezado leitor.
MISTÉRIO - Você entra no ônibus na parada perto da sua casa e paga uma passagem. Quando desce no terminal de Canasvieiras (pode ser em Trindade, Lagoa etc.) para se dirigir ao centro, paga novamente e entra na fila. A disputa por lugares é dura, surda, potencialmente conflituosa. O povo se atropela para ganhar espaço nas linhas e terá que pagar mais uma passagem se o seu destino não for o centro (se você tiver cartão magnético, é possível agrupar mais essa viagem no preço, mas se você não for daqui e estiver a passeio, por exemplo, estará ferrado, pagará novamente). Os ônibus demoram para sair e as filas se tornam gigantescas. Seria muito mais prático pegar um ônibus direto, sem ter que passar pelo terminal. Eles existem, mas a passagem custa quase o dobro. Você é gado expropriado de recursos e acumula stress entre uma viagem e outra. Os rapazes abrem as pernas, numa tendência misteriosa, que existe em todo o país, e as moças encolhem-se ofendidas se você senta ao lado delas. Os velhos levantam para te dar lugar, assim te humilham com sua desenvoltura enxuta da melhor idade, enquanto a meninada te esmaga se você tentar passar pelo corredor apertado. Há a opção de pegar o carro, se você tiver um, mas a gasolina aqui é caríssima, há tempos estava quase a dois e cinqüenta o litro e agora foi a dois e 60. São 70 quilômetros por dia, sem falar no estacionamento. A ilha está lotada e você paga de dois a três paus a hora para estacionar.
GREVES - Mas o pior é o seguinte: os motoristas estão insatisfeitos com o salário e a toda hora param sem aviso (senão o movimento seria abortado). Tem mais: se seu ônibus bater no caminho (o que já aconteceu, pois tem gente apressada e descuidada no volante) aguarde os próximos ônibus lotados. Não tem como escapar, é tudo uma armadilha, pois você trafega em autopistas ( a Beira Mar Norte, pontilhada de edifícios que ficam abaixo do nível do mar, portanto na posição em que Nova Orleans perdeu a guerra; a rodovia SC-401, que está caindo aos pedaços e ainda exibe um sinistro posto de pedágio, por enquanto desativado, mas ameaçador, pois um dia te cobrará para ires ao trabalho). Tudo isso chama-se qualidade de vida. Em setembro, só não choveu dois dias. Se não gostar, volte para São Paulo, enfie-se no buraco de onde saiu. Existem saídas. Aposente-se, torne-se um inativo e professe sua ira justa para passageiros indiferentes (é o que fazem os velhos por todo o país). Outra saída é ficar de bermuda e chinelo em casa, pisando no barro. Você vira bicho do mato. Melhor é colocar a farda, ir para a parada e refletir sobre o que pega no mundo real. Evite ler Foucault senão você vai refletir o tempo todo sobre organizações, linguagens e não-lugares. E jamais fale essas coisas para alguém. Dirão que você é um reclamão. Melhor vestir-se da cara mais séria, olhar para o vazio e agüentar no osso. Bem melhor do que enfrentar a rua Butantã lotada e subir penosamente a Teodoro Sampaio. Daqui a pouco chega de verdade a primavera.
RETORNO - 1. A praga dos manuais de redação e estilo sofre severa dedetização de Urariano Mota no La Insignia. 2. Traduções e análises primorosas de letras e poemas antigos e modernos, resenhas sobre livros e filmes, listas de melhores e piores em áreas importantes da indústria cultural, além de contos perturbadores e crônicas hilárias, tudo isso faz do the dude's talk um dos mais sérios candidatos a melhor blog de 2005. 3. As visitas ao portal Consciência, que acaba de completar dez anos de vida, estão quase alcançando o patamar de cinco mil por dia. Muito antes da atual moda da filosofia, Miguel Duclós já colocava na rede o mais importante espaço de filosofia em língua portuguesa.
24 de setembro de 2005
CARGA MUITO PESADA
A nova série de episódios de Carga Pesada, o seriado da Globo, bate numa tecla única: a de que os protagonistas, Pedro e Bino, são arautos do politicamente correto, uma espécie de iluminação para os problemas nacionais. É de chorar ver Pedro da Boléia, interpretado por Antonio Fagundes, fazendo discurso para policial corrupto e tentando encaminhá-lo para o Bem. Ou ver Bino, interpretado por Stenio Garcia, envolver-se com as maiores trapalhadas geradas por suas boas intenções. Um recado recorrente é que se trata de dois personagens que não encontram pouso fixo (apenas provisório) em mulheres, mas na convivência mútua. Surja a musa que surgir, eles sempre acabam juntos e aparentemente solteiros, celebrando o fato de serem inseparáveis.
LATA - No episódio de ontem, escrito por Ercila Pedroso, que adaptava novelas mexicanas no SBT antes de ser contratada pela Globo, e que tem um currículo extenso de contribuições ao teatro e à dramaturgia televisiva, os dois companheiros são assaltados por marginais que fazem distribuição da carga para a comunidade favelada. O que se salva é a aparição, infelizmente meteórica, de Othon Bastos. Só o close em seu rosto dizendo: foi só um aviso!, depois de um tiroteio, vale por mil horas de Carga Pesada. Qual o recado do programa ontem? Você precisa apoiar a garotada da favela, incentivá-la a bater lata, que assim a população poderá peitar os bandidos armados. Uma mensagem recorrente de Pedro é que pela lei e a coragem pessoal é possível reverter a situação de violência e corrupção do país. Seria perfeito se a televisão não participasse do sistema de exclusão, por meio do noticiário e da grade de programação. Dizer que tudo repousa nos ombros da iniciativa dos indivíduos é achar que se pode aconselhar essa criatura denominada o brasileiro (que sempre são os outros, e que sempre é lembrada como respknsável por todas os nossos problemas) a tomar uma atitude. Não há atitude sem políticas públicas. O cidadão não existe sem o governo. Como vivemos numa ditadura corporativa, os recados bonzinhos acabam reforçando os equívocos. Pessoas soltas ao deus dará não se salvarão só porque Pedro aconselha o marido a voltar para a família. Ou substitui o fujão que deixou as crianças pobres na mão.
ESCRAVOS - Onde há grana, há quadrilhas. Agora foi a vez dos árbitros. Assistimos a jogos monótonos, acertados previamente, segundo denúncia da Veja, com pernas de pau que sobraram da grande sangria de talentos da atual fase do futebol brasileiro. Alguns craques solitários não podem fazer a festa das torcidas. Acabamos todos torcedores do Barcelona ou do Real Madrid, em campeonatos que recebem cobertura completa da mídia, enquanto ficamos ermos de jogos importantes. O esquema de monopólio das transmissões, que gera brigas judiciais como a da Band para ter direito a filmar os jogos e assim abastecer de imagens seus programas esportivos, é típica desta situação em que a seleção brasileira é propriedade de uma só rede e um só patrocinador. País sem soberania é assim: vive como escravo. E ainda tem que aturar os conselhos da Carga Pesada.
RETORNO - Os pitacos de Arnaldo Jabor, o diretor da humanidade, tem extrapolado todos os limites. Ontem ele falou do real como moeda forte, observando cinicamente que o PT caiu agora na real (um trocadalho e tanto). Não temos moeda, temos papel pintado graças à política econômica de arrocho a que somos submetidos e que suga a população de recursos para sobreviver. A falsa moeda é uma espécie de passaporte para a pirataria internacional fazer a festa. Um popular (o brasileiro!) observou o seguinte: "De que vale moeda forte se ela não está no meu bolso?" Teremos moeda forte quando zerarmos as dívidas externa e interna e quando a política econômica estiver voltada para as necessidades da população. Servir de canteiro para a fome alheia (o celeiro do mundo!), exportar proteína, e pagar um trilhão de dólares em onze anos só de juros para os grandes bancos não fazem da nossa moeda algo que preste. É como disse uma autoridade financeira americana sobre as falcatruas que nos assombram: "A coisa toda fede".
22 de setembro de 2005
OMBRO, ARMAS
O que há por trás da campanha do desarmamento? Desarme-se, que a violência vai diminuir. Não é o que os analistas dizem. Historicamente, o ato desarmar a população foi seguido de massacres. Por trás da campanha há o deputado Greenhalgh, paladino dos direitos humanos, advogado de algumas indenizações bem fornidas por conta dos sofrimentos da época da ditadura militar, e que foi acusado pelo irmão do prefeito assassinado de Santo André como um dos responsáveis do acobertamento das verdadeiras intenções do crime (que seria vingança gerada pelo desacerto entre os corruptores locais). Votarei 1 no dia 23 de outubro, NÃO ao desarmamento. Não gosto de armas, não tenho nenhuma em casa e nem nunca tive, a não ser na infância, por meu pai ser caçador e também porque andava sempre acompanhado do seu inseparável calibre 32. Era um homem respeitado. Cerca de 68% dos criminosos pesquisados num levantamento confessam que sentem medo de entrar nas casas exatamente pela possível presença de armas. Com a campanha, as porcarias de metal e chumbo ficarão apenas nas mãos da bandidagem e da polícia, instituição que mostra agora suas deficiências, especialmente no caso do roubo dos mais de dois milhões de reais nas próprias dependências. As pessoas honestas que querem ter uma arma devem dispor desse direito. Esse governo, com essa campanha, e com a entrega do país aos estrangeiros, o prometido desvio das águas do São Francisco, a proliferação anunciada das centrais nucleares, é muito perigoso. Precisa cair, para que possamos sobreviver.
BAIXARIA - O programa de auditório de Jô Soares com o apoio de jornalistas da grande imprensa é a representação da consciência nacional. Tudo no Brasil é uma contrafação. No programa, faz-se um carnaval com a falta de informação, além da pressão exercida não sobre os poderosos, mas de pobres coitados como o dono do restaurante da Câmara. Nas CPIs, a falta de preparo das pessoas que deveriam inquirir os suspeitos acaba virando pancadaria. Falta sobriedade às pessoas que exercem cargos públicos, em sua maioria. Daniel Dantas, apoiado pelo habeas corpus preventivo, disse o que quis e manteve a calma, enquanto os representantes do povo se engalfinhavam em baixarias. Enquanto isso, nova safra de musiquinhas (como diz o Casseta e Planeta) começa a assombrar a televisão. A crise precisa de pesquisa séria e o blog do Noblat é o melhor exemplo, não só pelo que ele posta, mas também pelos comentários, excelentes, em que leitores e leitoras dão valiosa contribuição à pauta. A internet está dando de dez na mídia impressa e é fonte generosa de denúncias e informações sobre os bastidores. Mas acho tudo isso um saco.
INOCÊNCIA - Chega a primavera chuvosa e nós aqui na ilha já estamos com fungos na carne esbranquiçada pela interminável chuva. O frio vai e volta e nos fustiga roupas e cabeças. De vez em quando abre um sol de mormaço. O clima não dá folga e os furacões ameaçam com a força dos ventos e as águas desatadas. Pessimismo? Pode ser. Na capa da Carta Capital, Stedile diz que a pátria adormecida vai despertar. A metáfora berço esplêndido, belíssima, é fonte inesgotável de equívocos. A nação é composta de pessoas escaldadas, que sofreram por gerações. A prudência e a desconfiança são fruto da árdua luta pela sobrevivência. Há também consciência de que ninguém é inocente e, portanto, a solução é muito mais complicada do que se colocar como paradigma de virtudes - vimos já o que isso deu. Militantes considerados autênticos, do PT, vêm à tona para suas análises fajutas. São também culpados. Instauram-se como intocáveis, como depositários de todas as posições politicamente corretas. Com isso deram grande margem de manobra para as quadrilhas, que roubaram em seu nome. Nada está provado, diz José Dirceu. Como não? E a avalanche de documentos e provas que estão nas mãos das CPIs? Os que precisam ser cassados nem sequer foram ainda notificados. Não foram encontrados, dizem os parlamentares que deveriam zelar pelo inquérito. Só o Jefferson será punido?
ESSÊNCIA - Pois bem, lucupletem-se. Eu faço parte da população ordeira, calada, sofrida, que palmilha cada metro do território na luta pela sobrevivência. Estamos despertos, sr. Stedile. Não é o sr. com suas táticas complicadas que vai nos conscientizar. Nem vai ser a direita, com suas musiquinhas. O buraco é mais em cima. Lá onde mora a essência do Brasil soberano, uma luz brilha, a da nossa vontade de fazer do Brasil uma terra de paz, abençoada, onde há para todo o mundo. Queremos viver, srs. abutres. Quando ficarão à altura do que realmente somos?
RETORNO - A melhor notícia é que Maria Rita vem aí com seu segundo CD. Mal posso esperar.
21 de setembro de 2005
MUITO BOA A SUA PERGUNTA
Toda vez que elogiam uma pergunta, esteja certo: é ali que o assunto pega fogo, portanto ela não será respondida. O elogio substitui a resposta, ou apenas serve para desarmar o entrevistador para que nada seja respondido.
É o que fez um dia Romário contra o goleiro do Madureira. O cara pegava todas, o grande craque foi lá e apertou a mão dele. Fez o gol no minuto seguinte. O elogio é uma armadilha e como não há nada mais oposto ao indivíduo do que a existência do Outro, traz invariavelmente embutido um esculacho.
Você que é um grande poeta, me responda: por que esse verso seu não faz sentido? Como você está diferente, parabéns. Quando te conheci você passava pelo buraco de uma agulha. Sua pergunta é muito boa. Não é por nada que você é o maior jornalista de Conceição do Mato Dentro. Minha empregada tem gostado muito dos seus textos. Você queria me conhecer? Mas você é o famoso quem?
É por isso que fujo de eventos. Ultimamente, tenho dito a verdade. E, seguindo uma tendência que cresce com a idade, derrubo os copos na hora de apertar a mão de alguém. Prefiro espantar as corujas do alto do muro. Pelo menos elas voam e não quebram ao cair no chão.
RETORNO - Ricardo Peró Job me enviará exemplares da revista Fronteira Livre e do livro A terra dos longos olhares (Editora Holoedro), organizada por Lucia Silva e Silva e que reúne o talento de muitos uruguaianenses. Virson Holderbaum volta de viagem e dá sinal via e-mail. Tabajara Ruas me liga para acertarmos a conclusão de mais uma parceria literária.
20 de setembro de 2005
CRIME É AÇÃO; DENÚNCIA, A IMOBILIDADE
Tudo ficou claro agora. Os municípios são dominados pelas quadrilhas que se adonaram dos serviços públicos essenciais. Elas venceram licitações acertadas e pagam em espécie uma grossa percentagem para quem ocupa os cargos públicos mais importantes ou está numa função estratégica por onde cruza a dinheirama do esquema. Elas agem impunemente, matando quem tenta denunciá-las e pouco se importando com as conseqüências. Ação: o prefeito de Santo André é torturado e morto e o inquérito é feito de maneira apressada porque era ano de eleição (2002). Imobilidade: o irmão do prefeito abre o bico, mas é voto vencido. Fica calado três anos, quando então tudo volta à tona. É uma tragédia shakespeareana. O prefeito olha-se no espelho e morre. O irmão olha-se no espelho e está sendo ameaçado. Hamlet: o prefeito participava do esquema, mas acreditava numa saída. Os parceiros do crime, não.
LIMITE - Tudo está dito. Depois dos textos de Chico de Oliveira (Tem limite?) e de Maria Sylvia de Carvalho Franco (A implosão da República) no primeiro caderno da Folha de domingo, em que fica claro o papel deste governo na entrega do país ao mercado (a pirataria internacional), o que nos resta? Resta a destruição, pelo fogo e pela marreta, por parte da população enfurecida, de todos os prédios e instrumentos públicos de Goianésia, no sudeste do Pará . Resta o riso sarcástico dos âncoras diante do roubo de mais de dois milhões de reais dos cofres da polícia. Resta a imobilidade das denúncias, já que os crimes continuam avançando, as quadrilhas se reaprumando, e todos se ajustam para as eleições de 2006. Por enquanto só existe uma pessoa punida, exatamente a fonte que expôs toda a bandalheira oficial, a pessoa que pôs a boca no trombone. Imobilizaram Roberto Jefferson na sua denúncia e sua cueca já está virada do avesso, aviso dos criminosos de que se trata de um traidor (foi o que fizeram com o prefeito de Santo André). Gravíssimo é a família do prefeito ir ao Jô Soares (que melhorou com a crise, assim como o Casseta & Planeta) e dizer com todas as letras que o governo (Dirceu, Greenhalg e o chefe de gabinete do Planalto) fez tudo para boicotar as investigações. Seis testemunhas foram assassinadas. O irmão do prefeito teme morrer. Tem limite? Jefferson diz que a Globo deve para o INSS mais de dois bilhões de reais, ou seja, tira dos funcionários e não repassa. Diz ter o número dos processos parados na policia do Rio. Quem investiga?
JORNALISMO - Existe jornalismo na internet? pergunta o Comunique-se. Claro que não. A Internet é muda e imóvel. Serve de repasto para a mídia impressa. Faz parte da periferia da vida nacional. É algo novo e emergente demais. Não repercute como deve, a não ser como territórios de vilanias, como não cansa de repetir a televisão. O que fazemos nos blogs não é jornalismo, é puro desespero. Exaustos da falta total de espaço decente na mídia impressa, nos refugiamos em espaços virtuais e desta trincheira atiramos. Para quê? Para nada. Serve apenas como ponte entre os contemporâneos na mesma situação, reduzidos que estamos à grossa marginalização. Isso não acontece apenas na internet. Os veículos sem capital simbólico (não considerados pela grande imprensa) servem de alavanca para os grandes grupos de comunicação, que os copiam e jamais citam as fontes. Adianta denunciar esses crimes? Claro que não. Mas resistimos e continuamos. Em blogs, em revistas fora do circuito central, em jornais perdidos nos grotões, em veículos obscuros, com nossa biografia sem sentido, nossa grandeza perdida, nossa palavra contaminada pelo silêncio ao redor.
ECO - Tem alguém aí? Tem, mas o que importa? Crime é verbo, denúncia é advérbio. O único substantivo somos nós, criaturas não catalogadas pela indiferença oficial.
19 de setembro de 2005
O ATOR ABRE O JOGO
Nei Duclós
Miguel Ramos ganhou o prêmio de melhor ator coadjuvante por sua participação em O Cerro do Jarau, de Beto Souza nos festivais de Recife e Gramado deste ano. Por coincidência, é meu amigo desde a adolescência e meu conterrâneo. Aproveitei a proximidade para entrevistá-lo com exclusividade para o Diário da Fonte e o resultado está nesta edição. Trata-se de um depoimento esclarecedor sobre a difícil arte de atuar, feito por um especialista vocacionado. Vi Miguel no palco ainda muito menino interpretando um engraxate no palco do Colégio Santana, entre muitas outras performances. Depois fui na fila do gargarejo para me deslumbrar com sua atuação premiada pela APCA (revelação) em Mockimpot, de Peter Weiss, em 1975, em São Paulo. Depois caí para trás com seus cinco inesquecíveis minutos em Netto perde sua alma, de Tabajara Ruas, que incluiu Miguel no seu novo filme, O general e o negrinho, que está já em produção e será filmado este ano. "Atuar é um grande jogo"e "ator é uma profissão onde não se ganha promoção por tempo de serviço" são duas frases deste depoimento de Miguel, enviado diretamente de Uruguaiana, território que, segundo ele, é a "fonte de nossas inspirações".
1) Miguel, você já sabe o que eu acho da sua posição no mais alto patamar da arte de interpretação no Brasil. Esse reconhecimento vem de longe, desde quando você ganhou o prêmio de ator revelação do teatro em São Paulo, na década de 70. Por isso eu pergunto: quando cairá a ficha dos diretores para colocar você como principal protagonista de umn filme?
MR- A grande questão para o ator, a questão fundamental, a única questão que tem essência para o ator é ter personagem.
A ausência de personagem é o limbo. A permanência dessa ausência é a morte.
O personagem para o ator é como o instrumento para o músico.
A colocação do personagem na trama, se é protagonista ou não, é uma questão secundária.
Em essência é isso.
Agora, para a profissão é importante ser protagonista. É como ter um prêmio.
E nesse sentido já fui contemplado com um convite e se tudo continuar fluindo como vem, em 2006 estaremos rodando um filme, com um roteiro profundamente humano que sei que vais gostar, onde tenho um personagem protagonista.
Mas já fiz personagens de cenas que não duraram mais que cinco minutos. Mas foi o suficiente para construir o personagem. Cinco minutos, ou menos, são suficientes para o ator se realizar.
O personagem, independente da posição que ocupe na trama, é o lugar onde de fato o ator põe sua alma e dá sentido a sua existência.
2) Você voltou a Uruguaiana por motivos que desconheço, mas posso adivinhar. A árdua luta no exercício desse ofício duro, a vontade de abraçar a terra natal na vida adulta, entre outros motivos. Praticamente recolhido na fronteira, você volta com força total a partir de Netto perde sua alma e agora com Cerro do Jarau , onde você levantou prêmios de melhor coadjuvante. Isso prova que o talento jamais poderá ficar oculto e que nada pode contra o carisma e o destino? Responda sem ter medo de assumir nenhuma "máscara", pois você merece as homenagens ao seu trabalho.
MR- Na história da interpretação, não são raros os casos de grandes atores que acabam na obscuridade e morrem no anonimato, quase sempre de tristeza.
Essa é uma questão que só posso responder com outras perguntas.
Quem de fato, escreve o roteiro de nossas vidas?
Além daquilo que compreendemos como o plantio e a colheita, ação e reação, quem de fato é o jardineiro de nossa existência?
As fatalidades da vida quase sempre escapam ao controle humano e não cabem em nossa racionalidade. Muitas vezes as coisas acontecem de maneira inesperada.
Quantos anos de silêncio, de dor e agonia têm que preceder um reaparecimento brilhante e de reconhecimento?
Aqui na fronteira, como em outras partes do mundo, conhecemos o ditado: Deus escreve certo por linhas tortas. Eu digo: às vezes por linhas tortas, mas sempre imprevisíveis.
Essas questões nos levam a refletir mais profundamente sobre as Grandes Questões, sobre o sentido da vida, seus movimentos e viravoltas. Questões que, geralmente, geram mais perguntas que respostas; e respostas que geram novas perguntas.
3) Divido os grandes atores entre monstros e cavaleiros. O primeiro, categoria a qual você pertence, assume a criatura, enquanto os outros cavalgam o personagem. Você prova que interpretar não é fingir. O que você diz sobre sua arte e sobre seus métodos? Fale sobre seus personagens.
MR- O que diferencia um ator de outro é a intensidade. Intensidade e envolvimento com o personagem. Isto é o que determina a qualidade de um trabalho. Assumir um personagem sem buscar resultados, Não lançar mão de maneirismos e métodos, mas manter o foco na intensidade.
Para mim o processo de criação é totalmente caótico, anárquico, sem compromisso com qualquer metodologia a não ser com a intensidade, com as emoções resultantes da convivência com o personagem.
Ninguém é, de fato, "formado em interpretação, em ator". A experiência de palco e interpretação é nula. Não se pode armazenar experiências com personagens. Cada personagem é diferente, é único. Ator é uma profissão onde não se ganha promoção por tempo de serviço.
O artista nunca se pode julgar uma estrela em si mesmo. Um novo personagem é algo inesperado, cheio de surpresas. Atores veteranos podem errar, e erram, exatamente por isso, por esta falta de precisão, de previsibilidade. O que gera a qualidade e diminui as probabilidades de erro é a intensidade.
O ator nunca pode esquecer do aspecto lúdico da interpretação. Atuar é um grande jogo. Você pode dignificar ou sacanear um personagem. É um jogo...
Esse caráter lúdico da interpretação, num drama, por exemplo, é que caracteriza a limitação do sofrimento aos contornos do personagem. Fazendo Pedro, o macaco de Kafka (Informação para uma academia, de Frans Kafka, 1990) eu sofria enquanto vivia o personagem, e o grau de envolvimento com o personagem e a intensidade com que eu vivia isso é que propiciava a qualidade àquele momento. Esse é o jogo. . .
Assim foi com o pedreiro do Muro de Arrimo (Luiz Queiroz Teles, 1976), com o Pepino, de Mockimpot (Peter Weiss, 1975), apesar de serem personagens dramáticos, foram construídos com leveza. O próprio Correntino, agora do Cerro do Jarau, apesar do sentimento de bandido e do caráter sórdido, tinha uma leveza, uma simpatia que poderia não existir. Aí está o lúdico da interpretação.
A emoção é que determina a máscara. Ser ator é uma profissão paradoxal porque ele se realiza sendo o que não é. Mas no meu caso o personagem é construído com base na minha pessoa. Eu empresto minhas observações, maneira de ver e sentir o mundo, minha memória emocional ao personagem. Eu, por fim, durante o espetáculo, sou o personagem. E isso só é possível pela intensidade que deixo imprimir no processo.
4) Você retomou sua arte enquanto abraçava a carreira política. Foi vereador agora é secretário de cultura. Ser político faz parte da interpretação, você cria um personagem, fundado na ética e na transparência? Essa persona pública é um dos aspectos de sua personalidade ou faz parte do trabalho do ator que não esconde os muitos Miguel Ramos que existem dentro de você?
MR- Ética e transparência são valores que herdei do meu pai.
Agora, no mundo político, na atividade política, todo dia quando acordo tomo um copo, dos grandes (rsrsrs), de hipocrisia. Só assim posso suportar a carga. Ponho meu narizinho invisível de clow, minha maletinha de bem-aventuranças e vou campante e radiante para meu ofício.
5) Uruguaiana apesar de estar afastada, é uma cidade que projeta vários autores e artistas de nível nacional e internacional. A que se deve essa força? O que existe em Uruguaiana de especial?
MR- O Tejo é mais belo que o rio que passa pela minha aldeia. O Tejo não é mais belo que o rio que passa pela minha aldeia, porque o Tejo não passa pela minha aldeia.
Eu acho que passa por essa intimidade com os fenômenos da paisagem que Fernando Pessoa sintetiza de forma genial em seus versos.
Esse misticismo fundamentalmente telúrico. Essa corrente telúrica enorme. O contato com o vento, a vastidão do pampa, a grandeza do pôr-do-sol junto ao rio Uruguai, o azul profundo do céu à noite, a paisagem imensa.. .
A educação formal de qualidade que tivemos.
O paradoxo permanente desta cidade que é muito rica e enormemente miserável. São muitos fatores.
Somente o caos e o paradoxo, só a contradição podem produzir estruturas de qualidade.
Somente a observação desse caos e desse paradoxo é que faz germinar e alimentar o talento. O talento é o instrumento da alma pra promover o amor, a compaixão através da arte, como forma até inconsciente de reparar essas contradições. Esse amor, essa envolvência com o que está perto é que torna os artistas universais. Isso não é novo, já foi dito e redito. Mas é isso que penso e sinto. . . E sei que os artistas e amigos da nossa geração (como você, o Luiz de Miranda, o Tabajara Ruas e tantos outros. . .) e mesmo os consagrados uruguaianenses como Alceu Wamosy e Gonçalves Viana, partilhavam desse sentimento. E que não é meramente por Uruguaiana, mas pelo ser humano.
Uruguaiana, Fronteira-Oeste, Rio Grande, América Latina . . .
6) Quais seus próximos passos? Quais filmes ou peças virão? Como vê seu futuro político? Haverá um teatro municipal em Uruguaiana?
MR- Já estamos nos preparativos para filmar O general e o negrinho, de Tabajara Ruas. Em seguida devemos rodar aquele em faço o protagonista. . .
Não penso em retomar a carreira política com cargo eletivo. Penso que minha contribuição em nível de projetos de lei já foi dada. Não penso em me candidatar...
Quero me dedicar somente ao teatro e ao cinema, mas sei que são caminhos difíceis. . .
Haverá um teatro municipal em Uruguaiana. Está encaminhado. Já há um espaço desapropriado, projeto encaminhado e brevemente teremos um teatro municipal em Uruguaiana.
RETORNO - 1. Aviso aos colegas da mídia: a reprodução na íntegra desta entrevista exclusiva pode ser feita mediante acordo com o editor do DF. A reprodução parcial destas frases maravilhosas, é livre, desde que seja citada a fonte (o DF é campeão mundial: citação zero na grande imprensa). 2. O crítico Inacio Araujo publicou ontem, domingo, um artigo sobre Deus é brasileiro, de Cacá Diegues, com o mesmo enfoque usado por um ensaio meu publicado aqui no dia primeiro de maio de 2003, e que tinha por título Deus é cineasta. O conceito do Deus cineasta foi abraçado pelo crítico da Folha de S. Paulo, que escreveu o seguinte: "Deus-de Mille: isso é o máximo a que pode aspirar um cineasta: ser um organizador do mundo, modelá-lo, enformá-lo". Disse eu há mais de dois anos: "O Deus Cacá encara a criação do mundo como um filme".
18 de setembro de 2005
O FIO SOBREVIVE À RUÍNA
Vejo tardiamente Despedida em Las Vegas (Mike Figgis, 1995), que deu Oscar de melhor ator para Nicolas Cage e deveria dar o de melhor atriz (apenas indicada) para Elizabeth Shue. Cage me invoca. Tem todo jeitão de um mau ator, com sua lombrosidade mofina e fora de esquadro. À primeira vista, parece que é ambicioso demais para o que poderá produzir. Noto nele sempre o esforço se sobrepondo ao talento. Mas são impressões erradas. Ele conseguiu se impor, e nos brinda com uma performance inesquecível ao interpretar o roteirista desesperado que assume um compromisso com a morte. Escolhe o cenário ideal: a não-cidade Las Vegas, inventada pela Máfia, concentração de luzes artificiais, eventos sacanas, prostituição, jogo e álcool. Mas topa com algo que não pode controlar: o sentimento, que sobrevive ao seu suicídio e mantém-se firme apesar da ruína de vidros estilhaçados, garrafas vazias, hotéis sinistros, condomínios repressivos, surras covardes, delírios e coma. O filme funciona como uma fábula sobre o desespero provocado pelo capitalismo como religião, tema de Michael Löwy no caderno Mais!, da Folha deste domingo.
TURISMO - John O'Brien, que fez a autobiografia de onde saiu a história, suicidou-se duas semanas depois do início da produção do filme, o que quase fez o diretor Figgis desistir do projeto (só continuou para homenagear o autor). A religião do capitalismo não dá folga em Las Vegas, cidade que é pura representação, não tem existência real, é apenas uma composição de canais do dinheiroduto. Para começar, não possui moradores, mas exploradores do turismo e turistas (e bandidos que gravitam em torno). O culto ao dinheiro, exposto nas máquinas caça-níqueis e nas mesas de jogo, serve para iludir a mesmice da vida sedentária, que ali busca refúgio num sonho de lazer, consumo e enriquecimento fácil (portanto ilícito, se for seguido a ética das origens do capitalismo, descrita por Max Weber). Ao redor, está a prostituta, o cafetão, o assassino, o gerente do hotel. O roteirista que firma um pacto com a morte entrega-se a esse desespero provocado pela culpa, de um sistema com práticas "que não conhecem pausa" como escreve Löwy no texto do Mais!, em que analisa e desenvolve um insight de Walter Benjamin fundado em Weber. Na mesma edição da Folha, Elio Gaspari assume sua profissão de fé: "O que falta ao Brasil é o capitalismo, regime que enriquece o virtuoso e destrói o incapaz", escreve Gaspari em sua coluna. Ele quer assim opor-se à corrupção como sistema econômico, mas acaba se entregando, pois acredita mesmo que exista virtude no capitalismo. Mike Figgis e John O?Brien, que são do ramo, ou seja, moram no país verdadeiramente capitalista, sabem que não. E expõem os seres humanos em fase terminal, que não conseguem se livrar da culpa dessa religião universal e acabam sucumbindo a ela. A única coisa que fica firme é o sentimento, que não pertence ao capitalismo, mas à parte derrotada da história, a humanidade. Esse fio sobrevive à ruína que toma conta do rosto de Elizabeth Shue, a atriz encantadora que foi par de Michael Fox em De Volta para o Futuro II e III e contracenou no filme de Woody Allen, Desconstruindo Harry. Esse rosto que confessa o amor é o legado de um filme demolidor, que mostra a resistência do humano quando tudo parece perdido.
GAIVOTA - Um escritor habita sua criação e dela depende para sobreviver, literalmente. A conexão entre a dureza do ofício e sua transcendência, como nota Walter Galvani em Crônica: o vôo da palavra (Editora Mediação, 119 páginas), é a arte que leva uma vida para atingir o prumo. Nem sempre consegue. A maioria das vezes, nem decola. Quando enfim sai do chão, o sonho pode ser abatido em plena evolução. Mas não basta equilibrar-se no ar, é preciso colher o peixe (o assunto, na metáfora de Galvani) e não deixá-lo cair. O leitor é o espectador que segue todo o processo. Vê quando o escritor se posta para pescar o tema, segue a linha do vôo em direção ao objetivo, nota como o assunto se retorce no bico do virtuose e é testemunha da refeição rápida que a crônica permite. Tudo acontece em poucos segundos. Fica a impressão encantada diante da competência do criador. Mas, aceitando o convite de Galvani para o leitor se manifestar sobre o assunto que é alvo da sua metáfora, acredito que à crônica faltaria o essencial. Na maioria das vezes, faz parte de um espaço remunerado e, portanto, limitado por contingências do veículo, regido por normas de mercado. O salto que ainda está para ser dado é essa dose de verdade que desnuda o escritor e que é a garantia do romance, do teatro, do conto, do poema. A crônica pode ser vôo, mas também não poderá deixar de trair o próprio sossego. Galvani nos dá um roteiro seguro de grandes cronistas neste seu livro que é uma aula de história e do ofício de escrever. E nos leva, pelos desdobramentos de um leitura enriquecedora, para outras paragens, os limites dessa arte, o mergulho possível do cronista na própria maldição de estar vivo. A crônica, quando expõe o que o autor esconde na maestria da palavra, pisa no pântano da criação literária sem concessões. Assim podem encarnar o medo diante das gaivotas de Os Pássaros de Hitchcock, que não buscam as iguarias do mar, mas arremetem contra o capitalismo predador como a representação de uma culpa impossível de expiar.
RETORNO - A editora Boitempo, que traz Löwy para o Brasil (dias 27 a 29, na USP, dia 30 na PUC, além de seminários em Araraquara e Campinas em outubro, eventos que eu não gostaria de perder), está completando dez anos. Parabéns à maravilhosa editora, rara no país desconstruído pela barbárie.
17 de setembro de 2005
A VIAGEM DO ARTÍFICE
Nei Duclós
Um artífice cuida do seu ofício e o exerce de forma compulsiva. Não tanto para atingir a perfeição: mais para descobrir a natureza e a estrutura do que faz. Um carpinteiro não mira a casa quando participa de uma construção, mas as vigas, o lustro, o talho do formão, o resultado da sua participação no conjunto. Não que não tenha condições de saber onde está enfurnado, ou o que é, afinal, a obra, uma soma de parcerias, talentos e conhecimentos. Ele conhece o fruto de muitas mãos, mas prefere seu próprio mergulho, feito de outra intensidade. Não se trata aqui de definir hierarquias do fazer, mas de tentar entender, pela similitude, o que é a literatura que nos cabe decifrar, e definir o perfil da sua irmã de viagem, a resenha ou o ensaio. Cícero Galeno Lopes, como todo escritor de verdade, nos mostra o caminho.
Seu novo punhado de contos, batizado de A Viagem (Editora Movimento, 95 páginas), toma emprestado o título de um dos exemplares dispostos no livro. São textos que o esmero da escrita ensina o chão batido da arte. Pois a vida, ou a imaginação, se encarrega das histórias, dos conteúdos. Ao escritor resta o enredo da palavra, o caminho a percorrer, a teia que nem sempre leva ao desfecho, mas à revelação do que está sendo dito. Num romance policial, não importa quem é o assassino, mas como escritor chega à autoria do crime. Às vezes nem isso. O criminoso apontado nas primeiras páginas deixa livre o espaço para compor a confluência que realmente interessa: o percurso da letra, semente que se desdobra numa floresta que parece mato ralo, mas é como jóia guardada no mineral mais duro.
No caso de Cícero, com seus contos que abordam o povo sofrido da fronteira, do campo e da cidade, o que importa, em sua maior parte, são as armações dos que lidam profissionalmente com materiais brutos (madeira, pedra, laço, lavoura). O carpinteiro que chega à conclusão oposta a de Macunaíma, de Mario de Andrade, sobre os males do Brasil (no lugar da saúva e da pouca saúde, futebol e televisão); o picador de pedra que ao garimpar ametistas transmite o segredo para se diferenciar do pedreiro; a rezadeira que elenca as ervas advertindo que a fala é que faz a mágica e que o remédio das plantas não funcionam com ela: todos são protagonistas de uma saga oculta, misturada ao pó do esquecimento. O escritor cola sua pena ao artífice exilado na varanda, na hora da conversa, quando está longe dos seus instrumentos. E de lá escuta ao seu modo a trama que vale por uma cidade desconhecida, que surpreende os moradores depois de uma tempestade. Onde estavam aquelas ruas, pessoas, cenas antes do dilúvio? E por que se ocultavam, se são tão reais quanto uma fantasmagoria que bate o bumbo para uma comunidade inteira?
Tudo estava dormindo na mão do escritor que esculpe a tragédia por ter desconfiado, antes de saber, que algo pulsava na margem escura do riacho. O que desperta é o país confinado no seu próprio território. Não se trata de uma denúncia, pois isso seria contaminação de discursos conhecidos e gastos. Mas de uma toalha de renda, um boneco de madeira, um cadafalso, uma parede. É criação assumida como um serviço encomendado pelo espírito, arrostado por um especialista que palmilha cada frase sem se importar com o papel timbrado dos encargos. Palavras que se escuta ao vivo, como circostância, adiôs ou expressões como já viu outra coisa? vancê conjumine, hoje é do tal, ganham casa e comida na tenda que Cícero estende no deserto. É como um campo de refugiados onde o escritor se instaura como espectador participante, mas sem interferir no diálogo entre quem fala e quem deveria escutar. Palavra sem passaporte, fugida, surrada, desesperançada, vê que ali pode descansar o osso, temperar a carne, rodear o mate.
Cícero não comete esse sacrilégio para exibir artificialismos, mas para reunir o que é considerado morto, e transfigurar o material com passos miúdos (as frases curtas, representação da prudência de quem assombra o sagrado). A confusão em relação ao papel do escritor pode acontecer: nos contos O direito é torto ou Maneco Lu, é de injustiça que se fala; em Cica, Aparício, é de desperdício social; em Pó de chifre, de manipulação de consciências ; em Pau-de- Arrasto, de insubordinação; em Prenda minha, de abandono familiar; em Pantaleão, de racismo; em Arresto, de escravidão; em Engrácio, de perda de identidade, e assim por diante. Mas seria fatal para ele mudar a natureza de sua escritura. O acervo de brutalidade é apenas o resultado, o gado solto que rebenta o alambrado. Ele não cai na armadilha do engajamento, já que prefere permanecer com os pobres. Apontar erros seria apenas uma forma de mostrar-se acima do que vê. Como o autor está grudado na rede que tece, ele faz parte da paisagem e nela encontra a diversidade necessária, a sabedoria escondida, a grandeza que evita qualquer soberba.
Essa ética profundamente identificada com os objetos que usa para conhecer o próprio ofício faz de Cícero um autor raro entre os contemporâneos. Nesta época de superficialidades, maquiagem, pose, distorções, salões enfeitados, Cícero Galeno Lopes prefere o galpão. Não a senzala, prisão de idéias e experiências. Mas o galpão aberto, onde medra a brasa torrencial da população da qual faz parte. O escritor é um dos protagonistas, sem reivindicar nada, desse povo, desconhecido por ter sido erradicado do imaginário nacional, que agora anda às voltas com a entrega da soberania. Nessa posição em que escuta sem ser o personagem que ouve, que escreve sem ser o narrador com a rédea, ele encontra sua redenção. Cícero se salva pela radicalidade que assume. E, como os artesãos que o orientam na escrita, parece permanecer calado, quando, no fundo, grita. Idêntico aos seus personagens, ele se submete para revelar insurgência.
Se não o escutam, é porque a crítica está perdida em outras paragens. O analista acha que deve perseguir conteúdos e não atentar para o fato de que o escritor é o que a população consegue ser: um sobrevivente em direção ao nada, que na sua viagem, espalha a luminosidade. O trote em direção ao cemitério, como relata no conto A Viagem, não é o caminho. Este, obedece apenas ao pensamento. O andar se faz para dizer quem somos: "A viagem vai ser boa, porque vamos por bem, por não esquecer o que a gente é e pode".
RETORNO - Uma gripe, um resguardo diante da friaca e dos ventos da ilha, me colocaram a nocaute. Dois dias sem postar. Mas estamos de volta. Aproveito a concentração para estudar o gênero que exercito muito aqui. Leio Crônica: o vôo da palavra, de Walter Galvani, uma aula de história sobre literatura e sobre o ofício que abraçamos.
RETORNO - Imagem desta edição: obra de Escher.
14 de setembro de 2005
AUTOCRÍTICA NA PRÁTICA
Um dos fundamentos da esquerda que se preze é a autocrítica na prática. Deve ser estendido a toda a sociedade. Não basta fazer mea culpa batendo no peito, diante das câmaras. Todos pedem desculpas, mas isso não basta, porque tudo tende a ficar na mesma. A começar pelo governo. Desmontar as quadrilhas que desviam dinheiro do Tesouro Nacional não é apenas prender no varejo (não haverá prisões para tantos cúmplices), mas cortar o acesso à bufunfa no atacado. Isso serve para todos os níveis de governo.
ESTRATÉGIA - Reconhecer que errou, como faz o PT, não é voltar-se para as fontes do equívoco, achar que existe uma pureza petista nas origens. Diz uma mensagem que corre pela internet: "O PT errou, mas não tanto assim. O erro foi estratégico. Achou que podia cair na gandaia de governar com os ladrões em casa, desde que fossem possíveis alguns avanços. Quais os avanços que houve? Parou-se a privataria, reestruturou-se em boa medida o serviço público, voltou a haver política industrial e pesquisa tecnológica, criou-se um programa de paliação da pobreza que só pode ser ignorado por ignorantes (de todas as medidas ali aplicadas) ou mal intencionados". A admirada e competente intelectual Marilena Chauí, que revela-se um desastre na política, diz que descobriu a fonte do ódio ao PT: a de que o partido construiu a democracia. Se existe ódio (não de minha parte e de muita gente) é porque o PT não cumpriu as promessas de campanha, traiu o povo, manteve o arrocho. No fundo, ajudou a consolidar a ditadura civil, pois a ela entregou-se sem amarras. Tudo fruto da arrogância, da falta de autocrítica na prática.
VILANIZAÇÃO - Uma autocrítica que devem fazer os trabalhistas, na prática, é apostar em quadros próprios e eliminar o fisiologismo que possa existir ou medrar na atual fase em que o PDT, principalmente, e o PTB (que acha que é depositário da verdade por ter denunciado o esquema de corrupção) têm chances reais de assumir o poder nas próximas eleições. Ir atrás de quadros exógenos, como sempre fizeram, simplesmente mantém intactos os limites atuais do trabalhismo, que parece ter assumido a vasta campanha de desmoralização que surgiu nos meios acadêmicos (e se estendue para a política) sobre o populismo da Era Vargas. Sabemos agora quem são os verdadeiros populistas, os que ludibriam o povo para ter acesso ao butim. O PT deve fazer autocrítica na prática e aproximar-se de verdade do trabalhismo , e não como fez, ao usar o PDT para ganhar as eleições. Da direita (PSDB, PFL, PP et caterva) não se espera autocrítica nenhuma, já que não são de esquerda. Outro gesto importante é eliminar, na esquerda, a tendência, a tentação de vilanizar as atividades empresariais. Empresário não é o empreiteiro de obras públicas, que enriquece, a maior parte das vezes, à sombra do dinheiro da população (e torna-se credor dele, aumentando a dívida interna). Não é apenas o pequeno empresário, que inventa seu emprego por ter não ter outras opção devido à política econômica falsa de cortar gastos (sabemos que eles cortam na carne dos outros). Mas também o grande empresário bem sucedido, o que é obrigado a fazer piruetas diante do arrocho fiscal e tributário. Desburocratizar a formalização das empresas, liberá-las dos gastos e ações desnecessárias, é um gesto de autocrítica na prática que deveria se estender a todo o país, estrangulado pelos equívocos da ditadura civil.
TUNGA - Manifestações populares armadas com grana de governos ou com os privilégios sindicais enriquecidos pela lei arbitrária que tunga compulsoriamente o bolso do contribuinte também geram indiferença e ressentimento contra a livre expressão em praça pública. Eliminar práticas obsoletas como a de interferir no trânsito (principalmente nas grandes cidades) seria um avanço. Quem precisa se locomover para sobreviver odeia as bandeiras e os grupos organizados que se deitam na avenida ou nas estradas. Não basta, portanto, refugiar-se no discurso, pois este está contaminado e desmoralizado. Mas assumir na prática as mudanças necessárias.
SOBERANIA - Assunto chato? Blog é revolução, tudo cabe num espaço diário de opinião. Debater sem ódio nem espírito de porco, abrir mão de idéias e práticas cristalizadas, reconhecer no Outro as mesmas boas intenções que vemos em nós, eis alguns excessos do humanismo que deveria florescer na vida pública. A luta democrática não deve estar orientada para a garantia de privilégios, mas para algo que nos transcende: a soberania nacional. Nela reside o que temos de mais precioso.
RETORNO - Recebo, por especial obséquio do autor e da Editora Mediação, o livro Crônica: o vôo da palavra, de Walter Galvani. Pensar sobre o ofício de escrever diariamente, num gênero que pode ser considerado essencialmente brasileiro (um dos temas debatidos no livro), por parte de um veterano do jornalismo e da literatura, é um estímulo para quem assume esse encargo prazeroso e gratificante, e também para os leitores que se debruçam sobre o resultado. Foi na redação da Folha da Tarde, que tinha Galvani como diretor de redação, que conheci Valdir Zwestch. Diz Valdir sobre Galvani: " Será que alguém já parou pra pensar o que esse cara representou pra uma geração (a nossa!) de jornalistas, escritores, poetas, pensadores, que passou pela mão dele? Se eu fosse o Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul mandava botar uma placa na porta de entrada de cada redação com uma frase mais ou menos assim: Bom dia, sr. diretor. Hoje e sempre: imite o Galvani!". Valdir divulga seus textos na coluna Arca do Velho no site criado e mantido pelo filho.
13 de setembro de 2005
JAM SESSION EM KANSAS CITY
Vi neste domingo na Band um filme de Robert Altmann, Kansas City (1996). Apesar da hedionda dublagem e dos 30 minutos de publicidade (filme de uma hora e meia que leva duas para ser exibido), o que dá uns 10 intervalos de longos três minutos cada um, achei uma maravilha. Os detalhes podem ser pesquisados no Google. Aqui, território livre, me interessa abordar a narrativa, em que vários rios paralelos de ação se encaminham para o desfecho. O assalto do ladrãozinho que se faz passar por negro é a Depressão econômica de 1930, setor desemprego. O cabaré onde se desenrola a detenção do meliante e a jam session inesquecível de vários músicos de primeira grandeza, é a cultura criada a partir da concentração de renda permitida pelo crime organizado; o seqüestro da amante (Miranda Richardson, sonsa e assassina) do político influente como forma de libertar o assaltante, bolado pela mulher deste (Jennifer Jason Leigh, escrachada e perfeita no papel da mulher desesperada), é o cinema dos anos 30, em que ação e paixão se enlaçam num pacto mortal.
LOUCURA - Há seqüências memoráveis, como a vingança do gangster (Harry Belafonte, em performance totalmente inspirada em Marlon Brando do Godfather) contra seu taxista. Enquanto os asseclas esfaqueiam a vítima ao fundo, em primeiro plano Belafonte conta a piada de um judeu, um negro e um branco. O gênio da garrafa apareceu para os três e disse que poderiam fazer um pedido cada um. Quero todo o meu povo de volta para a África, disse o negro. Quero meu povo inteiro nas terras sagradas de Israel, disse o judeu. Todos os negros na África e todos os judeus na Terra Santa? perguntou o branco para o gênio, que confirmou. Então quero um Martini. Existem tomadas que é pura metalinguagem, como a lenta e indecisa saída do cinema das duas mulheres, a que seqüestrou e a que está à mercê do revólver da outra. Elas saem, praticamente de costas, olhando para a tela onde estão Clarck Gable e Jean Harlow. O amor se torna impossível pelas circunstâncias de violência. O voto de cabresto no bar lotado de bêbados, a imensa casa da família negra que acolhe a menina grávida, a tensa relação entre a mal amada e a enlouquecida de tesão, são pontos de tensão que parecem levar um grand finale de loucura coletiva. Espera-se que aquele dia de eleições, em que uma grande personalidade política está em apuros tentando salvar a amante, em que os políticos estão de plantão para garantir a vitória, em que os pobres fazem propaganda dos democratas, acabará num tiroteio, numa barafunda, numa apoteose. Mas todas as armadilhas se desatam, para restar uma só: a do casal que caiu na trama social da miséria, diante da própria ousadia de tentar remendar seus erros.
REDENÇÃO - Todo filme é sobre cinema e Kansas City não escapa desse destino. A mulher apaixonada que quer salvar o marido que cometeu um erro da mão dos bandidos quer ser a estrela de cinema, pois é na sala escura que ela aprendeu a amar. Seu amor é idealizado pela sétima arte e foi lá que encontrou sua redenção. Bem oposta à sua vitima, que optou pelo ópio, a cacatonia, a indiferença e a crueldade. O cenário que apóia e envolve a narrativa é a idealização de um passado tomado pela insanidade, o jogo, o alcoolismo e a ambição. O acaso, representação dos detalhes que fazem a diferença (um item forte no cinema de Altmann) nos leva para o assalto ao posto de gasolina, que permite o roubo de alguns litros de combustível por parte de quem só estava passando por ali, ou ao testemunho inocente de um Charlie Parker ainda menino, que carrega a menina grávida para a casa da mãe. O liberalismo, a explosão criativa, o amor alucinado chocam-se com as facas, os revólveres, os telefonemas sinistros, as armações, e o cassetete.
LIMITES - O filme vale pelo que sonha: a vida que chega à divindade pelo jazz pode medrar num poço de amargura e destruição; o amor que se manifesta numa situação terminal, é inspirado no cinema que foi feito para alienar, mas acaba levando o espectador para o sentimento, impossível de se realizar na vida diária. Por isso Kansas City é pura transfiguração. Não é um filme de gangsters, é sobre a reflexão que o crime faz sobre seus próprios limites. Não é um filme romântico, já que um abdômen em tiras e um tiro na cabeça selam o destino dos amantes. Não é um filme de época, pois essas Kansas City é uma armação do diretor alimentado pela memória (ele nasceu lá), mas traído pela necessidade de fazer o seu cinema. Não é um filme de vanguarda, pois sua narrativa é fiel ao roteiro que ruma para o desenlace. Não é um filme retrógrado, pois não há concessões para o pesadelo da América. É um filme, como todos, sobre cinema: o que a tela iluminada pode fazer na sala repleta de sonhadores, que aponta armadilhas dentro do próprio filme. Lá, na Kansas City de Altmann, as pessoas saem da sessão em direção à derrota. Aqui, de onde vemos a obra, encontramos esse choque entre o que parece ser real e o que foi inventado para a nossa revelação.
RETORNO - 1. Imagem desta edição: cena de Kansas City, com Jennifer Jason Leigh. 2. Uma pequena obra-prima está no ar a partir de hoje no La Insignia, de Madri: Jesús Gómez, o editor que todos admiramos, faz um breve e contundente relato de suas impressões no hospital por onde passou por severa cirurgia. O humor, a objetividade, a sinceridade e o encontro com o Outro, seu colega chinês de UTI, fazem deste texto um exemplar da mais limpa e contundente literatura exposta na rede. Jesús foi-me apresentado por Urariano Mota, que no mesmo site destrincha o enigma Budapeste, de Chico Buarque. De quebra, La Insignia ainda me prestigia publicando a crônica Ventos demais.
11 de setembro de 2005
VENTOS DEMAIS
A vaidade humana descobre que os ventos, aliados das descobertas, voltaram enlouquecidos por um pânico ainda indecifrável. Talvez eles tenham cansado de nos mimar com seus balanços. E agora nos atormentam para que enfim possamos acordar. (Crônica publicada neste domingo no caderno Donna, do Diário Catarinense).
Nei Duclós
Há excesso de ventos, mesmo para quem faz parte deles, como os pescadores. Foi-se o tempo da viração, quando ventos conhecidos mudavam de lugar. Aragem sobre a varanda faz parte da memória familiar, quando era comum abrir a casa para dissipar o mormaço. Pé- de-vento que guardava saci ou levantava saia, quando ainda existiam sacis e saias. Que subitamente fazia o chapéu tomar um elevador, quando se usava chapéu.
Talvez os ventos tenham se revoltado com a pouca importância que os novos contornos urbanos lhes reservaram. Não fazem mais parte da paisagem, a não ser em terras privilegiadas de ilha e pampa, mesmo assim sem a convivência próxima com os habitantes, como costumava acontecer. Decidiram então unir forças para que possamos entendê-los. Ou, pelo menos, enxergá-los. Ampliaram ou corromperam suas rotas originais e, confederados em ciclones, lambem a costa galopando as marés.
Ares de tempestades caem com granizo aproveitando o choque entre massas frias e quentes, espiralando-se em fúria e fazendo soar a trombeta em cidades famosas pela música que produziam. Levam por diante esse objeto permanente de desejo, o automóvel, empilhando-o de maneira assustadora. Conluiados com as águas, os ventos confederados assomam em lugares inéditos, aterrorizando populações cevadas nas calmarias, que agora se debatem, tentando chamar a atenção para a novidade tenebrosa, enquanto a metereologia ainda confia em satélites, previsões, algoritmos.
Os ventos resolveram fazer nós gigantescos em forma de tornados, atirando-se sobre as plagas que nunca tinham experimentado nada igual. Eles chegam revelados pelo raio xis das nuvens transfiguradas de pavor, fazendo um pacto entre o chão desesperado e o céu próximo demais. Arrastam correntes de coisas, como se constituíssem um sinal bíblico jamais captado pelos profetas.
O que nos dizem os ventos nesta hora em que a inocência perde a batalha em seus últimos redutos? Quando nada mais há esconder, quando sabemos o tamanho do estrago, quando temos noção exata do que foi feito de nós e do mundo em volta, todos os ventos resolveram se manifestar, livres de velhas amarras. Não há mais obstáculos para os ventos outrora represados pela consciência, a cultura, a esperança, que por um longo tempo aprisionaram essas forças que agora se desatam.
Vemos a assembléia de árvores pedindo socorro. Os galhos são nossos braços e as folhas soltas as palavras que tínhamos a dizer. Os barcos que estavam ancorados em rodízios de cais e trapiches, em baías mansas, agora se acotovelam nas pequenas ruas das vilas do litoral. O grande calado do nosso espanto atravanca o exíguo reduto dos hábitos acumulados.
Não podemos mais adiar a reflexão sobre esse desencadear de fúrias, que trazem revoltos os cabelos de extintos monstros marinhos. Como aliens forçando as frestas, como gigantes destelhando vidas, como deuses drogados que decidem dar uma volta no planeta entregue à desfaçatez, quadrilhas de ventos pilham propriedades e esvaziam os bolsos que estavam repletos de ilusões e farsas.
Somos agora retirantes desse sopro que nos acossa por todos os lados. Migramos da surpresa para a fuga e enquanto corremos vemos voando, ao nosso lado, tudo o que estava quieto e sereno. Os peixes se atiram sobre as planícies. As montanhas descem suas lavas de detritos. As cidades viram monturos. A vaidade humana descobre que os ventos, aliados das descobertas, voltaram enlouquecidos por um pânico ainda indecifrável. Talvez eles tenham cansado de nos mimar com seus balanços. E agora nos atormentam para que enfim possamos acordar.
No fundo da barca dorme o deus de que somos feitos. Ele desperta, fica de pé, adverte quem se entregou ao desgosto e num gesto acalma o vendaval. O nevoeiro se dissipa e a brisa, vento mulher, pousa ao nosso lado como uma pomba.
Nei Duclós
Há excesso de ventos, mesmo para quem faz parte deles, como os pescadores. Foi-se o tempo da viração, quando ventos conhecidos mudavam de lugar. Aragem sobre a varanda faz parte da memória familiar, quando era comum abrir a casa para dissipar o mormaço. Pé- de-vento que guardava saci ou levantava saia, quando ainda existiam sacis e saias. Que subitamente fazia o chapéu tomar um elevador, quando se usava chapéu.
Talvez os ventos tenham se revoltado com a pouca importância que os novos contornos urbanos lhes reservaram. Não fazem mais parte da paisagem, a não ser em terras privilegiadas de ilha e pampa, mesmo assim sem a convivência próxima com os habitantes, como costumava acontecer. Decidiram então unir forças para que possamos entendê-los. Ou, pelo menos, enxergá-los. Ampliaram ou corromperam suas rotas originais e, confederados em ciclones, lambem a costa galopando as marés.
Ares de tempestades caem com granizo aproveitando o choque entre massas frias e quentes, espiralando-se em fúria e fazendo soar a trombeta em cidades famosas pela música que produziam. Levam por diante esse objeto permanente de desejo, o automóvel, empilhando-o de maneira assustadora. Conluiados com as águas, os ventos confederados assomam em lugares inéditos, aterrorizando populações cevadas nas calmarias, que agora se debatem, tentando chamar a atenção para a novidade tenebrosa, enquanto a metereologia ainda confia em satélites, previsões, algoritmos.
Os ventos resolveram fazer nós gigantescos em forma de tornados, atirando-se sobre as plagas que nunca tinham experimentado nada igual. Eles chegam revelados pelo raio xis das nuvens transfiguradas de pavor, fazendo um pacto entre o chão desesperado e o céu próximo demais. Arrastam correntes de coisas, como se constituíssem um sinal bíblico jamais captado pelos profetas.
O que nos dizem os ventos nesta hora em que a inocência perde a batalha em seus últimos redutos? Quando nada mais há esconder, quando sabemos o tamanho do estrago, quando temos noção exata do que foi feito de nós e do mundo em volta, todos os ventos resolveram se manifestar, livres de velhas amarras. Não há mais obstáculos para os ventos outrora represados pela consciência, a cultura, a esperança, que por um longo tempo aprisionaram essas forças que agora se desatam.
Vemos a assembléia de árvores pedindo socorro. Os galhos são nossos braços e as folhas soltas as palavras que tínhamos a dizer. Os barcos que estavam ancorados em rodízios de cais e trapiches, em baías mansas, agora se acotovelam nas pequenas ruas das vilas do litoral. O grande calado do nosso espanto atravanca o exíguo reduto dos hábitos acumulados.
Não podemos mais adiar a reflexão sobre esse desencadear de fúrias, que trazem revoltos os cabelos de extintos monstros marinhos. Como aliens forçando as frestas, como gigantes destelhando vidas, como deuses drogados que decidem dar uma volta no planeta entregue à desfaçatez, quadrilhas de ventos pilham propriedades e esvaziam os bolsos que estavam repletos de ilusões e farsas.
Somos agora retirantes desse sopro que nos acossa por todos os lados. Migramos da surpresa para a fuga e enquanto corremos vemos voando, ao nosso lado, tudo o que estava quieto e sereno. Os peixes se atiram sobre as planícies. As montanhas descem suas lavas de detritos. As cidades viram monturos. A vaidade humana descobre que os ventos, aliados das descobertas, voltaram enlouquecidos por um pânico ainda indecifrável. Talvez eles tenham cansado de nos mimar com seus balanços. E agora nos atormentam para que enfim possamos acordar.
No fundo da barca dorme o deus de que somos feitos. Ele desperta, fica de pé, adverte quem se entregou ao desgosto e num gesto acalma o vendaval. O nevoeiro se dissipa e a brisa, vento mulher, pousa ao nosso lado como uma pomba.
10 de setembro de 2005
A DITADURA CIVIL TENTA UMA SAÍDA
A ditadura civil que nos governa desde 1985 procura se salvar depois de aprofundar os princípios do regime instaurado em 1964 - arrocho salarial, entrega da soberania, expropriação financeira e patrimonial da população, extrema concentração de renda, miséria e violência. Os responsáveis pelo atual regime - o coronelato político dos antigos e novos grotões, os banqueiros tradicionais e emergentes, as novas elites do estamento burocrático ligado aos fundos de pensão, o caciquismo das multinacionais em conúbio com os apaniguados em eterno rodízio no poder - já tinham ido longe demais com Collor e FHC, quando o Brasil foi presenteado de mão beijada para a máfia internacional. Chegaram ao fundo do poço com Lula, que em troca da política econômica herdada se cercou de uma quadrilha de sicários. Agora buscam a chamada terceira via, capitaneada por essa contrafação que é Anthoy Garotinho, que contratou o economista Carlos Lessa para uma receita que mistura trabalhismo, nacionalismo e populismo. Enquanto isso o PDT, que teria agora a sua chance, aposta as fichas em quadros adventícios, como sempre, como é o caso de Cristóvão Buarque, egresso do PT e de seus equívocos.
DIREITA - O populismo foi inventado pela direita para tentar barrar, pelas urnas, o crescimento do antigo PTB. Sua encarnação chama-se Jânio Quadros, que ganhou as eleições e retirou-se do poder, provando a irresponsabilidade de quem inventou um louco só para evitar que o trabalhismo voltasse ao poder. Povo está na raiz da palavra populismo, diz Carlos Lessa para justificar sua miscelânea. O que está na raiz da palavra chama-se sacanagem. Ganhou status acadêmico com Francisco Weffort, que depois de fazer o serviço sujo bandeou-se para o tucanato, onde usufruiu por longos anos o poder. O nacionalismo não pode fazer parte de mais uma fantasmagoria política, essa terceira via de araque, que está sendo gerado por um monstro, o PMDB, o partido que reinou no início da ditadura civil por meio de seu ogro, José Sarney (por falar nisso, onde anda o senador maranhense do Amapá? hum...aí é que mora o perigo).
PLATAFORMA - O que fazem os trabalhistas? Perdem sua chance de ouro ao não lançar quadros próprias à presidência. Vão apostar em Cristóvão Buarque, quando possuem Jefferson Peres, o mais respeitado parlamentar brasileiro. O PDT adora grudar em quem nada tem a ver com ele. Fizeram isso em todo o Brasil, especialmente em São Paulo, quando chegaram ao cúmulo de lançar candidato o Francisco Rossi, que acabou malufando. A solução deve ser encontrada fora da ditadura civil. Em primeiro lugar, fazer uma auditoria nas urnas eletrônicas, com presença de peritos internacionais. Segundo, abrir uma brecha grande para novos quadros políticos, impedindo que os quadrilheiros de sempre tomem conta de todas as vagas de candidaturas. Terceiro, impedir completamente o marketing político e deixar que os candidatos falem sem nenhuma musiquinha ou câmara lenta, que exponham idéias por pouco tempo e transpareçam tudo pela internet. Quarto, impedir a reeleição em todos os cargos, no Executivo e no Legislativo. Quinto, impedir a terceirização de serviços públicos e de infra-estrutura. Sexto decretar moratória negociada para a divida externa. Sétimo, deixar de exportar proteína e voltar toda a produção para o bem estar da população. Oitavo, desmontar os grandes sistemas de comunicação, abrindo novas licitações baseadas nos critérios de merecimento cultural, proibindo os grandes poderes do dinheiro e da política adonarem-se da televisão. Nono, estatizar todas as grandes empreiteiras que são as maiores credoras do tesouro nacional. Décimo, acordar.
RETORNO - Morri de pena do Maluf. Muito gordo, muito velho, muito triste, devia estar murmurando, em tom de lamento que faz o balanço de uma vida, enquanto ia para a prisão: "São Paulo, é Paulo, porque Paulo, é trabalhador. São Paulo, é Paulo, porque Paulo, é trabalhador..."
9 de setembro de 2005
O ANALFABETISMO É FRUTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
O Brasil tornou-se perigoso na Era Vargas. Virou um país viável, que se industrializou e cresceu no vácuo deixado pelas potências em guerra total de extermínio. Nossa cultura, criação sofisticada a partir das vivências populares, deslumbrou o mundo. O que Villa-Lobos fez com o folclore e com a tradição da música erudita é obra para todos os séculos. O que Vinicius de Moraes fez com a afetividade, marca registrada do país continente, é inspiração nacional. O que o romance de vanguarda fez com as linguagens arcaicas, via Guimarães Rosa, é para deixar qualquer grande escritor estrangeiro no chinelo. O que nosso romantismo engendrou de harmonia no mundo brutalizado, é instrumento de paz. O quanto de intelectuais de primeira grandeza as escolas públicas e gratuitas geraram em 34 anos de grandeza (1930-1964) são as bases do pensamento brasileiro livre e independente (de Celso Furtado a Darcy Ribeiro). Quando a poeira radioativa baixou sobre a humanidade ferida, era preciso destruir o país. Foi o que fizeram. É por isso que temos 68% de analfabetos funcionais. Estamos cercados pela idiotia, a sociedade ágrafa manipulada por políticas públicas perversas.
SUCATA - Millor Fernandes, nascido em 1924, e, portanto, estudante do início dos anos 30, tem só o primário. Cartola, que fez versos maravilhosos a partir do que aprendeu nos primeiros e únicos anos de estudos, é símbolo desta época de glória. O que fez o regime de 1964, que até hoje está em vigor? Acabou com a educação. Gerou milhares de escolas particulares fajutas, acabou com a carreira de professor (que na época em que estudei no primário, anos 50, tinham dignidade social e econômica). Sucateou a universidade pública, que se mantém trôpega (a UFSC, aqui, está em greve). Ninguém passa no exame para a ordem dos advogados em São Paulo (apenas 5%). Faculdades médicas geram monstros, Mengels assassinos. Engenheiros que não sabem aritmética (como prova uma recepcionista que eu conheço, que tem professor engenheiro que erra em contas de diminuir) fazem cair pontes e edifícios. Num inverno de cinco graus, o motorista do ônibus onde viajo ligou a toda o ar condicionado no frio. Gritaram para ele, mas não entendeu. Tive que ir lá e expliquei como funcionava o inverno. Ele concordou, mas avisou: se ficar muito quente, eu religo, ok? Isso é analfabetismo funcional. As pessoas obedecem ordens. O cara foi obrigado a ligar o ar no verão, chegou o inverno, não houve contra-ordem, ele continua ligando. Por que o senhor fica fazendo barulho às seis da manhã de domingo? perguntei em São Paulo para o porteiro do prédio em frente minha casa. Estou fazendo minhas oito horas, foi a resposta. O presidente da Câmara é Severino Cavalcanti. O presidente da República se orgulha da própria ignorância. Chega?
VOCAÇÃO - O que fazer do nosso sonho, o de cumprir nossa vocação de escritor, viver do nosso ofício que depende da alfabetização dós outros? Resistir, lutar. Isso não foi você que escreveu, me diziam quando era adolescente. Não acreditavam que alguém pudesse nascer com a queda para a palavra, aproveitar ao máximo o aprendizado na escola e gerar algo diferente, original. Olha só a poesia que ele fez, debochavam. Sim, existia analfabetismo naquela época. Mas nada que se compare ao que temos hoje. Nos anos 60, a luta dos estudantes era contra o sucateamento da educação superior, armada pelo acordo Mec-Usaid, imposição americana aceita pela ditadura fabricada pelos poderosos (as passeatas não eram a favor do Vietcong, como traíam as lideranças estudantis do tipo José Dirceu, o que esvaziou o movimento e decretou sua derrota). Não interessava ter um povo preparado, um país livre, uma nação grandiosa. Este território serve para abastecer a sanha assassina dos países ricos e os aproveitadores, de todos partidos e classes, que se debruçam sobre o suor do povo. Aqui não há nada, está tudo seco, disse ontem no Jornal Nacional a ex-retirante que voltou de São Paulo para uma cidade no sertão de Pernambuco. Mas a gente vai levando. Aqui as pessoas se ajudam, lá não. Lá é muito pior.
8 de setembro de 2005
GOLS DO MÁGICO MANDRAKE
A rodada do Brasileirão foi de arrepiar, mas vi pouco futebol, porque a TV aberta esconde os fatos de propósito para forçar a população a pagar para ver o que gosta (as mesmas empresas da TV aberta dominam na TV a cabo, que nada mais é do que um conjunto de canais que representam cada programa sem codificação: o jornal da Band é o Bandnews, o programa Fama é o Multishow, a Tela Quente é o USA, o Domingo no Cinema é a HBO, o Globo Repórter é Mundo e assim por diante). Como tenho outras despesas mais importantes, como a caríssima banda larga da internet (produto tecnológico de massificação que no Brasil, claro, ganha contornos de elite pelo preço), me limitei a ver o excelente Fluminense e Cruzeiro e alguns lances esparsos. Seleciono três momentos: o gol de falta de Ricardinho no Santos x Atlético Paranaense e os dois gols de Petkovic, do Flu, todos tirados da cartola de Mandrake, o mágico dos quadrinhos que virou sinônimo de jogada impossível nos tempos em que gibi era nosso videogame.
COMANDO - O de Ricardinho foi mais sensacional. A bola subiu para a arquibancada, mas a uma meia altura perigosa, paradoxo que nosso olho não suporta e vê apenas com um chute magistral em direção à área que fica muito acima do goleiro. Este fica paralisado, pois acredita no que imagina (e naquilo que o chute traiçoeiro sugere). Mas a bola foi tocada pelo craque, portanto tem outros endereços. Ela bate furiosamente no travessão, vai com força para o chão e volta para cima, para bater de novo no pau que limita a parte de cima da goleira. Só quando se choca pela segunda vez no travessão, antes de entrar para o fundo da rede, o goleiro se mexe. É incrível esse milissegundo em que o goleiro, paralisado, ordena seu corpo em direção à bola, que já saía do chão para alçar vôo novamente rumo à trave de cima. O comando que movimentou o arqueiro chegou um século atrasado. Era o que o corpo queria fazer antes do desenlace, mas emperrou na certeza obscura de que a bola iria se perder para sempre. É de arrepiar ver o goleiro totalmente imóvel olhando para cima (só o olho acompanha a velocidade do chute) e a bola batendo, despencando para o solo, voltando para cima, para quicar e entrar, enquanto o goleiro tenta investir contra o irreparável. Ricardinho ainda fez outro gol, de corrida, em que colocou a bola no canto esquerdo usando o lado do pé para dar o chute. Mas esse gol, também maravilhoso, não foi Mandrake.
LEGIÃO - Mandrake foram os dois de Petkovic. O primeiro consistiu na travessia da pequena área. Os narradores sempre erram, dizem que ele venceu dois adversários para chegar no gol. Para mim o grande craque atravessou o canal da Mancha, cruzou a linha Maginot, enfrentou a Legião Estrangeira, passou por dez mil combatentes, superou os espartanos de Leônidas e no final da jogada, diante do goleiro que se atirava em seu encalço, ele teve a manha de encontrar um espaço quântico onde deu um totózinho que elevou suavemente a bola. Petkovic é absolutamente impossível. No seu segundo gol, ele limpa a área ao fazer a bola rolar para a esquerda, ocupar um ponto em que a percepção do adversário imagina que dali jamais sairá algo que preste. Petkovic engana todo mundo ao chutar a bola para os eucaliptos, aquele limite antigo (agora imaginário) dos gramados da periferia e que simbolizava o fim do mundo irreal do futebol e o início da desgraça, a vida normal de todos os dias. Pois a bola é assim chutada, numa direção tomada pelo desespero, sem nenhum poder de entrar em qualquer lugar plausível e eis que, diante do cansaço do olhar, a bola entra na gaveta, no ângulo supremo do nosso encantamento. É assim o jogo de futebol. Um programa ridículo em que pensamos encontrar o Mesmo, mas nos defrontamos com um coelho que salta da cartola e imita Louis Armstrong.
ARBITRAGEM - Um jogo de futebol tem várias versões. Uma para cada tipo de torcedor, jogador ou jornalista. Quem define a realidade é o árbitro, que diz se foi ou não gol, falta ou impedimento, ou se o jogo realmente terminou. Mas isso não basta. É preciso ter o comentarista de árbitro, um aliado corporativo de quem está decidindo os lances da partida. É uma invenção da Globo em que um ex-árbitro dá força para seu colega. É que a potência das inúmeras probabilidades que possui o futebol pode fazer cair a ficha dos telespectadores. Ei, as coisas podem ser diferentes, podem mudar, podem ter mais de uma versão. Isso é um perigo político e cultural. Não pode. Então vem o Arnaldo César Coelho, o José Roberto Wrigth ou aquele outro da Record que fala carimba, Luciano, carimba, que o gol foi legal, aquele chato insuportável, para dar voz de prisão ao olhar que corre solto pelos pés dos craques.