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8 de setembro de 2005
GOLS DO MÁGICO MANDRAKE
A rodada do Brasileirão foi de arrepiar, mas vi pouco futebol, porque a TV aberta esconde os fatos de propósito para forçar a população a pagar para ver o que gosta (as mesmas empresas da TV aberta dominam na TV a cabo, que nada mais é do que um conjunto de canais que representam cada programa sem codificação: o jornal da Band é o Bandnews, o programa Fama é o Multishow, a Tela Quente é o USA, o Domingo no Cinema é a HBO, o Globo Repórter é Mundo e assim por diante). Como tenho outras despesas mais importantes, como a caríssima banda larga da internet (produto tecnológico de massificação que no Brasil, claro, ganha contornos de elite pelo preço), me limitei a ver o excelente Fluminense e Cruzeiro e alguns lances esparsos. Seleciono três momentos: o gol de falta de Ricardinho no Santos x Atlético Paranaense e os dois gols de Petkovic, do Flu, todos tirados da cartola de Mandrake, o mágico dos quadrinhos que virou sinônimo de jogada impossível nos tempos em que gibi era nosso videogame.
COMANDO - O de Ricardinho foi mais sensacional. A bola subiu para a arquibancada, mas a uma meia altura perigosa, paradoxo que nosso olho não suporta e vê apenas com um chute magistral em direção à área que fica muito acima do goleiro. Este fica paralisado, pois acredita no que imagina (e naquilo que o chute traiçoeiro sugere). Mas a bola foi tocada pelo craque, portanto tem outros endereços. Ela bate furiosamente no travessão, vai com força para o chão e volta para cima, para bater de novo no pau que limita a parte de cima da goleira. Só quando se choca pela segunda vez no travessão, antes de entrar para o fundo da rede, o goleiro se mexe. É incrível esse milissegundo em que o goleiro, paralisado, ordena seu corpo em direção à bola, que já saía do chão para alçar vôo novamente rumo à trave de cima. O comando que movimentou o arqueiro chegou um século atrasado. Era o que o corpo queria fazer antes do desenlace, mas emperrou na certeza obscura de que a bola iria se perder para sempre. É de arrepiar ver o goleiro totalmente imóvel olhando para cima (só o olho acompanha a velocidade do chute) e a bola batendo, despencando para o solo, voltando para cima, para quicar e entrar, enquanto o goleiro tenta investir contra o irreparável. Ricardinho ainda fez outro gol, de corrida, em que colocou a bola no canto esquerdo usando o lado do pé para dar o chute. Mas esse gol, também maravilhoso, não foi Mandrake.
LEGIÃO - Mandrake foram os dois de Petkovic. O primeiro consistiu na travessia da pequena área. Os narradores sempre erram, dizem que ele venceu dois adversários para chegar no gol. Para mim o grande craque atravessou o canal da Mancha, cruzou a linha Maginot, enfrentou a Legião Estrangeira, passou por dez mil combatentes, superou os espartanos de Leônidas e no final da jogada, diante do goleiro que se atirava em seu encalço, ele teve a manha de encontrar um espaço quântico onde deu um totózinho que elevou suavemente a bola. Petkovic é absolutamente impossível. No seu segundo gol, ele limpa a área ao fazer a bola rolar para a esquerda, ocupar um ponto em que a percepção do adversário imagina que dali jamais sairá algo que preste. Petkovic engana todo mundo ao chutar a bola para os eucaliptos, aquele limite antigo (agora imaginário) dos gramados da periferia e que simbolizava o fim do mundo irreal do futebol e o início da desgraça, a vida normal de todos os dias. Pois a bola é assim chutada, numa direção tomada pelo desespero, sem nenhum poder de entrar em qualquer lugar plausível e eis que, diante do cansaço do olhar, a bola entra na gaveta, no ângulo supremo do nosso encantamento. É assim o jogo de futebol. Um programa ridículo em que pensamos encontrar o Mesmo, mas nos defrontamos com um coelho que salta da cartola e imita Louis Armstrong.
ARBITRAGEM - Um jogo de futebol tem várias versões. Uma para cada tipo de torcedor, jogador ou jornalista. Quem define a realidade é o árbitro, que diz se foi ou não gol, falta ou impedimento, ou se o jogo realmente terminou. Mas isso não basta. É preciso ter o comentarista de árbitro, um aliado corporativo de quem está decidindo os lances da partida. É uma invenção da Globo em que um ex-árbitro dá força para seu colega. É que a potência das inúmeras probabilidades que possui o futebol pode fazer cair a ficha dos telespectadores. Ei, as coisas podem ser diferentes, podem mudar, podem ter mais de uma versão. Isso é um perigo político e cultural. Não pode. Então vem o Arnaldo César Coelho, o José Roberto Wrigth ou aquele outro da Record que fala carimba, Luciano, carimba, que o gol foi legal, aquele chato insuportável, para dar voz de prisão ao olhar que corre solto pelos pés dos craques.
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