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29 de setembro de 2005

ENCONTRO NO ESCURO

Cultura é encontro entre pessoas. Não um encontro qualquer, mas um acerto de contas. Uma conversa em círculos, que busca saídas de espiral. Um mergulho para assomar em outras superfícies. O impulso gerador do encontro é o resgate, pautado pela impossibilidade, já que o passado sempre some e nossas mãos ficam vazias com o que perdemos. O Tempo, essa traição constante, é o insumo que alimenta a fábrica da palavra no livro A terra dos longos olhares, encontro de 30 autores nascidos ou moradores em Uruguaiana. Ele foi editado para significar "a pedra fundamental de um lugar aonde podemos voltar" , segundo a organizadora, professora Lucia Silva e Silva. O Tempo, matéria-prima não maleável, não se conforma às intenções dos autores, mas por intermédio deles mostra algumas garras. O livro é uma chance de enxergarmos o que realmente fazemos com verbo que nos foi confiado e que em nossas vidas ganhou caminhos diversos, opostos, mas que insistem em se identificar (ou se excluir) mutuamente.

FORMAÇÃO - "O importante não é o lugar de onde viemos", me disse um dia Tabajara Ruas (um dos autores do livro, com o conto No Sul, há muito tempo). "Mas para onde estamos nos dirigindo". Aparentemente, somos escritores ligados por uma formação em comum, procurando exercer os valores que nos criaram, que crescem de importância à medida em que o Brasil vai sendo sucateado. O apelo dessa raiz é forte, mas o livro aponta, felizmente, para a extrema diversidade. Não podemos ser colocados na vala comum de uma confraria, já que somos agentes e vítimas da dispersão promovida pelo Tempo. No texto que enviei para fazer parte do livro, O dia de prata no meio do mato, reconheço que é impossível resgatar a vivência, do menino que fui, com meu pai, que se foi. A representação dessa descoberta é o peixe que escapa para sempre, logo depois de parecer estar solenemente fisgado. Tínhamos o Tempo, o Passado, nas mãos, mas ele se foi e se despediu. O que fica dessa busca? A revelação brutal do Outro, que somos nós. A morte, velório e enterro de Selene, a prima que foi criada depois de ser abandonada pela mãe e entregue pelo pai, no conto premiado de Vera Ione Molina, Passagem, é essa revelação da estranheza em relação ao semelhante. A prima veio de outro ventre, cresceu junto à família, onde foi excluída pela avó, rebelou-se aos 16 anos, abriu caminho do seu jeito e agora está morta, diante do choro dos amigos e parentes. Quem é essa criatura que não nos acostumamos a ver sempre a Mesma, mas que nos colocou diante do enigma que é o humano fora do circo doméstico e que é adotada como um corpo estranho?

TIRO - Essa cerzidura perfeita em suas minúcias no conto de Vera nos abre a porta para entender todo o livro. Ricardo Peró Job publica, mais do que um conto sobre a guerra, exatamente esse olhar sobre o Mesmo que se torna o Outro. O filho do bolicheiro, tão reconhecível pela convivência na infância, hoje será punido por deserção. O próprio narrador é escolhido para participar do desenlance. Nós somos os assassinos do que parece ser idêntico a nós, somos forçados a ver o que nos recusamos ver e a tomar uma atitude. O que estava encoberto pela superfície do hábito emerge como um tiro de fuzil. Quem é essa menina doce que descreve o desespero da avó afastada do seu leque precioso no conto Objeto de Desejo, de Silvio Genro? Ela é a algoz num jogo mortal com sua vítima. Não é uma criança qualquer, é o Terror sob a capa da falsa harmonia. O Pânico diante do semelhante, o estranhamento levado às últimas conseqüências, está em Arremesso de Peso, de Túlio Urach, em que o humano é virado do avesso para revelar as vísceras.O que parecia ser um atleta é um monstro. O pacto sinistro, no conto Encruzilhada, de Ricardo Duarte, e a desmistificação das aparências, em Olha que coisa mais linda..., de Fernando Pereira a Silva, aprofundam essa pesquisa sobre os semelhantes, para detectar neles o inóspito, o inaudito, o não visto. O amor, em Duarte, e o tesão, em Fernando, são passaportes para que a estranheza enfim aporte na cidade que parece ser sempre igual.

ÂNCORA - Esse encontro no escuro, em que as cenas ficam à mostra por alguns instantes (os momentos da leitura), não elimina a existência de algumas âncoras. Se estamos no mesmo barco, onde pipocam flashes sobre o inusitado, é preciso que alguém cuide do porão, do remo, do combustível. Disso se encarrega Daniel Fanti, autor de admirável obra sobre a História da cidade e que nos leva pelas balsas do rio Uruguai por meio de um personagem que dedicou a vida ao jogo bruto do extrativismo e do transporte pelas águas. Ou Lourival de Araújo Gonçalves, com seu minidicionário de uruguaianês. E principalmente um outsider, Hique Gomes, filho de uruguaianense, que vai atrás do que se escondia por trás de uma canção de Bebeto Alves (também presente na antologia com algumas Canções) e descobre o silêncio como fonte da milonga. Ou ainda Luiz Flodoardo Silva Pinto, sobre a relação do missioneiro com a fronteira e Pedro Grassi, sobre visitantes ilustres. Há ainda os poemas: mas isso é assunto para amanhã.

RETORNO - Escrever é reescrever. Fiz alguns acertos, que modificam um pouco a versão publicada às três e meia da tarde. Esta, antes das seis, está mais caprichada.

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