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30 de agosto de 2005

COMÉDIA ROMÂNTICA E ROAD MOVIES




A comédia romântica é um conflito entre pessoas díspares que procuram o Outro onde ele não se encontra. O enredo é a busca desesperada de uma parceria idealizada, que acaba sempre se revelando um equívoco. O desfecho é quando o Destino se impõe por obra de Cupido, o deus travesso, que arma situações opostas aos impulsos originais. Há sempre uma correria no fim do filme, sinal evidente que um dos protagonistas se dá conta do erro e tenta remendar partindo para o ataque ao objetivo certo. O Amor sempre esteve ao lado, nos atalhos, nunca na auto-estrada. A declaração que sela as núpcias é o alívio de quem estava perdido e que resgata, no embate, a própria identidade. Rock Hudson e Doris Day, Tom Hanks e Meg Ryan, Andie McDowell e Gerard Depardieu são casais voltados para fora da relação que à primeira vista parece impossível, mas que no final se entrega ao inevitável. É uma fórmula eterna, que só perde em longevidade e carisma para o road movies, a travessia de indivíduos pelo deserto, quando descobrem, ao andar, o quanto ficaram longe de suas origens, e que, ao contrário da comédia romântica, implica sempre em perda, e muitas vezes em tragédia.

BERGMAN - Nos dois tipos de filmes, a fuga (para a estrada, para o amor) é uma opção de quem vive situações insuportáveis. Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman, é o mais radical e encantador road movie da história do cinema. Um idoso viaja em busca de um prêmio e descobre a miséria de sua vida em seqüências onde memória e realidade têm o mesmo peso. Em Corrida contra o destino (Vanishing Point, de Richard C. Sarafian) a obra-prima americana sobre o suicida que peita as autoridades a bordo de um carro cult, representa, pela velocidade, a insurreição contra a cristalização de uma sociedade fundada na tirania. A explosão final só tem comparação em impacto das motocicletas em chamas de Easy Rider, de Denis Hopper, o marco antológico dessas viagens em direção ao insight. "We blow it", diz Peter Fonda quando se dá conta da quantidade de horrores em que se meteram. Nós somos os culpados por isso, por essa radicalização que nos exclui, resposta dura ao horror supremo da falta de liberdade. O road movie é uma descida à danação, e esta pode ser representada tanto pelo fogo quanto pelo abismo (como em Telma e Louise, de Ridley Scott). O movimento, fundamento do cinema, é o ambiente do filme que nos leva de carro, trem, barco, a cavalo ou a pé. Embarcamos naquele sonho e torcemos por um final feliz, que nem sempre vem. A viagem a cavalo que Kirk Douglas empreende em The Last Sunset, de Robert Aldrich, em direção à casa que destruiu é um aceno para a vida romântica do passado, mas o caminhão, carregado de vasos sanitários, se atravessa no seu caminho para destruir a viagem. A Morte espreita o road movie, que não faz graça com ninguém. Quando tudo se resolve no final, o filme perde a identidade e pode virar uma bobagem, como Amigas para sempre, com Britney Spears, que passou na Tela Quente desta segunda-feira na Globo.

FESTA - Charada, de Stanley Donen, com Cary Grant e Audrey Hepburn, é a comédia romântica de ação em que o galã, à primeira vista um anti herói, mente para salvar a mocinha e que, com esse expediente, acaba fechando todas as portas para um encontro final amoroso. A qualidade da comédia romântica vem da capacidade da trama: esta precisa nos convencer que será totalmente impossível um the end favorável. Todas as ciladas se apresentam ao casal inverossímel, que assim dispõem de uma abundância de oportunidades. No fundo, o roteirista responde à imaginação dos espectadores, que precisam ser contrariados nas suas esperanças. Quando tudo parece perdido, algo se apresenta para resolver a questão. A seqüência que define a comédia romântica acontece sempre num ambiente coletivo de confraternização: Natal, Ano Novo, Ação de Graças, parque de diversões, desfile, festa. No meio da multidão cheia de alegria e esperança, o desespero de quem viu seu amor sumir pelo ralo cruza o território da indiferença com o coração em brasa. Billy Cristal em Harry e Sally ou Renée Zellweger em Diário de Bridget Jones podem dizer enfim: eu te amo. Quem reprimir o choro, não pode ser considerado humano.

29 de agosto de 2005

A PALAVRA DOS INTELECTUAIS




Cante comigo: Tudo vai máal/ tuuudo/ Tudo é igual/ quando canto e sou muuuuudo. Releve a desafinação. O importante é o que Caetano nos diz: se sei cantar e não consigo, nada muda. Urariano Mota nos dá a pista sobre a origem grega desse insight, reproduzindo de memória uma frase antiga: "se tens uma língua e não falas, então de que te serve ter essa língua?". Tudo as ver com o silêncio de alguns intelectuais, nesta quadra difícil da vida brasileira. Recolhem-se, preferem não falar. Ou falam de maneira escapista. Exatamente agora é o momento de produzir pensamento. A realidade nos desafia. Passou o tempo das idéias prontas, das ilusões. Mas existem outros que pegam o touro a unha. Vamos fazer um elenco de declarações, enviadas pelo jornalista Paulo Nogueira, que me mantém informado sobre tudo o que acontece no Brasil.

LEONARDO BOFF - Caiu a ficha do teólogo sobre nossa falsa democracia: "Previamente a tudo, importa reconhecer o caráter precário de nossa democracia. Ela ganha contornos de farsa pois não pode haver democracia digna deste nome na qual um terço da população é excluída e oito mil famílias controlam cerca de 700 bilhões de reais, aqueles conhecidos rentistas que financiam mensalmente o governo em troca de altíssimos juros. Se elencássemos os valores da democracia como são apregoados pela retórica política - liberdade, igualdade, justiça social, participação, desenvolvimento social com distribuição de renda e seguridades do cidadão - a nossa seria a sua própria caricatura para não dizer a sua direta negação". Prefiro chamar de ditadura civil.

EMIR SADER - Justificando Lula: "Lula ganhou porque os trabalhadores-sem-terra foram tratados como criminosos, como se tivessem introduzido a violência no campo, quando são vítimas privilegiadas da violência dos latifundiários e da polícia, enquanto lutam pelo direito de trabalhar, produzir, afirmar sua identidade pela educação e ganhar o direito de serem cidadãos. Em suma, Lula ganhou porque FHC fracassou." Ou seja, Lula ganhou, FHC ficou oito anos do poder, nós perdemos.

CHICO BUARQUE - "Se estou triste? É claro que estou triste com o que está acontecendo, mas a minha tristeza tem tanta importância quanto a alegria raivosa de quem nunca gostou dele". É verdade, tanto a tristeza dos aliados e cúmplices quanto a alegria raivosa dos adversários não tem importância. O que tem importância é o esvaziamento das lutas populares, da democracia e da fé na representação popular legitima. O que tem importância é o escancaramento do sistema corrupto da política brasileira, tanto do PT quanto dos outros partidos.

MAURO SANTAYANA - O grande articulista, sempre lúcido: "Com todos os seus erros, gigantescos, que nos fazem pensar que ele preferiu chegar logo ao poder a uma presença gloriosa na posteridade, será aventura muito arriscada o processo de impeachment. Para que as forças políticas tenham autoridade para promovê-lo, é preciso, antes, abrir a parte secreta da caixeta de Pandora, aquela que guarda os mistérios do governo passado. Mistérios como os das privatizações, do caixa 2 de campanhas, da lavagem de dinheiro pelo Banestado e pelo Banco Araucária, o caso Cacciola, as ligações de Fernando Henrique com Daniel Dantas, a desnacionalização do sistema bancário. Resta saber se estão dispostos a isso".

VERISSIMO - LFV, o texto absoluto: "A triste história do auto-emporcalhamento do PT tem uma outra triste história ao lado, a do tom celebratório, eufórico, com que está sendo recebida. O PT está pagando pela sua pretensão a não ser como os outros. Mas o que de maneira alguma poderia sobreviver à sua iniciação na irmandade do tudo igual é o seu idealismo. Esse tem que ser enterrado na lama, para aprender".

27 de agosto de 2005

NÃO HÁ RESPOSTAS, APENAS ENCANTAMENTO



Em Shosha, Isaac Bashevis Singer nos brinda com o pesadelo do escritor que tenta viver do seu ofício enquanto o mundo desmorona à sua volta (Resenha publicada neste sábado no caderno Cultura do Diário Catarinense).

Nei Duclós

Todo romance é sobre literatura. Todos os que contam, pelo menos, como nos lembra Shosha, de Isaac Bashevis Singer (Francis, 300 págs.), lançado originalmente em 1978, o mesmo ano em que o autor ganhou o Prêmio Nobel. A linhagem é conhecida. O Quixote que se debruça sobre si mesmo na segunda parte do texto de Cervantes é o exemplo canônico da ficção com autoconsciência. O jogo não tem fim e chegou ao auge com as experiências do século 20, de Joyce a Guimarães Rosa.

Mas, longe de ameaçar a sobrevivência da arte, monumentos da conflagração literária como Ulisses e Grande Sertão beberam na fonte dos clássicos, sinal de que a criação literária, há tempos, alimenta-se da reflexão sobre o que se escreve e dela faz sua principal trama. Nas Mil e Uma Noites, o núcleo do drama não são as histórias contadas por Sherazade, mas sim o fato de contá-las, o que representava a anulação da pena de morte decretada pelo rei. Em Rosa, o livro é o confronto entre o contador e o ouvinte fictício. O objetivo é nobre. A arquitetura da narração, por mirar-se no espelho, torna-se real, só para contaminar os personagens. Riobaldo e Diadorim tornam-se de carne e osso, enquanto acontece o reverso no projeto, pois não existe nada mais inventado do que o doutor que chega de longe para escutar o velho jagunço. Esse é o segredo do romance, que jamais se entrega ao que quer contar, antes denuncia a sua impossibilidade. Ao desistir (sem se entregar) ele consegue atingir a essência da produção de um escritor de verdade.

Não há disfarce maior do que o romancista confessar que é apenas um contador de histórias. A crítica costuma embarcar nessa canoa, achando que o inventor deixou para os outros o principal da obra. Não é preciso ler um ensaio para conhecer as intenções de um romancista e a certeza que ele tem de não conseguir enganar ninguém com seus truques. A não ser que desvie a atenção do leitor para as paragens do mural que constrói, até levá-lo pela mão para ver o que existe atrás da parede pintada (quando acontece, então, a revelação). Quem conta uma história diz como e por que conta, pois todo escritor aspira à eternidade, e não há alma imortal na literatura que se enrede na própria teia. O escritor sabe: quando o livro acabar e a vítima acordar de seu devaneio, e tardiamente descobrir a cama-de-gato preparada, voltará as costas para a obra (essa é a origem dos livros datados e esquecidos). Mas se o próprio livro disser do que se trata, então a fidelidade é absoluta. Amor ou amizade precisam da verdade, e a verdade são letras sobre papel. À parte isso, Moby Dick nos espera para nos engolir.

As ciências da linguagem fizeram uma abordagem dúbia sobre essa vocação, pois descobrir o truque implicava, muitas vezes, dissecar a cobaia. O romance seguiu em frente graças à insistência do gênio de autores como Jorge Luis Borges, que reinstaurou a magia do livro dentro do livro, do autor fictício, do narrador que terceiriza a autoria para deflagrar o eterno retorno do maior dos encantamentos, o da leitura. No fundo, os livros inventados dentro dos livros reais são o que pensam ser a literatura, enquanto a própria vai sendo desenrolada, como um novelo de surpresas, enquanto avançamos nas páginas.

Singer, em Shosha, tem a seu favor um tempo específico, a Varsóvia dos anos 1930, antes da invasão de Hitler. Uma cultura que se presta a todos os equívocos, a dos judeus, e que em Shosha revela toda a grandeza da sua universalidade, já que nada escapa ao olho clínico e crítico dos próprios judeus, não só sobre Deus, o mundo e o universo, mas sobre os limites da vivência inspirada nos textos sagrados. Com esses instrumentos, Singer nos brinda com o pesadelo do escritor que tentou viver de seu ofício enquanto o mundo desmoronava.

O umbigo desse mundo é a Rua Krochmalna, onde o narrador, inventado, passou a infância. A metáfora dessa época é a pequena Shosha, o espírito infantil que se recusou a crescer e a amadurecer e que funciona como um ímã para o escritor, que tenta escapar da ética (que num tempo de chacais é a maior das maldições, mas a única que leva à grandeza). A obra inverossímel, que sustenta as aspirações do escritor-personagem, é uma peça iídiche, encomendada por um milionário americano, casado com uma artista judia e desencantada. Não são as intenções do autor que fazem fracassar o projeto, é o seu destino. O embate entre o que está escrito e o livre-arbítrio é a linha que costura o livro. Conseguirá o escritor o sucesso para escapar da ameaça de invasão de Hitler? Poderá mentir e fazer concessões o suficiente para tornar-se um profissional do ramo? Ou terá que arrostar seu pecado original (a vocação legítima) como um fardo, como quem carrega uma criança doente nos braços, com a qual assume núpcias criticadas por todos?

Singer tenta nos seduzir com seu jogo de infinitas possibilidades para o jovem escritor que tem estrela e pode sair rico da empreitada. Mas nos carrega de volta para a rua da infância, onde tudo está condenado, não apenas os mortos que assombram os sótãos, mas os vivos que aguardam o Holocausto. A maestria do autor, o verdadeiro, constrói não só uma rua, inesquecível, mas uma cidade, impressionante pela diversidade, e um mundo, em colapso evidente. Deveríamos já conhecer essa história, mas é como se fosse contada pela primeira vez. O escritor fictício derrama-se em literatura verdadeira enquanto tenta compor a peça ditada pelos interesses financeiros. Um outro romance irreal entra pelas frestas da sua escrivaninha como um fantasma que se desdobra em mistérios.

Poderia ser uma história sem surpresas, mas essa é a parte principal da leitura. O morto que continuou dando comida aos pobres, a irmã defunta que visita a casa materna, a neve seca iluminada em meio ao ermo de uma viagem de trem convivem com seus opostos: os prazeres com muitas mulheres, os restaurantes de mesas fartas. As limitações religiosas chocam-se com o deboche, a modernidade penetra as escrituras, o Mal rola na cama com a Inocência.

Ao assumir suas origens, o escritor que quase caiu na tentação do dólar recompõe a humanidade que perdeu, mas descobre que a vida são páginas de um livro que jamais voltam para trás. As cenas continuam lá, escritas, mas não podem ser revisitadas. O universo simultâneo cerca Singer com suas garras de ferro e só há um jeito de escapar de tantas fronteiras: o deixar-se levar pelo inevitável e assim descobrir que não há respostas quando a consciência está desperta.

O que fica não são as perguntas, mas um livro que abraçamos porque não mente. E que deveria ser sobre uma cidade ainda viva onde podemos aportar. Mas sabemos que jamais chegaremos à Varsóvia recriada por Singer. Ele nos diz com todas as palavras que isso é impossível. A única coisa que nos resta é entender o poder da literatura, a que serve a refeição depois de nos mostrar a feira. E que acende a vela sem chama suficiente para resistir ao sopro misterioso do divino.

26 de agosto de 2005

O PAÍS PERDIDO

O PAÍS PERDIDO

Nei Duclós

Abro mão de ti, Brasil
Tuas praias imundas me expulsaram
Teus náufragos me caluniaram
Teus revolucionários me entregaram
Teus ricos te deram de bandeja

Abro mão de ti, Brasil
Não por querer outra nacionalidade
Estou farto de nação, depois de ti
Não por querer outro tratamento
Perdi a esperança de qualquer cidadania

Abro mão de ti, Brasil
Embora saiba que sempre serei teu
Porque me marcaste a fogo na costela
Porque desenhaste meu gesto impuro
Porque fizeste minha cama amarga

Abro mão de ti, Brasil
Cansei da soberba soberania
de escravos travestidos de senhores
De ficar de prontidão na fronteira
Da força inútil do teu braço

Abro mão de ti, Brasil
País aberto a todas as violências
Fechado a toda competência
Longe da própria grandeza
como avião encalhado na lama

Abro mão de ti, Brasil
Não há farol para o abismo
Não há grito que traga socorro
Não há dor que conheça limite
Não há sombra que desista

Abro mão de ti, Brasil
Porque eu jamais deveria ter vindo
Sobro em todas as instâncias
Insisto em portões fechados
Cansei de bater palmas no vazio

Abro mão de ti, Brasil
Decidi ser livre do teu berço
Sou desterrado sem passaporte
Preso nas tuas grades eternas
fui jogado fora do teu destino

Abro mão de ti, Brasil
Talvez sem mim algo aconteça
A vitória enfim mostre a cara
O corpo perdido na guerra
seja resgatado em alto mar

Serás então um outro, Brasil
Pois livre da minha presença
Poderás colher teus frutos
E semear em paz teu futuro
Farto da fome que me levou

Todos voltarão para ti, Brasil
Menos eu e minhas palavras
Menos o poema e sua carga
Menos a vontade que me ataca
toda vez que te pisam, Brasil

RETORNO - Esta declaração, pelo avesso, de amor pelo Brasil foi publicado originalmente em julho de 2003 pela revista Sagarana, traduzido para o italiano por Julio Cesar Monteiro Martins e uma equipe da Universidade de Lucca, Italia. Foi escrito antes da atual crise. Considero atual. Muito antes do desencanto que toma conta da nação, a poesia já estava de prontidão. Só espero que não levem ao pé da letra e nem leiam apenas as primeiras estrofes. É preciso chegar até o fim, quando reafirmo o que sou, um combatente do Brasil Soberano, que não tolera que seu país seja pisoteado. Outro detalhe: as praias imundas a que me refiro todos sabem quais são. Naturalmente, não são as águas que banham esta parte da ilha de Floripa.

25 de agosto de 2005

A ECONOMIA NÃO PODE




Você pode derrubar presidente, mas não toque na política econômica. Esta foi formatada fora das fronteiras e serve para tungar a população e adonar-se do território nacional (mantendo a nação, pois para quê eles vão querer gerenciar mato e praia e serra se tem caboclo aqui que faz isso?). Você diz o que quiser em rede nacional, mas jamais implique com o pagamento dos juros da dívida externa, do uso do solo para plantar o deserto verde da soja, da exportação de proteína enquanto a população se mantém sobre gambitos, feixes de gravetos que até parecem pernas humanas. Escreva o que bem entender, mas jamais impeça que o país sirva de brinquedinho multinacional, que concentre toda a renda na mão de poucos (dá menos trabalho para a expropriação do país, e ainda se mantém uma casta cruel no domínio na situação).

CADEIRAS - Deixe que as denúncias façam a dança das cadeiras no Parlamento e no Executivo, isso não importa. Podem desviar recursos à vontade, tudo isso é troco diante do que se leva para fora. Convoquem o cachorrinho da madame, a madame, o ajudante-de-ordens para depor, mas não toquem no doleiro, que dá problema. Tudo isso vai passar, o PT acabou, o PDT agora tem mais chances, o tucanato poderá voltar ao poder total, mas o que vale é que as veias continuam abertas. Não estanque a hemorragia, nem a denuncie. Fique na sua, brasileirinho. Continue dançando. Participe das gincanas homens versus mulheres em horário nobre. Equilibre ovo na testa, melancia no alto da cabeça. Se vira nos trocentos. Não distribua a renda de jeito nenhum. Onde houver qualquer indicio de sobra, de poupança, faça uma campanha de solidariedade e tire do bolso dos trouxas o que eles poderiam economizar. Todos se sentem culpados. Muitos intelectuais resolveram calar o bico, obedecendo assim aos ditames da situação. Parece tudo muito estranho, mas é assim que deve ser. A verdade é que não se produz pensamento por aqui. Quase todos pensam conforme regras estipuladas. Esse sistema granítico de pensamento gerou a ilusão Lula, que faz parte da linhagem histórica das ilusões da esquerda. Cinco são os pecados da esquerda: não participar da revolução popular vitoriosa de 1930, tentar dar o golpe de estado em 1935, radicalizar artificialmente a imagem do governo democrático de João Goulart em 1964, optar pela guerrilha na época do regime militar e colocar todas as fichas no PT e em Lula. A esquerda colhe o que plantou.

OSTRACISMO - Coloque essa grana preta em quem lançou livro com todo o apoio milionário do marketing e deixe o resto dos escritores no ostracismo. Para isso servem os estímulos, as premiações: para reiterar o Mesmo, mantendo todos sob o jugo da economia do arrocho. Enquanto isso, vemos o testa-de-ferro da política econômica com seu sorrisinho anódino, completamente blindado. Ele tem apoio da oposição, e do poder de verdade. Autoridades vão para os Estados Unidos dar explicações, fazer o relatório do butim, para que não haja ruído. O secretário de Tesouro dos gringos vem para cá dar o recado: brinquem de democracia, mas continuem fabricando riquezas para nós. E liberem mais mulatas e quadris rebolantes. O mundo precisa do Brasil, o rabo do mundo. Cuidem para que essa brincadeirinha de criança, os blogs, não ameace esse sistema perfeito. Onde já se viu blog com um milhão de visitas por mês como o do Noblat? Olho neles. E reassumam logo o poder, passou da hora. Usem o janotinha com cabelinho igual ao que se usava na República Velha, o ocludo irado que chama presidente de idiota, o entregador de país que posa de rei da cocada preta, o governadorzinho que se deixa filmar de chapéu de operário em construção visitando obras e apontando para o horizonte. E não deixe escapar aquele prêmio. Frete um jatinho e fique surpreso que exista alguma coisa nos grotões. E volte imediatamente para o banho de mar. Não importa que ele esteja cheio de merda.

FUTURO - Não esqueça de proteger a aposentada que por dois anos filmou o crime da sua janela, com crianças se drogando o tempo todo. Elogie sua coragem, prenda os suspeitos de sempre, mas permita que continue a bandalheira. O Brasil não pode dar certo. Se der, o que será dos países poderosos que vivem à custa dos erros de Pindorama? Sem nossa porção do planeta arduamente conquistada por gerações, eles não terão futuro, já que não possuem natureza, água. Eles são o deserto, prenda minha.

RETORNO - 1. A revista Bestiário publica meu conto O Cotovelo de Vidro. É a estréia, fora dos limites dos sítios pessoais do autor, do Cabo Adão como personagem literário. 2. A revista Maquina do Mundo publica dois poemas meus, Caixa Coral e É bom o mar. Eles fazem parte do meu livro ainda inédito, Partimos de Manhã, que aguarda confirmação de uma editora.

23 de agosto de 2005

PROGRAMAS DE AUDITÓRIO REPRESENTAM O ELEITOR




Assim por cima, contei uns dez programas de auditório na televisão brasileira: Faustão, Raul Gil, Gilberto Barros, Tom Cavalcanti, Silvio Santos, Gugu, Sergio Groissman, Hebe, Ratinho, Márcia Goldsmith e por aí vai. O que significa isso? Fórmula que dá certo no Ibope? Acredito que não. O programa de auditório é fundamental para a ditadura civil. O auditório representa o povo. É uma claque comprada, convocada, submissa, manipulada, subornada, iletrada, ou seja, é tudo o que a tirania quer da população, para poder desvirtuar o direito sagrado do voto. O que fazem as campanhas políticas? Usam o mesmo esquema. A imprensa informa que as garotas de programa (olha a palavra aí de novo) eram contratadas, entre outras coisas, para rebolar nos comícios, para atrair gente com suas performances e curvas. A claque contratada para sacudir bandeiras e gritar em praça pública é depois reproduzida nos noticiários e no programa eleitoral gratuito. Fica a representação pela coisa em si. O povo no fundo não se manifesta (apenas engrossa um esquema já definido, quando participa). O povo é espectador e vota útil, que é o novo nome do voto de cabresto. O eleitor tem assim a sua arena pseudodemocrática: o programa de auditório, que laça o rebanho e ajuda a levá-lo para o matadouro.

CATEQUESE - É por isso que todo apresentador de programa de auditório é um catequista. Ele convoca o rebanho, coloca-o naquele espaço de manipulação, apóia-se na claque e olha firme para as câmaras. É o momento de passar o recado. Vejam Faustão, por exemplo. Ele adverte, ele catequisa, ele justifica, ele orienta, ele ensina. Suas expressões definitivas, como o já manjado mais do que nunca, significam a palavra final sobre todos os assuntos. Por décadas, Hebe fez campanha para o Paulo Maluf, olhando firmemente nas câmaras e enviando beijos no coração (expressão imitada por tanta gente que chega a assustar). Gugu Liberato é uma contrafação semelhante: ele usa os expedientes mais apelativos e fica com aquela carinha de adolescente tardio, de falsa inocência lambuzada de pancake. Silvio Santos é o autoritarismo que se quer sedutor, impondo caminhos (vem para cá, vem para cá, vai para lá) e tendo certeza que compra todo mundo acenando com a falsa ascensão social via jogo lotérico. No tempo em que eu tinha TV a cabo, olhava os programas de auditório que ensinam as crianças a fazer sexo adoidado por meio do encontro fortuito e arranjado. No geral, o programa de auditório usa as frustrações da claque, que representam as necessidades jamais atendidas do povo, para serem saciadas por pão mofado e circo bandido. E tudo fica como está. As empresas patrocinam e a coisa se espalha como uma doença crônica, da qual parece que jamais sairemos. Como sair, se não há oposição?

CABEÇAS - Tenho visto pouco a Ana Paula Padrão e seu noticiário das sete e quinze da noite. É simples: o SBT, aqui onde moro, nem sempre pega na TV aberta. A Globo sempre pega, para isso dispõe de três canais, pelo menos na minha TV. A Record também costuma sair do ar, a não ser na madrugada, quando inocula o vírus do fanatismo e do obscurantismo na população despreparada e assustada. Nenhum programa verdadeiro de arte e milhões de pastores dizendo asneiras por vários canais e programas. Para onde fomos? Para a anti-reflexão, para a anti-arte, para o anti-conhecimento. Fomos para o buraco e nele nos refocilamos. Isso é impulsionado pelo sistema televisivo, onde impera a TV aberta. Quem tem cabo não se dá conta que no Brasil o que manda é o sistema aberto, que atinge os grotões, as periferias, a classe média proletarizada. Nesses territórios longínquos, manipula-se o sinal do jeito que se quer. As estações repetidoras costumam ficar a cargo de poderosos de plantão, jamais na mão de quem poderia mudar a situação. Se me dessem um espaço qualquer na TV, convidaria as maiores cabeças do Brasil para ocupá-lo. Eu nem iria colocar a cara no vídeo. Deixaria rolar. Custaria menos do que meio minuto de anúncio de estatal em horário nobre.

RETORNO - 1. Agradeço à professora Lia Colome que me convidou para participar da homenagem a Donaldo Schüller em Videira, SC, dia 18 de agosto. Meu texto sobre o grande intelectual foi destacado no evento para o filho ilustre da terra. 2. Agradeço ao Cícero Galeno Lopes por me enviar seu livro Viagem, editado pela Movimento e que tem prefácio meu sobre a obra do escritor e professor. 3. Agradeço ao Mestre Moacir Japiassu por me fazer um convite magnífico relacionado com seu novo romance, que sairá pela Francis. Mais tarde digo do que se trata. 4. Parabéns a Miguel Ramos, que provou mais uma vez ser o maior ator do Brasil ao ganhar o Kikito em Gramado como melhor ator coadjuvante (filme Cerro do Jarau, de Beto Souza, com roteiro que tem a mão porovidencial de Tabajara Ruas), repetindo assim o feito do Festival do Recife. Aguardo as respostas à entrevista que encaminhei para o Miguel Ramos, e para isso conto com a ajuda do poeta Rubens Montardo Junior. 4. Miguel, Taba, Japi, Rubens e Cícero fazem parte da minha lista de os melhores de 2004 ou a dos mais importantes livros dos últimos 15 anos. Minhas listas costumam ser certeiras. O tempo acaba provando. Não há nenhum mistério ou vaidade: é só destacar os grandes talentos excluídos da mídia e pronto, não tem como errar.

21 de agosto de 2005

AMÉRICA: JÁ VIMOS ISSO ANTES




Estou falando da novela global América, não da situação política. Novela? Para escapar dela pague 400 paus de luvas para a Sky (já que a Net não chega onde moro) e mais quase cem mensais e aí terás direito a muitos canais, todos eles com bastante mídia interna, aquele tipo de interrupção sacana que nos lembra, a todo momento, que o próximo programa você não pode perder. Porcaria por porcaria, me submeto à TV aberta, que ainda é de graça. As outras opções são: o Show da Fé e o Gilberto Barros da Band (por que tantas pessoas se submetem a jogos bananas entre homens de um lado e mulheres do outro?) e os horrores dos recordes na Rede Record (vejam, vou arrancar meu nariz, colocar na boca, mastigar e engolir, isso não é espetacular?). Depois do noticiário, faço um passeio pela mente medíocre da autora de América, Gloria Perez, que comete uma série de barbaridades dramatúrgicas.

NINGUÉM PRESTA - Todo capítulo é uma seqüência de cenas iguais às do capítulo anterior (não há um desdobramento do enredo, há uma clonagem permanente, como se a autora tivesse viciado no selecione e copie, o famoso control c/ control v). São elas: as putinhas que se rebolam, as peruas que exploram os maridos, os machões oportunistas, os bailes em todos os cenários (a gafieira no Rio, a dança de salão em Boiadeiros, as dançarinas migrantes de Miami). A cada período (uma semana, 15 dias) outras cenas entram para se repetir. Há cenas cíclicas, aquelas que a toda hora são obrigatórias: todos os peões tiram o chapéu e rezam para Nossa Senhora Aparecida, a sogra que interfere na vida conjugal do filho, a cantriz mulata que chantageia o português dono da gafieira, o casal maduro que troca cornos entre si, os filhos ou filhas sem nenhum respeito aos pais. Ninguém presta em América: a mulher carola no fundo é uma putana, o boa pinta é assassino, a dona de casa pobre é trouxa, o galã é manipulado pelas mulheres, as fêmeas estão sempre no cio, prontas para o sexo disponível e interesseiro e assim por diante. Todo esse festival de redundância é acompanhado pelo vício que existe na Globo de chupar cenas do cinema americano, como aconteceu ontem.

CHUPAGEM - É famosa a situação em que o marido nega o flagrante de adultério, confundindo assim a esposa acusadora que tinha visto tudo. Qual mulher, onde? diz o marido já de pijama sentado no sofá depois de ter sido interrompido em atividade na cama com outra. A esposa insiste, grita, mas acaba cedendo. Na novela, a mulher se faz de tonta (finge que entra na dissimulação do marido) para arrancar grana da situação. Acompanhei de perto uma novela da Globo que era quase inteiramente chupada de Matrimônio à italiana, de Vittorio de Sica. O autor confessava sua admiração pelo grande diretor italiano, mas, neste caso, admiração é uma coisa, honestidade intelectual é outra. Em todos os horários, alguém usa a boutade de Mae West, quando sou péssima fico melhor ainda, ou algo parecido. Os noveleiros globais adoram isso, como se ninguém soubesse, como se tivessem descoberto a pólvora. E não adianta invocar o álibi da citação, pois jamais o crédito aparece. Outra chupada monumental em América foi o fingimento de Ed e Sol, que precisavam saber de tudo um do outro para driblar a fiscalização dos migrantes nos Estados Unidos. Todos viram esse filme, Green Card, de Peter Weir: Gérard Depardieu e Andie McDowell casam por conveniência. Numa das cenas, Gérard pergunta pela menstruação da parceira, causando certo constrangimento. Isso foi completamente copiado em América.

TELESACANAGEM - A difusão maciça e longeva da falta de escrúpulos dos brasileiros é uma das influências mais nocivas das novelas. Há incentivo para que a vilania vire heroísmo, para que as pessoas usem o sexo para proveito financeiro, entre outras ações sacanas. Esse esquema de corrupção em massa é para submeter a população à tirania que nos governa, para transformar todo mundo em consumidor passivo dos produtos culturais fora de qualquer intenção artística verdadeira. O pior é que vem acompanhado de pregação politicamente correta, que é o merchandising da moralidade rasteira e de direita. O que quer dizer tanta catequese? Que a ditadura, o arrocho financeiro, a miséria e a exclusão são exclusivamente culpa nossa, e não dos governantes e das elites em geral, especialmente as que detém os meios de comunicação. Depende, portanto, de nós, para que a situação mude, ou seja, nós somos culpados por tudo e se as coisas não vão bem é porque você, caro telespectador, não passa de um safado que vive acomodado em seu sofá. Seja bonzinho e telefone para encher as burras dos gestores da campanha politicamente correta. Eles sabem o que fazer com o seu dinheiro.

RETORNO - 1. O uso da palavra "zero" chegou ao paroxismo e perdeu o sentido. Segundo a Folha, o secretário de Transportes e Terminais de Florionópolis, Norberto Stroich, disse que restaurar o Mercado Público incendiado na sexta-feira é "prioridade zero". Ou seja, nenhuma prioridade. 2. Na mesma edição da Folha de sábado, a matéria de capa do caderno Mundo sobre os hispânicos nos Estados Unidos diz que os grupos minoritários "perfazem 50,2% da população do Texas". Diz a reportagem, traduzida, de Michael Forsythe, da Bloomberg: "as minorias são mais numerosas". Para anarquizar com a matemática e a lógica é que se traduz reportagens estrangeiras? E o pior, se publica! Enquanto isso, muito repórter de primeiro time mata cachorro a grito aqui no Brasil. 3. Continua a campanha de atribuir o pior de Lula ao Getúlio Vargas. Agora foi a vez de Gesner de Oliveira, na mesma Folha, fazer comparações entre o grande estadista e a contrafação que ocupa hoje o Palácio. 4. Virou vício: numa reportagem sobre o 24 de agosto, que ainda não chegou, um jornal informa que Getulio implantou a ditadura do Estado Novo de 1930 a 1945. É preciso ler um pouco de História. De 1930 a 1933, foi o Governo Provisório: vastas manifestações de rua, eleições diretas (com o voto da mulher pela primeira vez no Brasil), criação de associações políticas. De 1934 a 1937, governo eleito pela Assembléia Constituinte, com liberdade total. De 1937 a 1945, aí sim o Estado Novo. E de 1950 a 1954, governo eleito livremente pelo povo.

20 de agosto de 2005

O MERCADO PEGA FOGO




Ao chegar no Terminal do Centro, de Florianópolis, vi e ouvi uma passageira virar-se, escandalizada, para outra e exclamar: "O mercado? Nããão". Pois estava em chamas, desde cedo, o Mercado Público da cidade, que nasceu há mais de um século à beira mar, naquele mesmo local onde passo diariamente para ir até a redação (o mar foi empurrado bem para trás, por meio de um aterro que vi nascer aqui mesmo, quando morava no bairro de Itaguaçu, em 1972). Uma fumaça preta (fruto da combustão do plástico vagabundo dos produtos chineses vendidos no local) subia ao céu e enevoava toda a região. Exatamente no mesmo dia em que o outro mercado, o financeiro, punha fogo às vestes com as declarações do advogado que entregou o esquema de propina em Ribeirão Preto, na época em que o ministro Palocci era prefeito. O dólar subiu, a bolsa caiu. Como só entendo de jornalismo, e não de economia (ou de qualquer outro assunto, já que isso está a cargo das fontes) não sei bem o que isso significa. Como perguntador profissional (o que faz parte da minha profissão) só tenho a declarar o seguinte: por que a economia brasileira do governo Lula é considerada "sólida"? Não cansam de repetir isso em todos os noticiários de TV. Mas basta ligar o rádio e lá está um locutor dizendo o óbvio: de que dependemos da economia estrangeira, que nosso desenvolvimento é fajuto, e deveria voltar a ser endógeno, de dentro para fora.

OPORTUNIDADE - A indústria chinesa é o vírus oportunista que se instala no organismo debilitado da nossa economia. O belíssimo Mercado de Floripa, que perdeu metade das suas instalações no incêndio de ontem, foi invadido pelas quinquilharias produzidas pela grande ditadura do trabalho escravo. Atulham-se nos corredores milhares de porcarias feitas de material de última categoria, com exceções, claro, mas dá para ver do que se trata. No lado melhor do Mercado, acontece exatamente o contrário: os frutos do mar, a convivência cordial, os bares e os pequenos armazéns de alimentos variados, fazem a festa de habitantes e turistas. Procuro passar sempre por lá. Essa parte maravilhosa deveria ser ampliada para todo o local, expulsar o comércio feio que se abrigou nas paredes centenárias. Deveriam fazer como em São Paulo, onde o mercado público foi reconstruído com a mesma concepção de origem, mas enriquecida de novos instrumentos para adequar as instalações às demandas atuais. Essa é a oportunidade. As autoridades acordaram para o grande estrago e dizem que vão reconstruir. Pois deveriam fazer direito, ou seja, transformar o Mercado, em toda a sua área, numa grande vitrina do esplendor de Santa Catarina, terra abençoada para todos os sentidos, especialmente a visão e o paladar.

CRISE - Tentaram blindar Palocci, e parece que vão continuar tentando manter essa operação, mas a crise já estourou as comportas. Como disse o vice Alencar, antes de também ser apontado no esquema de venda de apoio à chapa presidencial de 2002: está tudo muito esquisito, vaca estranha o bezerro. A bonomia coronelista entra em cena com o coringa da ditadura civil, José Sarney, que sem provas sai a campo para defender o governo (assim como não há provas suficientes para acusá-lo). Se não existe comprovação de que o presidente é inocente ou culpado, então devem ser suspensas tanto as manifestações de apoio quanto de repúdio. Vemos os manifestantes subsidiados irem a Brasília dizer para não mexer em Lula, ao mesmo tempo em que o velho cacique do antigo partido da ditadura, o PDS, vai para a tribuna defender o quê? Nomes à parte, já que a imprensa não é a Inquisição, nem deve incendiar ninguém que não mereça de fato, notamos que sempre está em jogo algo nada imponderável, o butim. Porque é disso que se trata: do butim. Quanto cabe a cada um. Quando não mais se entendem, partem para a briga. Essa é a crise: as quadrilhas não se entenderam no reparte. Levam, com o racha, a nação para o buraco. Enquanto isso, o presidente blindado exibe seu cinismo, seu sorriso manco que sempre esteve com ele, sem medo de ser feliz. Com toda essa mordomia, quem haverá de ter medo?

DÓLARES - A economia está "sólida", por enquanto, porque alegremente os dólares são remetidos ilegalmente para o Exterior. Com os bolsos cheios, os plantadores de notícias se regozijam no noticiário. Essa grana deveria ficar no país, para fazer divisas e deixar a nação com força de negociação, especialmente na dívida. Quem tem a bufunfa na mão não precisa ceder em nada. Basta fazer como Celso Furtado mandou: moratória negociada e pagar tudo em poucos anos, atacando o principal da dívida e deixando os juros escorchantes de lado. Já pagamos em onze anos quase um trilhão de dólares de juros. Por isso o país está em pandarecos. Não se constrói mais nada, nossa infra-estrutura está sucateada, com as mesmas praças, ruas, calçadas e estradas, tudo indo para o beleléu. Solidez para quem tem dinheiro dos outros para gastar. Assim qualquer um pode ser ministro da Fazenda.

19 de agosto de 2005

A VENDA DO PERDÃO



Os culpados pedem perdão, mas não perdem a pose. Ao se insurgir contra a venda do perdão (as indulgências), que arrecadava dinheiro para a Capela Sistina, Lutero fundou uma nova igreja. O protestantismo dos imperialistas costuma andar de mãos dadas com a falta de perdão. As bombas de Hiroshima e Nagasaki foram retaliação ao massacre promovido pelos japoneses contra a marinha americana. Em Os Imperdoáveis (Unforgiven) Clint Eastwood deixa bem claro: não vai pedir perdão para seus crimes e virá matar todos os que tentarem prejudicar suas clientes. Virá sempre, até o final dos tempos, pois para ele e sua cultura nenhuma água ou sal lava um pecado. Por isso a polícia britânica está contra a parede: errou, está comprovado que mentiu, assassinou a sangue frio, pelas costas, covardemente, um inocente, e o que fazer com isso, já que não há perdão fora da igreja católica? Eles poderão tentar comprar o perdão, mas as seqüelas políticas desse gesto poderá custar até o mandato de Tony Blair, que é uma estátua de gelo com consistência de cera. Quanto custa o perdão ao governo que escancarou sua corrupção? Não custa nada, só nos custa a vida, como diria Gilberto Gil (que, como nos faroestes antigos, está quieto demais).

COERÊNCIA - O pedido de perdão não pode ser a reação imediata ao flagrante. Não pode ser induzido, é uma postura assumida conscientemente e implica arrependimento e uma promessa: o de não repetir os erros. Não se pode pedir perdão pelo erro dos outros, como fez Lula (já que foi traído, é sinal que é inocente, a culpa está fora dele). Não se pode pedir perdão e imediatamente liberar um bilhão de reais para os currais eleitorais. Não se pode pedir perdão, como fizeram Collor e a senhora Miriam, a ex que implodiu a candidatura petista na véspera das eleições de 1989, sem incluir o responsável pela idéia, o marqueteiro que bolou a tramóia. Não se pode pedir perdão sem devolver o dinheiro roubado. Não se pode pedir perdão e continuar gargalhando, voltar a freqüentar a noite, simplesmente sumir do mapa e arranjar gorda aposentadoria. A quantidade de perdão que está no ar fede de longe. O pedido de perdão do PT não será levado em consideração se o partido não fizer um balanço dos estragos provocados pela própria arrogância. Quis colocar todos os ovos da oposição na mesma cesta (Lula) e quando o governo foi para os ares, toda a esquerda foi junto. Não há Psol que dê jeito (aliás, a voz estridente da filha do Tarso Genro e sua argumentação tosca midiática está enchendo). É preciso reconhecer em outros vetores políticos a mesma coerência e espírito de luta, e não apenas nas campanhas eleitorais. A postura de rei da cocada preta com cara de nojo ao lado de aliados, como fazia Lula nos palanques, mostra o que é: excluir quem veio de longe e tem algo a dizer e a fazer. Peçam perdão ao trabalhismo, que vocês enterraram, dando força para a ditadura que sempre temeu Brizola.

MODERNIDADE - O que está em cheque no país mais do que atrasado onde vivemos é o conceito de modernidade. Foi para o ralo quando o governo Collor caiu e quando FHC entregou o país para se eleger e depois reeleger. Foi de novo para o ralo com o ex-lider do dito sindicalismo moderno que representa uma facção arrogante que gargalhava do trabalhismo. Foi para o ralo quando todo o discurso da modernidade (ou pós, tantufas) serviu para sucatear as leis trabalhistas (terceirizar é contratar sem carteira assinada, enxugar custos é provocar desemprego e explorar a mais valia e assim por diante). O que impera agora é o obscurantismo. Fiz curso para padrinho um mês atrás para o batismo de uma sobrinha. É obrigatório, senão não batiza. Três senhoras berravam como na Idade Média. Uma delas jurou que um pedacinho do coração de Cristo sangrava numa igreja italiana. Os olhos esbugalhados dela e a voz esganiçada me explodiram paciência. Uma outra dizia, com a voz mansa do pastoreio: "se plantares a semente de laranjeira, nascerá a laranjeira". Nascerá abobrinha, grunhia eu, enquanto um vento encanado gelava o templo ainda inacabado. Onde foi que deixei perdida minha face?, perguntou um dia Cecília Meirelles, a poeta que nos falta hoje e nos assiste sempre.

18 de agosto de 2005

OS FALSOS MISTÉRIOS DA CRISE




Várias pessoas se dizem ameaçadas de morte porque possuem informações valiosas sobre os escândalos da política e da economia. Como os escândalos estão escancarados na mídia, com destaque para os protagonistas, não entendo o mistério. Se a pessoa está sendo perseguida porque entrega ou pode entregar tudo o que já está visto e dito, então os perseguidores estão absolutamente explícitos, ou os poucos livros policiais que eu li nunca fizeram sentido? Os que ameaçam devem estar todos os dias em frente às câmeras, depondo, explicando, entregando, ou não? Ou existem outras pessoas, que nada tem a ver com quem aparece, que ficam na penumbra, e fazem os telefonemas a mando de mafiosos enigmáticos, por motivos ainda mais obscuros? Se o doleiro diz que enviou dinheiro ilegal para todo mundo que pediu, e está correndo risco de vida (já que morte não corre risco), e a lista dos que enviaram as remessas é conhecida desde o escândalo do Banestado, então quem estaria ameaçando de morte, hem, hem? Mistério. É uma aventura quântica. Vivemos num mundo de probabilidades, em que as pessoas entram por um túnel e saem sabe-se onde. Os fatos, as evidências, não se costuram. O que há é uma avalanche de palavras, que caem em compartimentos estanques, que jamais se tocam.

SINTONIA - Esse ambiente de fantasmagoria faz com que duas almas gêmeas jamais se toquem nas investigações. Uma é a publicidade oficial, outra são os veículos de comunicação. Se as campanhas foram super-faturadas, é sinal que eles foram super-faturadas não só na produção, mas principalmente na veiculação, que é onde a onça bebe a água. Então existe um monte de campanhas de estatais e governos e só as agências estão envolvidas? E as televisões, as revistas, os rádios, os jornais? Numa campanha, que eu saiba, entram os custos da veiculação. Quem paga é o anunciante, mas quem se encarrega é a agência (que morde os oficiais 20 por cento, se é que continua tudo como antes). Num plano de mídia entram tantos milhões para veicular no espaço tal. Isso é aprovado por todos. Se há super-faturamento, então a mídia está envolvida, já que forma com a publicidade vasos comunicantes. Ou existem per si, em separado? Agora entendo porque faz tanto sucesso a bobagem que diz: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Adoram repetir essa asneira, que ouvi pela primeira vez na Band, na época áurea do canal do esporte. Foi dito na brincadeira, para ilustrar uma argumentação. Virou lei. Claro: é preciso separar a mala de um lado e o presidente do outro, a cueca do real, o deputado do irmão líder de partido. Até o Valdemar Costa Neto entregar o acordo que envolveu o vice-presidente, José de Alencar beneficiava-se desse processo de decantação da realidade, favorecido por uma mídia de mil cabeças. Estava quieto, entrou na roda.

FURO - A mídia não faz sentido porque raciocina de maneira estanque e separada. A reportagem corre à revelia da análise (nos pontos importantes, não no marketing interno), a edição de hoje está desconectada com a de ontem. As informações sobre o acordo com o PL já tinha sido veiculado pela Cartacapital. Virou furo da revista Época dois anos depois. Os interesses manipulam esses descaminhos, mas é a fronte bipartida do pensamento que faz isso acontecer. Uma das piadas recorrentes do velho Pasquim precisa ser revisitada: raciocinar em bloco, conceituando o tempo todo. Era um deboche contra o falso pensamento acadêmico, que guiava-se por jargões. Serviu para ilustrar a falta de costura de idéias e conceitos. Quem é a pessoa mais quieta do Brasil hoje? Paulo Maluf, claro. Ele vai ressurgir, glorioso, o homem que faz e foi acusado de roubar. Preparem-se. A direita está só esquentando os tamborins. Enquanto isso, a esquerda desanda em várias frentes. O surgimento do PSOL na maré alta da crise fica parecendo oportunismo de quem embarcou na canoa furada e foi retirada dela sob protestos. A briguinha entre Tarso Genro e José Dirceu é o caciquismo petista de costas para as necessidades populares (eles acham que não).

PREJUÍZO - A propaganda dos partidos cheira mal de tanto revanchismo. Todos são isentos, inocentes. Fingem uma infantilidade ideológica, quando são, todos, decanos do pragmatismo. Tudo se negocia em política, só que negociar entre nós é uma espécie de vialania. Não se fazem negócios sem culpa. Para ter bastante culpa, dê-lhe corrupção. As negociações poderiam ser adultas, honestas e práticas, mas tudo se transforma numa bandalheira só. O que vai ficando são as caras lavadas. O presidente que se mantém firme no seu asneirol, se fazendo de vítima traída, as lideranças que procuram inocentar o executivo para tocar o barco à vontade da freguesia, o bilhão de reais liberados para os currais eleitorais e por aí vai. Situação favorecida pelos falsos mistérios, pelo mosaico de coisas dispersas. Parece aquele texto de famoso jornalista dedicado à análise econômica: cada frase era tranqüilamente entendida por todos, o que não fazia sentido era o conjunto. Vivemos num país onde a verdadeira economia é a informal, mais caixa dois, mais corrupção, mais dinheiro do narcotráfico. A outra economia, a paralela, onde vivemos com nossos salários, é uma besteirinha que sustenta a sacanagem toda. Por isso não dá para deixar as coisas transparecerem com alguma lógica. Dá prejuízo.

HUM...- Ameaças de morte? Quem será? Mistério!

15 de agosto de 2005

O POVO NA RUA




As manifestações previstas para esta semana inauguram a participação de um protagonista que ainda é um enigma, o povo. O núcleo do drama não é a intensidade dos que irão gritar contra ou a favor do governo. Mas sim se essa mobilização, se houver, servirá ou não para o estopim de coisas mais perigosas. O tecido social, já rompido na prática pelo aprofundamento das diferenças de classes, poderá manifestar seu estado deplorável se houver insumo suficiente para a desesperança incorporada nas ações de rua. O que resta de costura nos grupos que ainda mantém uma identidade (partidos, sindicatos e mesmo a chamada maioria silenciosa) poderá fazer pender a balança para um ou outro lado. Na Internet, fala-se abertamente em golpe militar. Pelo que se sabe, as vivandeiras de quartel estão ou imobilizadas ou inexistentes. O deputado Fernando Gabeira, que com a crise recuperou sua lucidez, anuncia o debate de cenários possíveis a partir desta segunda-feira, entre os políticos não envolvidos com os trabalhos das CPIs. Diz Gabeira que procurar saídas tornou-se mais fácil, pois hoje nem se precisa debater a conjuntura, escancarada nos depoimentos online. Acho um equívoco. Não existe testemunha ocular da História, já que a História não pode ser vista a olho nu. O que está posta na mesa é nossa sobrevivência como sociedade em busca da convivência democrática, a legalidade das instituições e a continuidade, pelo menos na superfície, de um país pacífico que aprende a lidar com suas contradições. Isso exige produção de pensamento e ação estratégica preventiva.

HISTÓRIA - O que diz a História? O maior perigo é cairmos no anacronismo, ou seja, ver o passado com os olhos do presente. Mas o Brasil oferece farto material de estudo e situações similares. Vimos como um presidente, no atual regime, não pode eleger-se sem que tenha à mão recursos milionários e composições políticas que extravasam os limites das propostas. O problema é que todo exercício da presidência, entre nós, é uma continuidade das campanhas eleitorais. Os adversários derrotados querem o sangue dos vencedores, e têm conseguido. Foi assim com Getúlio Vargas, jamais perdoado por sua vitória nas urnas, e traído por seus assessores da área de segurança, que teve de arrostar o suicídio para ter voz no desfecho da crise. Foi assim com Collor de Mello, que no depoimento de domingo no Fantástico reconheceu que só não cometeu suicídio porque tinha prometido a Brizola não repetir o gesto de Getúlio. E está sendo assim com Lula, respingado pelas denúncias que inundaram seu governo de lama. As presidências que conseguiram terminar os mandatos são todas conservadoras. O Marechal Dutra, que segundo Darcy Ribeiro governou com os udenistas, Sarney, que é um demiurgo das adaptações políticas, FHC, que deu de comer a quem tinha fome de riquezas. Quem esteve identificado com qualquer tipo de ruptura (Vargas com o trabalhismo, Collor com a abertura, Lula com as reivindicações populares) são colocados contra a parede. O Brasil não encontra equilíbrio, dentro da legalidade, entre tradição e ruptura. Isso é fonte permanente de retrocesso.

HERÓIS - A morte de Arraes na maré alta da crise revelou algumas forças poderosas do atual momento. Em primeiro lugar, como notou Urariano Mota em seu artigo no La Insignia, a identificação total com o povo que o idolatrava, sinal de que uma vida dedicada às necessidades populares se foi para sempre. E não porque, com Arraes, pela primeira vez as pessoas pobres tiveram acesso ao rádio de pilha, como notou, toscamente, o presidente Lula no velório (ele acha que o povo é mendigo, não tem grandeza). Mas sim porque Arraes representa uma linhagem de políticos dedicados à causa nacional, e que por isso foram perseguidos e imobilizados. Outra força revelada foi a da existência, entre nós, de pessoas com real valor, ou seja, o Brasil tem capacidade de produzir homens públicos memoráveis, o que pode nos libertar dos grilhões da mediocridade vigente. O encontro (sem cumprimentos) entre José Dirceu e Caetano Veloso na madrugada diante do corpo presente, como conta Noblat no seu imprescindível blog, mostra dois vetores contraditórios da mesma geração. Dirceu encarna a pobreza cultural dos militantes de 68 que queria tomar o poder, mas eram conservadores na estética e na política, exatamente a denúncia de Caetano num festival de música. O pranto de Caetano diante do corpo presente nos devolve também o artista que rompeu e ampliou as comportas da música popular. Vê-lo chorando é lembrar o quanto foi importante nos anos de chumbo, quando sua palavra, seu som e seu exemplo eram nossos companheiros de estrada. Não se trata de um revival. Mas a revelação (mais uma ) de que os grandes artistas estão vivos e podem ser fundamentais nesta quadra de incertezas que atravessamos. Precisamos da transcendência da cultura para decifrar o enigma. A vida do país é importante demais para ser deixada apenas para os políticos.

POEMA - Do meu livro Outubro: "Ao Brasil tenho um recado: estou vivo, entornando caldo, na mesa comum, com as mãos em brasa. Dentro da noite, escuto a charanga da ressurreição, do parto".

14 de agosto de 2005

O PAI, SEGUNDO MARCO CELSO VIOLA

Graças a daniduc, que pesquisou nos meus arquivos em Sampa e resgatou o único exemplar que dispomos de Tombam os Primeiros Homens nos Trigais (mimeografado, 1969), pude enviar para o grande poeta oculto seus poemas da juventude madura, que ele tinha perdido em décadas de clandestinidade da vida literária. Hoje reproduzo um dos mais belos espécimes desse baú ainda vivo, que nos fala de uma época dura, quando a revolução rebentou a rua da nossa geração. Uma homenagem ao pai que ele compreendia pouco na vida diária, mas conhecia como ninguém na hora de escrever um poema.

"MEU PAI

Marco Celso Viola

com suas mãos morenas
cobriu meu corpo num dia de inverno
olhei-o como se olha um estranho
por que me cobras, senhor?
e ele sem me ouvir
doou-me o pão com que cresci
mastigou ferro com seus dentes gastos, estragados
para me fazer homem

nunca conheci palavras de ternura para
dizer-lhe
comecei meus primeiros passos fazendo inimigos
ele com sua voz calma me acautelava
com sua tranqüilidade de velhas batalhas

que nada!
depois de ouvir palavras mansas
eu virava nossa miserável mesa de jantar
Quando fugia levava tudo que tinha nas costas
deixando milhares de coisas espalhadas em nosso assoalho
de madeira
e ele me olhava com seus olhos grandes e negros
murmurando qualquer coisa que eu não escutava."

Não resisto e também publico um clássico da nossa literatura, o poema em que Marco Celso Viola transforma-se em poeta maior:

"MEUS MOTIVOS

Marco Celso Viola

Estou cansado
hoje especialmente estou cansado
as paredes desta casa como fortaleza
comprimem meu corpo

hoje eu parei
como para um trem numa estação
e recolho mais passageiros
preciso de mais passageiros

tenho andado de fábula em fábula
fazendo de minhas canções românticas o doce parto de nossas raízes

e com isso fiz a minha mulher amada
escrever ausência em todos os cadernos que possuía em sua escrivaninha

e deixei em todos aqueles que me percorreram um vazio
do estádio depois dos jogos
Quando hoje eu devia dar-lhes palavras alegres
não posso
os pastores tomaram seu rebanho de medo
em cima de meu corpo
e tudo isso me dói
como esta falsa ternura que sou obrigado a aceitar
Aqui quando vossos olhos
me vem por inteiro
assim como sou
só lhes posso dizer que creio na primavera a curto prazo
aprendi novas mágicas
que lhes gostaria de ensinar
se não posso agora deixarei em vossos lábios o desejo ávido de meu coração repartido

Eu lhes devo tudo amigos
respeito ternura e raiva
por isso procuro ser sincero o máximo possível
eu cidadão sem nome
que na primeira pessoa do plural
não constrói absolutamente nada
eu cidadão
das cidades distantes
como poderia ser um menino bem educado
se quebrei meu escudo muito cedo
nas brigas terríveis
contra espadas de madeira e aço
se minha escola resumiu-se
na geografia do cais
e do mercado
dos brinquedos roubados
e as verdades abertas nos livros mentirosos que não temi
em ler
joguei futebol com os foguistas e maquinistas
no inverno andei enrolado com meus longos capotes azuis
manchados de fumaça
e agora frente a frente
trago os olhos carregados de horas
e masco a cada minuto a rosa dos ventos
gente! É necessário coragem para crescerem os frutos
vejam que coisa impressionante as árvores florirem depois
de mortas
se hoje estou vestido com a amarga roupa dos fugitivos
espero apenas que prossigam seus passos sem ruído.

Hoje é diferente
eu estou todo verdadeiro
hoje a simplicidade daqueles que defendo
aflora em mim como um país
novo

Gostaria de te dizer algumas palavras amada
se estivesses agora perto de mim
Não há tristeza nem amargura a me rodear
existe uma janela a minha frente que abre a rua
e os amigos como um bando de elefantes
borboletam a minha volta
sinto-me como um pintor de edifícios
que veste um casaco colorido onde outras mãos já percorreram
com estes óculos de simplicidade
que coloquei entre as orelhas
tudo me é possível inclusive ler fotonovelas
Ando-me em outras anatomias
em outras ternuras e alegrias
Alguns fumam cigarros pelas ruas
outros são assassinados
outros se preocupam com números

Eu particularmente
me detenho aqui
com isto que possuo
me dá vontade de abrir a boca e não fechá-la
mais de espanto
Com estes dezenove anos de loucura que tenho no corpo
neste piano desafinado
que carrego no peito
e com ele teimo em dar concertos a cada minuto
desculpem-me se ainda não estou tocando de acordo com a
orquestra
o negócio é lento
companheiro
esta revolução
precisa de armas
estou afinando
minhas cordas aos poucos
se minha extensão territorial
não atinge o necessário
eu me encarrego de desbravá-la
com machado em punho
todas as manhãs
marcharei para o trabalho podando minhas árvores
amassando meu pão
com a mesma felicidade
que me possui agora
nestas palavras
entrando papel adentro
com a nossa energia
que aprendi
desde o início

Amada, companheiros
aqui em mim
é tudo traduzível
os artesãos que possuo
no crânio
estão nesse momento
tecendo
a mais bela roupa
deste continente."

RETORNO - 1. Urariano Mota enfrenta os obituários da imprensa sobre um grande brasileiro em seu texto no La Insignia, Arraes, Urgente, e explica porque os jornalistas erraram a mira. 2. Minha crônica, Visita ao planeta terra, foi publicada neste domingo no caderno Donna, do Diário Catarinense, esplendidamente ilustrada por Samuel Casal e editada por Dorva Rezende.

13 de agosto de 2005

URUGUAIANA DÁ A RECEITA



Como sair da atual sinuca de bico? Vejo numa notícia do Diário da Fronteira, de Uruguaiana, a receita para solucionar o impasse. Transcrita pelo Portaluruguaiana (link ao lado), a história mostra como podemos encontrar, a partir do que temos à mão, um canal para sair do sufoco. Não é a velha fórmula de fazer do limão uma limonada (os ingredientes continuam intactos, sob uma nova forma). Mas sim a de utilizar de maneira diferente os instrumentos que nos cercam. Ou seja: no lugar de ver tudo sob a mesma ótica, e de agir de maneira repetitiva (repetindo assim os erros), instaurar um processo diferente, redirecionar o rumo, transfigurar, alcançar uma nova ordem. Tudo isso é sugerido pelo uso não ortodoxo de uma ferramenta comum, a boa e velha "bomba" de chimarrão. Todo mundo sabe do que se trata: um canudo de metal retorcido, que tem o bocal numa extremidade e um coador fechado na outra. Pois esse utensílio serviu para o salvamento de uma menina de sete anos, que estava ficando roxa por falta de ar. Foi só usar o coador para afastar a língua que impedia a respiração e soprar pelo bocal o ar que faltava. Vamos seguir a história pela versão do jornal local:

"Profissionais do PSF Rural salvaram a vida de uma criança na Barragem Sanchuri, utilizando uma bomba de chimarrão. Uma das equipes do Programa de Saúde da Família - PSF esteve visitando as comunidades de João Arregui e da Barragem Sanchuri, onde realizaram atendimento médico, odontológico e jurídico. A visita que foi acompanhada da presença do Prefeito Municipal Sanchotene Felice, serviu para que os profissionais avaliassem a atual situação da saúde na localidade. Porém o fato que marcou a visita do grupo, se refere ao socorro improvisado e indispensável que os profissionais precisaram fazer.

Conforme relatado pelo secretário de saúde José Maria Argemi, a equipe que contava com o trabalho dos médicos Jorge Schiffner, José Tramunt e Carla Tourem Argemi, passou por um momento de tensão e agonia. Uma mãe chegou ao local de atendimento com a filha desfalecida nos braços, em conseqüência de uma crise após ao almoço. A equipe médica, que prestou os primeiros socorros no local, não conseguiu localizar a unidade móvel da Barragem, tendo que transportar a menina, no carro de uma família da comunidade. Conforme os médicos, frente ao Restaurante da Barragem, a criança faz vômitos, obstrução respiratória, cianose e parada cardíaca. Retirada do carro, é colocada sobre uma mesa do restaurante, recebendo massagem cardíaca e ventilação artificial. Para a ventilação da paciente, foi usada uma bomba de chimarrão, onde a forma curva do ralo da bomba prendendo a língua, serviu para evitar que a mesma obstaculizasse a entrada posterior das vias respiratórias, e o tubo da bomba usado para insuflação de ar e expandir seus pulmões com sopros da boca do médico. Suprimida a falta de oxigenação e restabelecido os batimentos do coração, a criança perde a cor roxa e seus pequeninos lábios e unhas retomam a cor rosada.

Controlada a situação, a menina foi levada para a Santa Casa de Caridade, onde foi atendida pelos médicos Telson Morsh, Raul Vals e Heleno Araújo. A falta de oxigênio em função do improviso imediato não deixou seqüelas neurológicas e a Bomba de Chimarrão é agora integrada aos anais dos atendimentos médicos - nas improvisadas armas em defesa da vida. A criança continua internada na Pediatria da Santa Casa, mas em situação estável e de evolução favorável, pelos boletins médicos."(Jornal Diário da Fronteira)

INSPIRAÇÃO - O episódio nos inspira. Diante de um estado de coma, fou usada a criatividade a partir de algo corriqueiro. A situação política nefasta que nos assombra pede um insight parecido. Será que vamos deixar o paciente morrer e choramingar no velório, como fazem agora petistas históricos, que não cansam de chorar diante das evidências? Insistir em velhas fórmulas - arrogância, desqualificação dos adversários, irresponsabilidade política? Uma das primeiras providências (além das que estão sendo tomadas pela Justiça, a Polícia e as CPIs) é resgatar o respeito ao trabalhismo, que, para variar, já anda de novo na boca dos cachorros. É a vez do trabalhismo, não para ser usado pelos fisiologistas que tomaram a sigla histórica, o PTB, de assalto. Não para reforçar a tese de direita, de que a crise atual foi provocado pelos que queriam uma república sindicalista no Brasil (o velho fantasma que serviu para derrubar Jango, ressuscitado hoje no artigo de Miguel Reale no Estadão). Nem para servir de apoio aos que se dizem desencantados com o PT (aí é que mora o perigo, pois para onde vai o presidente que quer sair do partido que fundou?). Mas sim para reforçar a tese do Brasil Soberano, insuflar ar no pulmão entupido da nação.

MIGUEL ARRAES, PRESENTE - O trabalhismo está ancorado nas leis que promovem a harmonia social, a soberania nacional e as reformas de base que ainda estão para ser feitas. A fusão histórica com o socialismo, nos anos 50, serve ainda para hoje. É preciso resgatar o sentido histórico da democracia brasileira, interrompido em 1964. Vemos hoje do que são feitas as pessoas que se diziam defensoras do povo. Nasceram e se criaram com a pata sobre o país construído arduamente de 1930 a 1964. Hoje pedem desculpas. Desculpa aí, foi mal, hem. Dêem licença. No lugar de chorar, lembrem dos nossos heróis, enterrados pelo povo enquanto as hienas gargalhavam. Darcy Ribeiro, presente. Leonel Brizola, presente. Getúlio Vargas, presente. E Miguel Arraes (que não era trabalhista, mas também um brasileiro com a máxima grandeza, que deu a vida pela nação, e ficou imobilizado pela falsa democracia que nos governa) presente, agora e sempre.

RETORNO - Meu primeiro diretor de redação, Walter Galvani, me envia uma mensagem generosa: "Olá amigo Nei. Obrigado pela inteligência, pela qualidade e pelo acerto da tua opinião de hoje: Sinuca de bico. O meu orgulho de antigo chefe dos estagiários, mesmo aqueles que, graças a Deus, desviaram-se, tomaram outros rumos e foram ser felizes pelo mundo afora...Um abraço." Galvani acaba de lançar seu livro de crônicas, O vôo da palavra, que certamente irá aportar aqui no ermo do Capivari o quanto antes.

12 de agosto de 2005

SINUCA DE BICO



A Confederação Brasileira de Bilhar e Sinuca explica o que é sinuca de bico: situação de jogo em que a bola branca toca ou se aproxima do bico (contorno arredondado no canto, junto às caçapas), impedindo que o jogador atinja outra bola visada, em tacada natural direta. É a situação do Brasil hoje, ou seja, da maioria que votou em Lula e da militância que ajudou a elegê-lo. Caímos numa armadilha, graças ao voto de cabresto, que nada mais é do que o voto útil. Lula foi eleito não só pelas suas propostas e sua biografia, mas porque era o caminho para erradicar o tucanato do poder. Quem viu FHC entregar o país quis vê-lo fora, depois de uma década no poder (contando sua gestão no Ministério da Fazenda do governo Itamar). Havia, antes do depoimento de Duda Mendonça, uma saída para a trama: a de blindar o presidente para preservar a representação das lutas populares. Isso caiu por terra e fala-se abertamente em impeachment. Agora complicou, pois a mídia poderosa está manipulando o noticiário, como aconteceu com o Jornal Nacional ontem, que colocou o fato mais importante do dia (a entrega de Duda sobre remessa ilegal para paraísos fiscais, ordenada pela cúpula do governo) no miolo do noticiário, destacando outros eventos como sendo os mais importantes. Há também o caso da Veja, que mentiu ao transformar um movimento estudantil de Porto Alegre, que era pró-Lula, num ato contra o presidente. Quais os cenários possíveis que poderão resultar desse impasse?

DIREITA - O primeiro é Lula continuar no poder e ser derrotado na reeleição, si se candidatar. Perderá para a direita, guindada à posição de guardiã da moral e dos bons costumes. As outras opções não incluem Lula. A mais óbvia é José de Alencar assumir, compromissado com a direita . Isso se o vice-presidente não for respingado por alguma denúncia, pois do jeito que vai, ninguém escapa. Alencar sobe e se reelege ou não. Um cenário mais delirante (mas nem por isso menos plausível) é a direita assumir o poder via parlamentarismo, com um mandato tampão do presidente Renan Calheiros ou Severino Cavalcanti. Há ainda o velho temor do golpe militar, devido às insatisfações da tropa, mas das Forças Armadas nada sabemos, graças à imprensa, que virou-lhes as costas, e à esquerda, que apostou na vilanização militar, como se a ditadura fosse obra exclusiva da caserna (sabemos que foi de uma parte da caserna e da direita civil, entronizada nos governos estaduais e em parte do Congresso).

POVO - Ninguém sabe o que pensa a jovem oficialidade, ninguém entende de História Militar no país, com honrosas exceções. Um movimento militar só provoca uma pergunta: com quem os militares irão se aliar para gerar uma saída? A direita não precisa dos quartéis, já que está com a faca e o queijo na mão. A esquerda está de mãos amarradas. Diretamente com o povo, uma saída chavista? Impossível, as Forças Armadas não flertam com a esquerda nem com o populismo. Seu perfil é nacionalista, com fidelidade total aos princípios históricos que ajudaram a formar a nação. Homens de palavra, o que se espera sempre deles é a tranqüilidade na tempestade, firmeza e paciência. Poderão, talvez, garantir um mandato do vice-presidente depois do impeachment (se este se concretizar), o que seria uma garantia da permanência do atual regime (que surgiu como desdobramento do regime de 1964), talvez com novas regras, incluindo aí reforma política e mudanças na política econômica. Mas o Império está satisfeito com Lula. Pagamos, em onze anos, quase um trilhão de dólares de juros. Quem vai querer abrir mão de uma teta dessas?

BRIZOLA, PRESENTE - Foi para isso, Brizola, que te anularam e depois te destruíram . Para saquear o país. Tinham medo de ti, pois jamais fariam o que fizeram se estivesses na presidência. Mas não permitiram. Desmoralizaram tua biografia, debocharam do teu sotaque, riram das tuas teses. Uma delas eram as perdas internacionais. Que perdas, se todos viraram modernos, globalizados e eficientes? Para que insistir em coisas antigas, como soberania nacional? Basta uma musiquinha (como diz o Casseta & Planeta) e alguns modelos para fingirmos que somos uma nação. Somos um aglomerado de indivíduos que sonham com uma pátria livre. Para isso dedicamos nossa vida e agora nos vemos diante dos algozes, que nos olham como se fossemos culpados de tudo o que está acontecendo. Eles são poderosos, comandante, eles te venceram. Vencerão a nós, nesta quadra da vida nacional? Nossa têmpera dirá.

JOGO - O jogador se debruça sobre a situação. Sinuca de bico. Olho no temporal, corpo e viagem. Estamos em agosto.

RETORNO - Respingou: escrevi o texto acima antes de saber das declarações de Valdemar da Costa Neto, do PL, sobre as negociações que definiram José de Alencar como vice-presidente. Isso significa crise política profunda. O jogo se define. Qual a saída? Temperança, acordo, sintonia. Ou a elite política encontra uma solução, ou só nos restará rezar.

10 de agosto de 2005

CHAPÉU NAVEGA O CICLONE

Protegido pelo chapéu que ganhei, num aniversário não muito distante, do Delmar Marques, cruzei o ciclone extra plus invernal que se abateu sobre Florianópolis ontem e hoje e que exibiu, em cada palmo do território conflagrado pelos ventos de mais de cem quilômetros por hora e chuva pesada, os cadáveres de centenas de guarda-chuvas chineses. Para isso serve um chapéu de couro: para desmoralizar uma das muitas tiranias do nosso tempo, democratizadas pelo regime de 64, que continua em vigor. Um guarda-chuva chinês não te protege de nada, mas você precisa pagar o pedágio: todo mês você dança com oito ou dez reais para ter um desses troços, que quebram logo ao abrir. Ele faz parte das outras tiranias, também evidentes: juros que te saqueiam o bolso, desemprego que te destrói a auto-estima, fome, violência e filas em hospitais e escolas, que te envergonham. Como o rescaldo de um ciclone, o país exibe o esqueleto da sua ruína, quando aflora, sem máscara, para que servem as agências de publicidade que prestam serviços aos poderes, e para onde vai o dinheiro suado que nos falta. Mas eu preciso contar as histórias de São Paulo, quando havia esperança.

BARRA - Era um tempo de promessas. Acabara de lançar meu livro de estréia e com o dinheiro dos direitos autorais de mil exemplares comprados pelo Instituto Estadual do Livro do meu estado natal, enfrentei a tempestade paulistana, aquele mar de concreto e carros que te atrapalha a visão e te enche de perguntas. Como poderiam saber onde dobrar, para onde se dirigir, se tudo era igual, se não havia um bairro diferente do outro, e se a cidade era limitada por gigantescas auto-pistas de codinomeMmarginais, ponteadas por pontilhões assustadores? Bastava pegar uma rua qualquer para você parar em Cidade Ademar, seja lá isso onde for. Já estivera ali cinco anos antes. Tentara a sorte na megalópole e fui apoiado por Ayrton de Magalhães, o fotógrafo seminal que pela primeira vez escancarou a humanidade excluída da cidade onde foi criado. Ficara na casa dele por alguns meses, mas o esforço resultara em nova fuga, para Floripa, como sempre. Tentara então Vitória do Espírito Santo, novamente Porto Alegre e, desempregado novamente, encarei a barra da Paulicéia outra vez. Lá não me esperava Mario de Andrade, mas eu estava escritor militante e sonhava mais uma vez em viver de literatura. Consegui cravar na Planeta um conto sobre o ET que visita o subúrbio paulista, bate na porta de um cidadão e entabula uma conversa. O alienígena vinha porque fora chamado, pois vira um recado, posto por astronautas americanos na Lua, de que a humanidade estava pronta para recebê-lo. Como o ET não tinha noção de hierarquia, achava que em qualquer casa morava uma pessoa responsável por todo o planeta. Nosso suburbano ficou invocado e depois furioso e despediu-se de maneira abrupta. Esse final quebrou o encanto do conto, segundo Ignácio de Loyola Brandão, e talvez tivesse razão. Mas sempre fui turrão e mantive o conto intacto, no que fui respeitado pelo romancista posto editor da revista.

AJUDA - O outro conto, para o jornal Movimento, era sobre uma visita sinistra de um assaltante a um posto de ajuda aos desesperados. O cara domina a atendente (o conto é narrado na primeira pessoa da vítima) e obriga-a a tratar mal quem pede socorro. O conto também tem um desfecho em aberto, pois não se sabe se o cara mata a atendente ou não. Encontrei Flavio Aguiar, o editor de cultura do jornal, na rua, que me garantiu: é um bom conto, vamos publicá-lo. Com os mirreis arrecadados, fiquei um tempo sonhando que eu era escritor profissional. Mas logo bateu a ressaca e acabei numa redação. Por indicação de Jorge Escosteguy (sempre ele) fui trabalhar na TV Guia, da Abril, sob as ordens de Woile Guimarães, o sargento Guima, mais tarde diretor do telejornalismo da Globo. TV Guia não deu certo. Não foi talvez por eu levar marmita fria (arroz integral com gergelim e dois ovos duros) para um local de classe média estabelecida. Um migrante atraía a atenção geral. Todos me rodeavam quando eu abria a marmita. Eu era o pedreiro das letras. Copidescava Caco Barcelos e Audálio Dantas. Copidescava porque era a Abril: precisava colocar suculentas reportagens em textos de cem meias linhas. Quem me ensinou o truque foi o editor de texto Macedo Miranda, filho, que viera do Fantástico e descendia de um pai escritor, até hoje desconhecido e que foi o primeiro a abordar o futebol num romance.

SAMUEL WAINER - Quando a TV Guia acabou, Woile se achou responsável por mim e me indicou para Samuel Wainer, que me recebeu com desconfiança. Você é editor? perguntou. Menti que sim. Era apenas redator (só virei editor mais tarde, quando Mino Carta me ungiu no cargo). Samuel vinha de uma briga com grandes jornalistas da sua equipe e estava sem ninguém. Ajudei a fazer o fechamento e a edição e ainda montei uma equipe para ele. O jornal Aqui, São Paulo, tablóide, era a primeira manifestação de Samuel depois do exílio.Ele tinha sido o exilado número um, o cara que encabeçava todas as listas de perseguição. O velho mito comentava: Deu certo aquele negócio lá em Porto Alegre, não? Fizeram muito dinheiro. Ele se referia à Zero Hora, que nasceu logo depois do golpe de 1964, e ocupou literalmente (com redação e tudo) o lugar da Última Hora. Samuel se referia ao seu ex-império com muita tristeza. Amargava ainda um exílio do jornalismo que ajudou a transformar (e que mudou para sempre, deixando para trás a glória que o lançou na vida nacional). Naqueles idos dos fins dos 70, fui agraciado com reportagem de página inteira na Última Hora de Sampa (já nas mãos da Folha), com direito a fotaça e título generoso de Poeta do Povo. Só agora, com o caderno cultural Encontro, de Uruguaiana, editado por Ricardo Peró Job e Vera Ione Molina, ganhei idêntico destaque. Depois do Aqui, São Paulo, Scotch (sempre ele) me indicou para a Folha de S. Paulo, para onde fui trabalhar com o Zuba, Antonio Carlos Coutinho. Zuba me colocou lá sem avisar o editor da Ilustrada, o Tarso de Castro. Mas Tarso chegou para mim, com seu jeito franco e poderoso, me apertou a mão e disse que iria dar um jeito. Sem saber, eu estava fazendo História. Quando conto essas histórias hoje, recebo olhares admirados. Mas isso era o normal das redações. Trabalhávamos com os maiores e deles tirávamos as principais lições. Cruzamos o ciclone do tempo vestindo o chapéu da solidariedade e aqui estamos diante do desconhecido, destelhados de uma nação que deveria ser outra, mas que um dia será o fruto de nosso sonho e do nosso suor.

RETORNO - 1. O Pesquisador de Churrascos cometeu novamente. Aproveitando o breu, já que faltou luz na maior parte da ilha, decidi transformar o rescaldo do churrasco de domingo (uma maminha guardada no freezer) numa nova experiência. Dispunha apenas de um saco de carvão e o resultado foi carne crua. Mas uma breve fritada na frigideira com azeite de oliva deu vida a mais essa acometida na arte de assar, com um detalhe: tudo foi feito no escuro, pois chegamos tarde demais às compras de velas, que acabaram rapidamente aqui no norte de Floripa. Churrasco no escuro fritado no azeite de oliva, acompanhado do estoque de cervejas depositado aqui em casa por Rodrigo Schwarz: eis mais uma tentativa e erro do emérito Pesquisador que, no pampa, aprendeu tudo, menos fazer direito uma carne. 2. Ricardo e Vera estão de parabéns pelo Encontro, que já teve sete edições. 3. Cícero Galeno Lopes escreve agradecendo sua inclusão na minha lista dos 15 melhores de literatura e me avisa que está me enviando seu novo livro.

9 de agosto de 2005

A PALAVRA DE DARCY RIBEIRO

Cheguei em São Paulo pela segunda vez em 1976, depois de ter passado pela cidade amada uma breve temporada em 1971. Na primeira fase, fiz frilas para veículos como o Jornal do Investimento, editado pelo minucioso e rigoroso editor Celso Ming. Ele simplesmente debulhava cada texto, eu reescrevia, e era publicado. Na segunda fase, vendi contos para a revista Planeta, editada por Ignacio de Loyola Brandão e para o jornal Movimento, que tinha como editor de cultura o Flavio Aguiar. Vivi também por algum tempo dos direitos autorais de Outubro, pagos pelo Instituto Estadual do Liuvro do Rio Grande do Sul, dirigido por Lygia Averbruck. Contei nessa época, e em tempos posteriores e anteriores, com o apoio do Jorge Escosteguy, que foi-se prematuramente mais tarde, quando trabalhávamos na Fiesp (entramos lá por caminhos diferentes e já não nos entendíamos). Scotch me deu um livro para resenhar na Veja, da qual era editor: Maíra, de Darcy Ribeiro. Nem sabia quem era (só depois caiu minha ficha). Fiz uma resenha a partir do texto proposto, que até hoje está nos sites especializados no grande intelectual brasileiro. É de Darcy Ribeiro que tiro o texto a seguir, sobre Getúlio Vargas. Vale a pena ler, para provar que o que tenho falado aqui tem bases sólidas.

"O LEGADO DE VARGAS

Darcy Ribeiro

Getúlio Vargas (1883-1954) foi o maior dos estadistas brasileiros. Foi também o mais amado pelo povo e o mais detestado pelas elites. Tinha que ser assim. Getúlio obrigou nosso empresariado urbano de descendentes de senhores de escravos a reconhecer os direitos dos trabalhadores. Os politicões tradicionais, coniventes, senão autores da velha ordem, banidos por ele do cenário político, nunca o perdoaram.

Os intelectuais esquerdistas e os comunistas, não se consolam de terem perdido para Getúlio a admiração e o apoio da classe operária. Com eles, o estamento gerencial das multinacionais. Getúlio foi o líder inconteste da Revolução de 1930. Tendo exercido antes importantes cargos, Getúlio pôde se pôr à frente do punhado de jovens gaúchos que, aliados a jovens oficiais do Exército - os tenentistas -, desencadearam a Revolução de Trinta. A única que tivemos digna desse nome, pela profunda transformação social modernizadora que operou sobre o Brasil.

No plano político, a Revolução de 30, proscreveu do poder os coronéis-fazendeiros com seus currais eleitorais e destitiuiu os cartolas do pacto "café-com-leite", que faziam da República uma coisa deles. Institucionalizou e profissionalizou o Exército, afastando-o das rebeliões e encerrando-o dentro dos quartéis.

No plano social, legalizou a luta de classes, vista até então como um caso de polícia. Organizou os trabalhadores urbanos em sindicatos estáveis, pró-governamentais, mas anti-patronais.

No plano cultural, renovou a educação e dinamizou a cultura brasileira. Getúlio governou o Brasil durante quinze anos sob a legitimação revolucionária, foi deposto, retornou, pelo voto popular, para cinco anos mais de governo. Enfrentou os poderosos testas-de-ferro das empresas estrangeiras, que se opunham à criação da Petrobrás e da Eletrobrás, e os venceu pelo suicídio, deixando uma carta-testamento que é o mais alto e o mais nobre documento político da história do Brasil.

Vejamos, por partes, os feitos de Getúlio. Logo após a vitória, estruturou o Governo Federal com seus companheiros de luta, como Oswaldo Aranha e Lindolfo Collor, aos quais se juntaram mais tarde Francisco Campos, Gustavo Capanema, Pedro Ernesto e outros. Colocou no governo, também, seus aliados militares - Juarez Távora, João Allberto, Estilac Leal, Juracy Magalhães, entregando a eles, na qualidade de interventores, o governo de vários estados e importantes funções civis. Só faltaram dois heróis do tenentismo: Luís Carlos Prestes, porque havia aderido, meses antes, ao marxismo soviético, e Siqueira Campos, que morreu num acidente durante a conspiração.

O Governo Revolucionário criou o Ministério da Educação e Saúde, entregue a Chico Campos, fundou a Universidade do Brasil e regulamentou o ensino médio, em bases que duraram décadas. Criou, simultaneamente, o Ministério do Trabalho, entregue a Lindolfo Collor, que promulga, nos anos seguintes, a legislação trabalhista de base, unificada depois na CLT, até hoje vigente. O direito de sindicalizar-se e de fazer greve, o sindicato único e o imposto sindical que o manteria. As férias pagas. O salário mínimo. A indenização por tempo de serviço e a estabilidade no emprego. O sábado livre. A jornada de 8 horas. Igualdade de salários para ambos os sexos etc., etc.

Getúlio inspirou-se, para tanto, no positivismo de Comte, que já orientava a política trabalhista dos gaúchos, do Uruguai e da Argentina. Oswaldo Aranha, à frente do Ministério da Fazenda, reorganizou as finanças, revalorizou a moeda nacional e negociou a velha e onerosa dívida externa com os ingleses, em bases favoráveis ao Brasil. Guerra de ideologias - Dois anos depois da revolução vitoriosa, Getúlio enfrentou e venceu a contra-revolução cartola, que estourou em São Paulo, defendendo a restauração da velha ordem em nome da democracia.

Em 1934, convocou e instalou uma Assembleia Constituinte que aprovou uma nova Constituição, inspirada na de Weimar. Com base nela, foi eleito Presidente Constitucional do Brasil. Getúlio teve que enfrentar, desde então, a projeção sobre o Brasil das ideologias que se digladiavam no mundo, preparando-se para se enfrentarem numa guerra total. De um lado, os fascistas de Mussolini, que se apoderaram da Itália, e os nazistas de Hitler, que reativaram a Alemanha, preparando-se para se espraiarem sobre o mundo. Do lado oposto, os comunistas, comandados desde a União Soviética, com iguais ambições. A direita se organizou aqui com o Partido Integralista, que cresceu e ganhou força nas classes médias, principalmente na jovem oficialidade das forças armadas.

Os comunistas começaram a atuar nos sindicatos, estendendo sua influência nos quartéis. Ampliaram rapidamente sua ação, através da Aliança Nacional Libertadora, que atraiu toda a esquerda democrática e anti-fascista. Os comunistas conseguiram de Moscou, que apoiava uma política de aliança com todos os anti-fascistas do mundo, que abrisse uma exceção para o Brasil, na crença de que aqui seria fácil conquistar o poder, em razão do imenso prestígio popular de Prestes .

Desencadearam a intentona, em 1935, que foi um desastre. Não só desarticulou e destroçou o Partido Comunista, mas também provocou imensa onda de repressão sobre todos os democratas, com prisões, torturas, exílios e assassinatos. O resultado principal da quartelada foi fortalecer enormemente os integralistas, abrindo-lhes amplas áreas de apoio em muitas camadas da população, o que lhes permitiu realizar grandes manifestações públicas, marchas de camisas verdes, apelando para toda sorte de propaganda, a fim de eleger Plínio Salgado Presidente da República. Getúlio terminou por dissolver o Partido Integralista, assumindo, ele próprio, o papel de Chefe de um Estado Novo, de natureza autoritária. Quebrou o separatismo isolacionista dos estados, centralizando o poder e ensejando o sentido de brasilidade.

A guerra - Em 1939 estalou a guerra. Todos supunham que a propensão de Getúlio era de apoio às potências do Eixo, em função da posição dos generais . Surpreendentemente, Getúlio começou a aproximar-se da democracia, através de Oswaldo Aranha, que fez ver aos Aliados que Getúlio era propenso a apoiar as democracias. Não o fez de graça, porém. Exigiu dos Estados Unidos, como compensação pelo esforço de guerra que faria, cedendo bases em Belém e em Natal e fornecendo minério, borracha e outros gêneros, duas importantíssimas concessões. Primeiro, a criação de uma grande siderúrgica que viria a ser a Companhia Siderúrgica Nacional, a CSN, matriz de nossa industrialização. Segundo, a devolução ao Brasil das reservas de ferro e manganês de Minas Gerais e da Estrada e Ferro Vitória-Minas, em poder dos ingleses. Com elas se constituiu a Companhia Vale do Rio Doce que nas décadas seguintes teve um crescimento prodigioso. Toda essa negociação se coroou quando Getúlio consegue que Roosevelt viesse a Natal, em sua cadeira de rodas, para conversar com ele, consolidando aqueles acordos e obtendo do Brasil a remessa de uma força armada para a batalha da Itália.

Com a vitória dos Aliados na guerra, cresceu o movimento de redemocratização do Brasil, que logo se configurou como incompatível com a presença de Getúlio no governo. Ele tentou conduzir o processo e para isso criou, com a mão esquerda, o PTB, para dar voz política aos trabalhadores; e com a mão direita, o PSD, para expressar os potentados da administração pública, com os quais governara. Gerando desconfiança em todos, Getúlio finalmente caiu, num golpe militar encabeçado por Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra, seu Ministro da Guerra. O governo foi entregue ao Supremo Tribunal Federal, que convocou e realizou eleições, nas quais se defrontaram, representando as forças nominalmente democráticas, o Brigadeiro Eduardo Gomes e, na vertente oposta, o general Gaspar Dutra. Ganhou Dutra, graças ao apoio de Getúlio, que vivia desterrado em sua fazenda de Itu, no Rio Grande do Sul. Simultaneamente, Getúlio se elegeu Senador por São Paulo e pelo Rio Grande do Sul, e Deputado Federal pelo Distrito Federal, pelo Rio de Janeiro, por Minas Gerais, Bahia e Paraná.

A volta - Nas eleições de 1950, Getúlio se candidatou à Presidência da República, enfrentando Eduardo Gomes, mas encontrou um estado destroçado e falido por Dutra, que, eleito por ele, governara com a direita udenista. Getúlio, logo depois de empossado, formulou nosso primeiro projeto de desenvolvimento nacional autônomo, através do capitalismo de estado, e um programa de ampliação dos direitos dos trabalhadores. Começou a lançar os olhos para a massa rural. A característica distintiva do seu governo foi, porém, o enfrentamento do capital estrangeiro, que ele acusava de espoliar o Brasil, fazendo com que recursos, aqui levantados em cruzeiros, produzissem dólares para o exterior, em remessas escandalosas de lucros. Toda a direita, associada a essas empresas estrangeiras e por ela financiada, entrou na conspiração, subsidiando a imprensa para criar um ambiente de animosidade contra Getúlio, cujo governo era apresentado como um "mar de lama". Neste ambiente, o assassinato de um major da Aeronáutica, que era guarda-costa de Carlos Lacerda, por um membro da guarda pessoal de Getúlio no Palácio do Catete, provocou uma onda de revolta, assumida passionalmente pela Aeronáutica na forma de uma comissão de inquérito, cujo objetivo era depor Getúlio.

A crise se instalou e progrediu até a última reunião ministerial, em que Getúlio constatou que todos os seus ministros, exceto Tancredo Neves, viam como solução a sua renúncia. Ele havia recebido, através de Leonel Brizola, a informação de que podia contar com as forças militares do sul do país. Mas, para tanto, seria necessário desencadear uma guerra civil. A solução de Getúlio foi seu suicídio. Antes entregou a João Goulart a Carta -Testamento, que passou a ser o documento essencial da história brasileira contemporânea.

Virada - O efeito do suicídio de Getúlio foi uma revirada completa. A opinião pública, antes anestesiada pela campanha da imprensa, percebeu, de abrupto, que se tratava de um golpe contra os interesses nacionais e populares, que era a direita que estava assumindo o poder e que Getúlio fora vítima de uma vasta conspiração. Os testas-de-ferro das empresas estrangeiras e o partido direitista, que esperavam apossar-se do poder, entraram em pavor e refluíram. As forças armadas redefiniram sua posição, o que ensejou condições para a eleição de Juscelino Kubitsheck.

O translado do corpo de Getúlio, do Palácio do Catete até o Aeroporto Santos Dumont foi a maior, a mais chorosa e mais dramática manifestação pública que se viu no Brasil. Pode-se avaliar bem o pasmo e a revolta do povo brasileiro ante esta série de acontecimentos trágicos, que induziram seu líder maior ao suicídio como forma extrema de reverter a seqüência política que daria fatalmente o poder à direita."

(Darcy Ribeiro, 1994).

8 de agosto de 2005

O PESQUISADOR DE CHURRASCOS



Faço pesquisa com churrasco há décadas. Jamais acerto, pois sou fiel ao processo clássico da busca do conhecimento, o da tentativa e erro (com ênfase para o erro). Normalmente provo o resultado de minhas experiências sozinho, ou com a ajuda generosa dos familiares. Mas às vezes, compartilho com algumas visitas, pois sempre há a esperança de ter chegado a um patamar um pouco acima do zero em eficiência. Fui convocado para esse tipo de experiência por minhas raízes pampeiras, mas a cada braseiro comprovo a tese de que assar é uma arte, jamais um ato voluntarioso. Minha mais recente vítima foi Rodrigo Schwarz, que veio especialmente de Joinville neste domingo para arriscar-se na minha churrasqueira. Sua gentileza e esforço faz parte do seu talento. Para homenagear o amigo, reproduzo a resenha que publicou no sábado, no caderno de Cultura do Diário Catarinense. Um texto sobre a maldição do nosso ofício, que por meio do exemplo de John Fante nos enche de gás para o que der e vier. Rodrigo é escritor de primeiro time, que lançou recentemente seu primeiro romance.

"UM REBELDE QUE NÃO ESMAECE

Obra de John Fante publicada após sua morte marca a estréia do controverso personagem Arturo Bandini

RODRIGO SCHWARZ/ Jornalista e escritor. Autor do romance A Ilha dos Cães (Bertrand Brasil, 2005)

Livros póstumos costumam macular a bibliografia de um autor. Em alguns casos, herdeiros de escritores célebres esvaziaram, com a responsabilidade de um saqueador, o conteúdo das gavetas dos finados escribas, tentados pelas cifras ofertadas. É graças as suas viúvas que acabaram no prelo obras irregulares e inacabadas de talentos como Alberto Moravia, Italo Calvino, Borges e Hemingway. Felizmente, esse não é o caso de O caminho de Los Angeles (tradução de Roberto Muggiati, 208 págs. R$ 31), de John Fante, publicado agora no Brasil pela José Olympio. Apesar do manuscrito ter sido descoberto entre os papéis de Fante após a sua morte, em 1983, o livro é, na verdade, o seu romance de estréia. Se continuava inédito, não era por desprezo de Fante, e sim, do mercado editorial, incapaz de digerir o conteúdo provocante do original.

Fante iniciou a obra em 1933, aos 24 anos. Na época, havia despertado a atenção do meio literário norte-americano devido aos diversos contos publicados em revistas como as prestigiadas Harper's Bazaar, Esquire e The Atlantic Monthly. Foi com grande entusiasmo que o jovem ítalo-americano ávido por sucesso recebeu a proposta da editora Knopf: um adiantamento de US$ 450 para escrever um livro em sete meses. Fante enclausurou-se em um apartamento de sótão em Long Beach, dedicando-se, com exclusividade, ao projeto. No entanto, mesmo não sendo um prazo exatamente espartano o determinado pela Knopf, ele não conseguiu entregar o original a tempo. Só três anos depois Fante pôde finalizar o romance, reescrevendo as primeiras cem páginas e cortando alguns excessos. O manuscrito o agradou bastante, como comprova a carta endereçada ao amigo Carey McWilliams: "O caminho de Los Angeles foi terminado e, rapaz!, como isso me alegra... Tem passagens de chamuscar os pêlos do rabo de um lobo. Pode ser forte demais; isto é, faltar-lhe 'bom' gosto. Mas isso não me incomoda."

As editoras não partilharam da opinião de Fante. De fato, o personagem de O caminho de Los Angeles, Arturo Bandini, apresentava um comportamento revolucionário para os anos 1930 - e ainda hoje continua difícil de ser superado. Arturo Bandini era um rebelde em uma época em que rebeldia não vendia livros. Só uma década depois, com a chegada dos beatniks, é que o estilo e a temática de Fante passaram a ser apreciadas por um público maior. O estilo e a temática, não os títulos protagonizados por Bandini, que fracassaram comercialmente quando aportaram nas livrarias, no final dos anos 30 (ao contrário da primeira aparição do personagem, os outros dois romances que Fante escreveu sobre ele foram editados: Espere a primavera, Bandini, em 1938, e sua obra-prima, Pergunte ao pó, que saiu um ano depois).

É em O caminho de Los Angeles que Bandini mostra-se de forma mais irascível. Como o autor, Arturo Bandini é um jovem ítalo-americano vindo de uma família pobre. Para ele, amante dos bons livros e ateu, é extremamente penoso o convívio com a mãe ignorante e com a irmã devota. Pior: elas exigem que o rapaz trabalhe para pagar o aluguel do apartamento onde moram. Bandini, então, se aventura por uma infinidade de subempregos, sendo demitido rapidamente de todos por sua intolerância em conviver com pessoas que, diferente dele, "não se alimentam da carne de Nietzsche". Sempre empunhando um livro do filósofo alemão, Bandini vocifera com seus efêmeros companheiros de trabalho, tratando-os como um rebanho de bestas. Afinal, é Bandini o escritor. E, apesar de raramente redigir algo, se autoconfere o título de gênio. No seu primeiro dia trabalhando numa fábrica de enlatados, avisa aos funcionários que estão na presença de um escritor digno de um Nobel. Após a fala, vomita na frente de todos, devido ao cheiro da sardinha destripada, provocando uma explosão de escárnio em toda a fábrica.

Bandini é um personagem quixotesco, acredita em algo que apenas ele enxerga, mas faz o mundo pagar por não concordar com sua visão. Pelo menos, as pessoas ao alcance de suas blasfêmias. E os animais. Sim, como nos livros de Hemingway, diversas espécies são exterminadas pelas mãos do personagem. Contudo, enquanto nas obras do autor de O sol também se levanta são sacrificados imponentes touros e gigantescos marlins, Bandini contenta-se em pulverizar caranguejos e insetos. Invariavelmente, por achar que os pobres bichos duvidaram de sua grandiosidade, de sua condição de super-homem nietzschiano.

Em O caminho de Los Angeles, o comportamento de Bandini é tragicômico demais para aproximá-lo da vida de Fante, como é o caso de Espere a primavera, Bandini e Pergunte ao pó, trabalhos imbuídos de um forte tom confessional. Não que inexistam traços autobiográficos no romance de estréia. A relação problemática do personagem com a mãe e a irmã espalha-se na do próprio Fante com seus familiares. E a ambição de Bandini equipara-se à do seu criador. Fante era obcecado por obter fama e dinheiro com sua literatura.

Fracassando em sua meta, passou a escrever roteiros de cinema, e a aprofundar-se em suas ocupações prediletas: a bebida e o jogo. Após o lançamento de Pergunte ao pó, publicou apenas quatro títulos, num período de mais de 40 anos. Nesse intervalo, vários originais foram rejeitados. Por recusar-se em largar as garrafas, mesmo após ter sido diagnosticado com diabetes, acabou perdendo a visão e as duas pernas. Antes da doença, seu temperamento volátil, sempre inflamado mais ainda pelo álcool, já tornava difícil sua convivência com os amigos e família. Quando a esposa começou os trabalhos de parto para o nascimento do quarto filho de Fante, ele a colocou sozinha num táxi, despachando-a para o hospital. Fante continuaria sendo um escritor cuja atribulada história pessoal era mais conhecida que as histórias criadas por ele; caso não fosse a intervenção de Charles Bukowski. Em 1980, Bukowski intimou seu editor, John Martin, da Black Sparrow Press, a reeditar as obras de Fante, bem como encaminhar ao prelo seus títulos inéditos. Pressionado pela popularidade de Bukowski, Martin aceitou a demanda. Assim, uma nova geração de leitores tomou conhecimento de que a prosa de Bukowski, assim como a de Kerouac, não era tão original ou transgressora como pensavam.

Apesar de jamais ter ido visitar Fante, que, cego, ditava os textos à sua mulher, Bukowski não economizava elogios ao mestre. "Eu era um jovem, passando fome, bebendo e tentando ser escritor. Nada do que eu lia tinha a ver comigo. Eu tirava livro após livro das estantes. Por que ninguém dizia algo? Por que ninguém gritava? Então, um dia, puxei um livro e o abri, e lá estava. As linhas rolavam facilmente através da página, havia um fluxo. Cada linha tinha a sua própria energia e era seguida por outra como ela. (...) E aqui, finalmente, estava um homem que não tinha medo da emoção", escreveu, sobre Pergunte ao pó.

Segundo Bukowski, o livro de Fante foi onde descobriu a mágica literária que o contaminou de forma irrevogável.

No romance O caminho de Los Angeles, Arturo Bandini é pela primeira vez conjurado. Conjuração feita com intensidade e perfeição demais para que a morte do autor ou a descrença das editoras pudessem impedir o enlevo dos leitores."

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